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sábado, 29 de dezembro de 2012

VIAGEM PARA O DESCONHECIDO


(Google Imagens)
A cada início de ano fico saudoso. Vou contar como tudo começou. O Ano Novo coincide com minha chegada a Brasília, pois aportei pelas terras da capital em janeiro de mil novecentos e setenta e quatro. Passei o Natal em Porto Alegre e no dia seguinte, 26 de dezembro, com mais dois colegas recém formados, dividimos as despesas e viemos num novíssimo Corcel ano 72, amarelo. É verdade que havíamos ganho passagens de avião, mas preferimos o nosso meio de transporte. Hoje, analisando o porquê disto, penso que foi pelo tempo de viagem. Por ser mais demorado, o carro proporcionava melhor conscientização da distância que representava a mudança de vida. Tanto é certo, que deveríamos apresentar no emprego em dois de janeiro, “sem atrasos”, conforme avisou o empregador e, após perdermos tempo tentando sair de São Paulo devido a desvio de rota, chegamos somente dia 3.
Nada era como hoje. Brasília não tinha semáforos e as diversões se restringiam aos churrascos em finais de semana na chácara de alguém ou ao pé das cachoeiras, silvestres e seguras.
Em finais de semana as ruas eram vazias de carros e gente. Poucos bares e restaurantes divertiam os que viviam por aqui. Nas quadras, os moradores faziam festas privadas e aqueles com filhos menores, programavam reuniões para aumentar os círculos de amizade.
Os cinemas eram poucos e as boates raras, das quais lembro do Xadrezinho em frente ao clube Cota Mil e do Tendinha, perto do Hotel Nacional. Namoro mesmo, para valer, era na fonte luminosa, onde tudo começava e terminava durante as sessões de cine-driven, dentro do Autódromo.
O Lago Norte era puro matagal. Certa vez, levado debaixo de chuva por corretor até  terreno para comprar, tivemos que seguir bom pedaço a pé. Na volta, embarrado até o pescoço e cansado nem quis falar sobre o assunto e, com dinheiro suficiente para comprar o terreno, decidi pela aquisição de um fusca na Concessionária Valença do posto da Torre. Nem com o corretor pagando refeições no restaurante di Roma do Setor Comercial Sul, fui dobrado para adquirir o imóvel. Hoje um terreno naquela localização, daria para comprar três Mercedes. Sem queixas, porque a vida destrata os arrependidos.
Prefiro a capital de hoje, com cara cosmopolita. Cheia de gente, engarrafamento e plena de atividades, pois o tempo que sobrava naquela época geralmente era mal consumido.
Brasília é jovem senhora, plena de sedução, ainda infantil e doce nos seus 50 anos. Aqui faço minha vida, moro, trabalho e divirto. Acostumei com as mudanças no corpo desta moça. Das retas e curvas que, por mais que os governantes mudem o traçado, nunca perderá o esplendor e graça. As autoridades perdem o poder no vai e vem político e a cidade permanece altiva e serena, guardando no  seio a nova geração nascida no solo ardente, que cuidará da mãe gentil com zelo. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

PREVISÕES LUCRATIVAS

(Google Imagens)

Na aproximação do ano 2 000, o planeta foi bombardeado por dúvidas sobre a virada do milênio. Empresas, principalmente fabricantes de computadores, lançaram profecias de que a informática embarcada em toda as áreas de atividades, entraria em colapso e equipamentos, despreparados para esta “virada do milênio”, gerariam problemas impossíveis de prever. Ainda segundo os alarmistas, o homem passaria riscos reais com aparelhos dependentes de datas eletrônicas. Grandes empresas, governo incluído, entrariam em colapso. Passar de 1999 a 2000 seria tão sério que se transformaria no maior pesadelo do novo milênio com caos total em arquivos financeiros, cadastros de pessoal ou até, no caso de usina nuclear, vazamento da radioatividade. Obstinados, aconselhavam adiamentos de cirurgias a meia noite de 1999. Instalado o medo coletivo, foi criado o termo BUG DO MILÊNIO para a catástrofe e a Administração Pública aconselhou os órgãos a criarem comissões e evitassem alarmar a população.
Na época trabalhava na área de informática pública onde, como em tantos outros órgãos, a maré do BUG dominou as atenções. Consultores de “renomado” saber aconselharam a contratação de empresa especializada para ficar livre dos problemas. Elas sim, teriam a tecnologia necessária para minimizar o que pudesse ocorrer. E assim, ao final do relatório, indicaram uma “empresa idônea”, logo chamada para se manifestar. Não prometia zerar a possibilidade de catástrofe, porque o problema era muito sério mas, conforme pregavam “minimizariam” no que fosse possível. Aos poucos, mesmo após  problemas ocorridos, continuariam a prestar serviços, mediante  desembolso mensal, por tempo indeterminado, até que tudo fosse resolvido. Criou-se  comissão para estudar riscos e soluções do problema. O medo da catástrofe ou coisa mais forte pesava a favor da contratação. Mas havia voz contrária: a minha.
Meu raciocínio era simples como o velho exemplo do ovo de Colombo. Como empresas de tecnologia avançada, como os fabricantes de computadores, ou alta tecnologia não preveriam a mudança? Que empresas eram estas que, fabricando computadores na década de 90, negligenciariam a mudança do milênio? Meu veredicto era único e ia na contra mão dos “desesperados” : NADA IRÁ ACONTECER. E espalhava pelos corredores que tudo correria sem traumas. Basta soltar fogos a meia-noite de 31 de dezembro de 1999 e pronto, comemorar o ano novo, sem susto. Como era o único contrário a muitos interesses, fui ficando de lado.
E aí aconteceu o inesperado. O presidente do órgão público ouviu falar da teoria e me chamou para conversa reservada. Quando terminei de falar, perguntou se tinha certeza, já que haviam órgãos públicos que teriam investido milhões em empresas “salvadoras” do colapso. Respondi que tinha certeza. Pediu-me que fizesse um relatório, o qual entreguei no dia seguinte. Ainda temeroso, pediu nova confirmação e afirmei que poderia dormir tranquilo. No mesmo dia cancelou a contratação dos “salvadores”, o que gerou grande barulho, que não o intimidou. A pressão que deve ter enfrentado, imagino qual tenha sido, mas continuou firme.
O dia chegou, o milênio virou, participei do plantão do “Bug” e tudo correu conforme previra.

A partir do dia seguinte, iniciou-se abafa nacional, pois muito se gastou com o evento e o assunto deveria ser esquecido o mais rápido possível. Quem trabalhava com tecnologia sabe o quanto se gastou. Muitos técnicos preferiram se omitir, vencidos pela forte voz da pregação dos senhores do caos.
Agora vem notícias do fim do mundo dia 21 de dezembro. Não sou profeta, nem tenho conhecimento para manifestar opinião. No máximo, arrisco repetir a  teoria da vó Joana que, quando alguém perguntava sobre o assunto, respondia com a simplicidade de imigrante pobre e italiana,: “ DEIXEM DE BOBAGEM, O MUNDO SÓ ACABA PARA QUEM MORRE”.

domingo, 9 de dezembro de 2012

NATAL DE VERDADE

(Google Imagens)

Viver requer sensibilidade e só vale a pena para os que retiram ensinamentos diários. Muitas vezes, a sensação é do ontem ser igual a hoje, mas não se enganem, nada é igual. Estar atento a mudanças, ao novo broto da roseira ou ao pássaro que protege a árvore porque ali construiu o ninho e depositou o filho, é sensibilidade e pode ser desenvolvida. Há poucos dias, abracei a responsabilidade por um pássaro que caiu do ninho e levei muita bicada ao devolver o filhote fujão. Os pais arriscavam-se, brigavam e xingavam defendendo o rebento.
Além dos olhos, os demais sentidos devem estar atentos. A audição, o olfato, o tato e o gosto completam os mecanismos de percepção do mundo. Cem por cento eficazes ajudam no entendimento dos sinais. O resto é sentir.
Uma percepção aguçada e aberta a ensinamentos dispensa alerta de outras pessoas. A natureza encontra meios sutis de ensinar a quem quer aprender. 
Procuro mostrar isto aos filhos. Penso até que consegui, pois os cinco seguem as lutas diárias e recorrem a mim somente para reforçar aprendizado. Evitam recorrer ao pai quando o problema é financeiro, pois entendem que isto é individual, relacionado ao volume de necessidades particulares. Assim, acredito, se fortalecem para lá na frente, tenho certeza, serem seres humanos  melhorados e compreensivos.
O Natal está aí e com ele, a desmedida deturpação dos valores, pela  carga publicitária que bombardeia a vontade de presentear e demonstrar amor por presentes. E quanto mais caro mais amor representa. Nos shoppings, acontece a correria do "compre agora para não ficar apertado na véspera".
Bons objetos para demonstrar o quilate de amor é o que mais tem. Para crianças e adolescentes então nem se fala. São Ipods, e-boocks, noteboocks e por aí vai, cujo objetivo maior é promover o isolamento desde a noite de Natal, quando imediatamente os presenteados se fecharão nos quartos para melhor "falar" com os novos brinquedinhos. Pais que cedem a este apelo deixam aos filhos, o recado de também presentearem com símbolos caros para quantificar o amor.
E a vida segue e espero dos leitores envolvidos nesta correria as vésperas de Natal, que entrem no verdadeiro espírito natalino: distribuição de amor demonstrado por carinho, sorriso e atenção incondicional.  Os amigos e familiares precisam mais disto do que qualquer coisa.
Este é assunto recorrente em meus textos, principalmente quando chegam datas que a população, bombardeada por vergonhosa inversão de valores, fica anestesiada pelas mensagens consumistas. Falo incansavelmente, pois acredito que dia virá que a humanidade abrirá os olhos e não se deixará enganar, colocando na mesa a independência de raciocinar antes de entrar neste jogo cruel e massificante. Pelas ruas desapareceram as  pessoas originais, a globalização massificou pensamentos, vestimentas e diversão e hoje é obrigatório ser feliz sob pena de ser taxado depressivo.
Por fim, melhor do que presentear com dinheiro ou qualquer outro objeto ao morador de rua, é dar atenção, tratá-lo com amorosidade e encaminhar aos órgãos de ação social. Entre muitos outros locais está a Comunhão Espírita de Brasília, na L2 sul – quadra 604. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A CIDADE DA SERESTA

(O Túnel que Chora - arquivo pessoal)

Eram sete horas da manhã de sábado quando avistei o senhor a montar as barraquinhas de venda de bijuterias e outras quinquilharias na praça, defronte a Igreja Matriz. A cidade jazia adormecida enquanto ele trabalhava. Outro homem o observa de perto. Parece olhar através do montador e das ferragens. Inerte em sua frente, vez por outra faz um comentário que o senhor nem se digna responder. Um leve chuvisqueiro cai insistente. Levantei a gola do casaco e me escondi sob a árvore, enquanto observava o senhor colocar um varão de ferro de cada vez  e encaixar em argolas para dar sustentação. O trabalho paciente indicava que mais tarde haveria feirinha. Passei devagar. Estava absorto na montagem e em seus pensamentos.  O que observava me olhou com olhos vazios.
No meio da rua, mais abaixo, aparece uma senhora e grita sem preocupar com a cidade que dorme:
– Ei! Pode parar de montar. Com esta chuva, não haverá feira.
O homem deixa cair um dos varões com estrondo, torce a boca e fala para si mesmo, determinado:
– Vou terminar de montar esta e paro.
Armou a quarta barraca e iniciava a colocação da lona amarela comum a todas, quando resolvi chegar perto.
– Hoje terá feira? – perguntei.
– Claro. Quando chove é sempre assim. Ela cancela e depois a feira acontece e tenho que correr a montar o resto das barraquinhas para os feirantes. – responde sério, avaliando que me referia ao comentário da mulher.
– O senhor é da cidade? – insisto.
– Nasci aqui e monto as barraquinhas há mais de trinta anos.
Saio devagar, e faço uma foto da igreja Matriz.
Estava em Conservatória, cidade distante do Rio de Janeiro cerca de 150 quilômetros. Participava de um Encontro Nacional e aproveitei para conhecer a “Cidade da Seresta”, paraíso dos seresteiros. Acredito que a última representante de um tempo que não volta mais. Havia chegado na sexta a noite e ficaria até domingo. Foram três dias na cidade de seis mil habitantes, onde o tempo, contrariando o resto do mundo, é docemente lento. Voltei para o hotel, pois teria o dia pleno de atividades.
(Roupa do filme O É brio de Vicente Celestino-arquivo pessoal)
À noite, após dia intenso, voltei à cidade. Entrei no Museu de Vicente Celestino e Gilda Abreu e mergulhei num passado bem perto de minha infância, quando ouvia as músicas tocadas em discos de vinil por meus pais. Wolney Porto, curador do espaço, colocou um disco de Celestino e me atendeu com cortesia. “A noite haverá seresta na rua” indicou o evento que aconteceria mais tarde na praça principal onde um grupo se reuniria para tocar e cantar. Quando digo que sou de Brasília, me pergunta se posso ajudá-lo a ter alguma ajuda federal para a manutenção dos museus dos quais é curador. Respondo que minha missão na cidade é outra e que colocarei o pleito no meu blog.
Voltei ao hotel para a janta e animei um pequeno grupo para comparecer ao evento. Mais tarde atravessamos a pé o “túnel que chora”, eu pela segunda vez. A obra construída pelos escravos, separa a cidade do resto do mundo. Pode ter sido pela época, mas o túnel, charmosamente, comporta apenas a passagem de um carro. Quando outro aponta da posição contrária, deve  esperar que passe para ir em frente.
(Caminhada em Seresta - arquivo pessoal)
Logo ao término da travessia, ouvimos o som dos violeiros. E quanto mais nos aproximávamos, mais éramos envolvidos pela voz dos cantadores e a harmonia dos violões. A seresta acontecia com seis integrantes, coordenada pelo seresteiro Edgar, morador da cidade. Mescla integrantes não apenas de Conservatória, como também de fora, como é o caso de Roberto, vindo da Cidade Maravilhosa toda sexta feira a fim de soltar a voz melodiosa e firme. E pouca chuva não impede a cantoria. Interrupção só acontece por fortes relâmpagos e trovoadas. A garoa mistura-se a emoção e embaça os olhos dos turistas em lento caminhar:
Felicidade, foi se embora e a saudade no meu peito, ainda mora e é porisso que eu gosto lá de fora, porque sei que a falsidade não vigora...”.  
Vez por outra, Edgar pára e declama poesia, demonstrando a excelente memória. Não me contive e, resguardado pelo canto dos demais turistas, soltei a voz me sentindo o rei da serenata.
Cerca de duas da manhã, a cantoria acabou e Edgar recebe para conversa sem tempo marcado, pois seresteiro não tem pressa para boa prosa. E fez a declaração bombástica da noite: “nosso trabalho é por amor a seresta, não ganhamos um tostão pelo que fazemos”. Despedimos e saímos cantando de bar em bar. Todos com as características dos botecos cariocas, com samba ao vivo, exibindo o gingado da mulher carioca.
(Aproveitei farol de carro as três da manhã - arquivo pessoal)
Atravessar túnel, a pé, as três da manhã, em qualquer cidade, seria temerário, mas não em Conservatória, que inspira inocência e tranquilidade. No meio do túnel, alguém cantava uma seresta, que ecoava pelo espaço fechado.
“Dorme e fecha este olhar entardecente
Não me escute nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz ou infelizmente
Não me é dado beijando te acordar”.
Domingo era dia de retorno e, após as atividades matutinas e as despedidas entre os 380 participantes do Encontro, o ônibus partiu em direção aos aeroportos do Rio de Janeiro, descendo os 520 quilômetros de serra. Ao encontro, compareceram representantes de todo canto do país, do Oiapoque ao Chuí. No retorno ao Rio, a beleza da vegetação e a conversa animada. Conservatória ficou para trás, mas permanece nos planos de conhecê-la melhor em outras visitas com mais tempo.
Serenata é algo esquecido e hoje habita apenas a memória. É mais ou menos assim. Eu tinha cinco anos e morava em Uruguaiana. Nas noites de sexta feira chegava um grupo musical com um rapaz chamado Helvécio que cantava para a vizinha, chamada Arlete. Depois das canções, eram convidados a entrar pelo dono da casa, pai da moça, que lhes oferecia bebida e a partir daí a vizinhança participava até tarde da noite. Um dia tudo parou, o cantor e a jovem casaram-se. As serenatas acontecem até o casamento.
Olho a rosa na janela,
sonho um sonho pequenino...
Se eu pudesse ser menino
eu roubava essa rosa
e ofertava, todo prosa,
à primeira namorada,
e nesse pouco ou quase nada
eu dizia o meu amor, o meu amor

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

VERDES MARES DO NORDESTE


(Cumbuco-CE - Arquivo Pessoal)
São quilômetros e quilômetros da linda beira mar oeste. Aqui e ali coqueiros carregados oferecem frutos para o viajante sedento. O sol forte clareia a paisagem de amarelo ouro e vez por outra aparece alguma lagoinha salgada para banho puro e sem ondas.
Como diria Ana Miranda, poeta cearense,
E quando ali retornarmos
Verás que nunca nos fomos
Pois o lugar onde estamos
O lugar onde estaremos
É sempre o lugar que somos

Assim reencontrei o litoral cearense, após dois anos. Desta vez, foram quatro dias intensos de emoções, conhecimento e restauração de energias. Compartilho com quem gosta das pequenas coisas da vida e que, como eu, julgam ser as verdadeiramente importantes.

(Pousada Ondas do Mar - Arquivo Pessoal)
 Hospedamos em encantadora pousada na região de Barramar de Taíba, a cerca de 70 quilômetros de Fortaleza. O acesso acontece por estrada de terra trabalhosa, esburacada, cheia de pedras, mas o destino recompensa. Propriedade de casal italiano, a pousada Ondas do Mar é aconchegante e intimista e os donos, Milton e Maura, estão sempre dispostos a resolver quaisquer problemas que apareçam. Com eles, revivemos cenas dos meus ancestrais também vindos da Península Ibérica em fins do século XIX. Situação semelhante a deste casal, fugiram da situação calamitosa que se abatia sobre a Europa. Em princípio do século XXI, novamente o caos econômico se abate sobre o Velho Continente e obriga famílias inteiras a emigrar e ao que parece o Brasil novamente é o destino. No final do ano estarão se radicando definitivamente no país e trarão a única filha, o genro e o neto para trabalharem na pousada. Encontrei vários empresários europeus, principalmente italianos, espanhóis e franceses investindo no litoral cearense, montando comércios, resorts, hotéis, restaurantes, pousadas e outros negócios. Louvam as possibilidades que o país oferece para estabelecer. O que chama a atenção deles é o clima, “calor o tempo todo”, fala Milton apontando para a camiseta regata, bermuda e chinelos confortáveis.
Meus planos desta vez era conhecer Paracuru, praia distante de onde estávamos apenas 30 quilômetros. E isto aconteceu no segundo dia. Na ida, querendo economizar tempo aventurei-me em estrada de terra pedregosa e poeirenta, mas alternativa de atalho substancial. O que nos deu chance de fazer a foto de um cajueiro, entre as centenas existentes em plantação nativa. Malu e eu fomos ciceroneados por Karina, minha filha que mora na praia de Taíba e o namorado Nacélio. Ao chegar a cidade, na primeira oportunidade, colocamos os pés na água e constatamos a temperatura extremamente confortável. Enquanto o sol contornava em volta da barraca do Kaká, sem nos atingir, conversávamos embalados pela brisa amena que amansava o calor abrasador. O céu carregado de kitesurfs com suas pipas amarelas, lisas, estampadas, desenhadas, amarelas, azuis ajudava ao assanhamento dos turistas de várias idades e nacionalidades, ávidos de usufruir da boa vida tropical. Casquinha de caranguejo foi a entrada, acompanhada de refrescante caipirosca e porções de camarão, dos grandes. No almoço, um delicioso dourado com saladas. Postas fartas preparadas com esmero. O cachorro ao lado da mesa cansou de esperar e foi embora, certamente percebeu que daquele mesa não teria sobras. Sem pressa, alongamos o papo por pelo menos seis horas. Esticamos ao máximo, pois sabíamos que cada minuto era importante considerando o pouco tempo de estada em solo cearense. Saímos de Paracuru ao entardecer e paramos em uma lagoa para conhecer e tomar água de coco. Logo fomos cercados por famílias de ovelhas protegidas por um bode ranzinza que me encarou várias vezes, gansos, patos e um pavão que teimou em deixar o longo rabo colorido fechado. Durante todo tempo acompanhamos a sedução de um peru, este sim de rabo aberto em leque, que de nada adiantou pois a perua estava firme no propósito de manter a guarda fechada. Ao anoitecer, retornamos a Taíba para tomar açaí na tigela, a delicia do norte/nordeste. O retorno aconteceu pela estrada asfaltada, claro, pois de poeirão bastou a ida.
(Altar em Cumbuco - Arquivo pessoal)

No terceiro dia, Malu e eu testemunhamos o casamento de filhos de amigos de Brasília na praia do Tabuba, em Cumbuco, distante 30 quilômetros de onde estávamos, sentido retorno a Fortaleza. A cerimônia foi montada em um altar simbólico e singelo, com galhos de árvores nativas fincados a beira mar. Emoldurando a cena, um belíssimo por do sol e alguns surfistas que cortavam ondas em pranchas velozes. No céu, pipas de kitesurf ondulavam em vai e vem lento. A noiva, com o mais belo dos calçados, os próprios pés, bailava com o vento e com a felicidade que só as noivas sabem e comentou que “não cabia em si mesma de tão contente”. Transbordava a alegria para convidados, na grande maioria, viajantes que deslocaram cerca de dois mil quilômetros participar do evento paradisíaco. Ao final da festa, o noivo, com o calor que fazia, dispensou o paletó e abriu os botões da camisa, celebrando o clima de descontração emprestado a festa. Uma bela e ao mesmo tempo singela cerimônia que satisfez os gostos mais exigentes, com simplicidade, carinho e alegria.
Ao final da festa, retornamos a pousada. À nossa direita, fomos homenageados  pela noite do Ceará, que ofereceu a lua a pratear o mar, a estrada e a vegetação durante todo caminho de volta.
O dia seguinte amanheceu mais bonito que os outros, como se  fosse possível. Tomamos café, tiramos algumas fotos finais com Karina e o namorado na pousada onde residem e, duas horas depois estávamos no aeroporto de Fortaleza. A aventura chegou ao fim. O sentimento é de tempo  bem aproveitado. Constatamos que temos tudo para conhecer lugares e pessoas interessantes. Basta boa vontade, olhos abertos e disposição. Lugar de descansar é em casa. Todos os minutos foram curtidos por inteiro e os compartilho tal e qual ocorreu.
Espero que o litoral resista a erosão crescente, provocada pelo oceano e pelas areias que tomaram várias obras a beira mar.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

SEM IMAGEM

(Google Imagens)

Estou há um mês sem assistir TV. Deixei a divulgação para após este prazo, esperando amadurecer a façanha. Tudo começou com Uma reclamação simples, que um produto igual ao meu, na televisão, era melhor. Após longa discussão com um amigo, concluímos que 
tudo na telinha é lindo e que a imagem virtual é mais exuberante que a real. Saquei então que isto é uma das molas mestras da ilusão que mantém as pessoas magnetizadas. Isto descoberto, tracei o projeto hercúleo de desligar da telinha.
Confesso que inicialmente me senti perdido em casa, fora de órbita. Tive problemas de onde colocar as mãos, focar os olhos e por várias vezes parei frente à TV, controles na mão, olhando a tela escura. Aos poucos desconectei e percebi os quadros tortos deixados pela faxineira após a limpeza. Aprumei-os.  Passada a primeira semana, ganhei novos horários para executar trabalhos caseiros. Passei a ler mais e escrever  se tornou tarefa mais proveitosa, sem interrupção. Assim, lavar a louça diária e estender a roupa de cama exercito com afinco, sobrando tempo para cinema em dias de semana. Em quinze dias, agreguei a arrumação da mesa de trabalho, da estante repleta permanentemente de livros fora de lugar, e ainda sobra para cafuné na nina, a cadela que há tempos reclamava.
Há trinta dias chego cedo às reuniões, no horário na natação, cumpro  compromissos nos trabalhos voluntários, enfim, sem estar aprisionado pela telinha, saio de casa sem atrasos.
Me arrumo melhor, pois nada me distrai daquilo que faço. E descobri a utilidade do aparelho ao lado da TV, há anos invisível. O aparelho de som. Por força do hábito, no inicio esperava imagem, mas logo percebi o engano. Com o rádio, vou ao banheiro, quarto, cozinha sem preocupar em perder algum acontecimento. Ligo ao levantar e ouço enquanto em casa. Já me surpreendi ora cantando, ora assobiando. Parei de me entupir com assuntos irrelevantes. E o importante é que posso desligá-lo a bel prazer, sem a sensação do vazio. Da falsa impressão de perder algo importante.
Desconheço a rotina de seqüestros, de assaltos a banco, de mortes. São todos problemas da Polícia, do Governo ou de quem é pago para isto. Meu nível de stress diminuiu e agora ouço os passarinhos que cantam em sinfonia pela manhã. Cordão umbilical cortado com a TV, as noites melhoraram. Substitui os programas de entrevistas e apresentações que me magnetizavam por horas, provocando insônia crônica, por leitura.  Resultado? Botei fora os remédios para dormir, pois o sono é provocado pelo bem estar de um livro. Ler ao dormir, além de acalmar a mente, prepara o sono, contribuindo até para o sonho leve. Acabaram os pesadelos recorrentes que me assombravam depois dos filmes da madrugada,
E o melhor de tudo é que, sobrando-me tempo, recomecei a procurar amigos. Dedico uma hora diária para falar com eles por telefone, quando tem tempo, claro, pois são muito ocupados vendo TV. Quando ligo, costumo pedir desculpas pois sei que interrompo algum programa policial, telejornal ou novela “imperdível”.
Passei a escutar o silêncio da casa. Quando chego da rua, independente da hora, ligava a TV em qualquer canal e a deixava tagarelar nos meus ouvidos, impedindo-os de ouvir pensamentos que se agitavam atrás da penumbra de propagandas, apresentadores de remédios para emagrecer e demais bombardeios. Às vezes, o apresentador era tão convincente que me impunha culpa da situação de desastre da enchente na China forçando-me a fazer algo para impedir.
Reconheço a competência da mídia que causa necessidade de consumir produtos absolutamente inúteis. Apresenta pessoas extremamente felizes que descobriram a fórmula do bem viver. Novelas exibem a falsa ilusão de uma sociedade consumista fútil com comportamento irreal, mas a ser  seguida para conseguir a felicidade do pobre telespectador.
Imagino famílias conduzindo vidas por esta mídia cruel, hipnotizada pela  magnetização da telinha.  São quatro, cinco pessoas mudas em uma mesma sala. Ávidos de saber onde encontrarão produtos para amenizar dores e sofrimentos. Se alguém fala, tentando sair da robotização, outro pega o controle remoto e aumenta o volume, calando a boca do coitado que se queixa, quem sabe, do resultado do exame de sangue descontrolado feito naquele dia.
Estou curtindo momentos sublimes há um mês. Meu conteúdo como ser humano, melhora a cada minuto. Consigo conduzir conversas reflexivas, entendo melhor a vida e intercorrências. Mantenho a mente livre para pensar sem influências externas.
Até consigo ficar ocioso sem culpa. Sem planos ou projetos de comprar isto ou aquilo, apenas pensar na vida e nas pessoas. Andava desacostumado disto e ainda estranho. Acredito que descobri porque o tempo anda curto para todos.  

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

TUDO PODE ACONTECER

(Google imagens)

Pedrinho andava chateado. O casamento com Valentina completava oito anos e a fase poderia ser classificada de melancólica. Ainda por cima, há dois meses a sogra ficou viúva e precisou morar com o casal. A falta de filhos agravava o quadro, “minha mulher fala que dá trabalho” comentava aos amigos. E como está provado que desencanto esmorece o amor, o jovem locutor da radio Marambaia conheceu Isaura. Foi numa tarde quente do verão carioca. Pedrinho havia deixado o casaco no trabalho, coisa rara e se aventurou em um relaxamento rápido nas águas de Copacabana. Naquele dia, a vida e o mar estavam mornos e pediu a moça solitária da praia para guardar as roupas. Perguntou o nome. “Isaura”, disse a jovem sorrindo maliciosamente. “É só meia hora, Isaura”, falou e correu ao mar. Exatos trinta minutos e retornou molhado, aceitando a toalha oferecida pela moça. Secou-se, e sentou ao lado dela. Conversaram alegremente e explicou sobre o programa que realizaria logo mais a noite na rádio. Ao levantar para vestir encabulou com a forma que ela olhava. Isaura passou o número do telefone e prometeu ouvi-lo. Tinha cor amorenada pelo sol, pernas torneadas e um pequeno biquíni que deixava boa parte dos seios a mostra. A rosa tatuada no pescoço chamou a atenção do homem.
Chegou pensativo em casa e Valentina, há tempos esquecida do marido, nem percebeu. Pedrinho perguntou se ouvira o programa. “Mamãe e eu ligamos o rádio para rezar com o pastor Lucas. Você precisa ouvir também. Anda muito afastado da igreja”.
No outro dia, levantou cedo e foi trabalhar assoviando, enquanto Valentina assistia ao programa matutino de culinária. Mas a sogra andava atenta e, ao ouvir o silvo do genro que distanciava, comentou séria “filha querida, aí tem”.
Mal sentou na cadeira da rádio e telefonou a Isaura para combinar o almoço. Moça solteira e desempregada podia dedicar todo tempo ao amante. E Pedrinho passou a curtir folga do almoço e sesta na casa de Isaura. A partir daí, encontravam-se todos os dias. Valentina ignorava a mudança de hábitos do marido e a mãe zelosa tentava alertá-la. Falou que quando o marido ficou diferente,  cortou o mal pela raiz, deu-lhe uma surra de tamanco. Mas Valentina ignorou os conselhos da mãe e pressentiu algo errado, somente após um ano. E, ao tentar conversar com o marido, este desconfiou da mulher com as mãos na cintura, bateu nos bolsos do paletó e deu meia volta dizendo que iria comprar cigarros. Desapareceu sem deixar pistas.
Naquela noite e nas seguintes Valentina chorou até secar as lágrimas mas, como a tudo a gente se acostuma, um dia aceitou a situação e seguiu a vida, sem o marido e com a mãe.
Pedrinho combinou com Isaura que separaria e cumpriu a promessa, executando o plano arquitetado bem antes, que só agora teve coragem de realizar. Desembarcou com as mãos abanando na casa da moça, dizendo que aceitara o convite da radio Atenas de São Paulo. Em uma hora, a mulher preparou tudo e partiram.
Foram dez anos de convivência e amor eterno, enquanto durou. Com apenas um detalhe, Isaura queria filhos e Pedrinho era estéril, provado por exame feito após oito anos de convivência. A falta de crianças esfriou a relação e o casamento desencantou. Da mesma forma que um dia desapareceu da vida de Valentina, dia chegou que Isaura desapareceu da sua. Levou todas as roupas mas deixou um bilhete na mesa da cozinha, “fui muito feliz enquanto vivemos juntos, mas quero ter filhos, adeus.” E nem assinou.
Desolado e solitário, pediu demissão, rescindiu o contrato de aluguel e retornou ao Rio voltando a trabalhar na rádio Marambaia. Dez anos mais velho e sem a disposição de outrora, ligou para Valentina. Após o final de expediente, pegou o carro e rumou a ex-residência. No meio do caminho ficou preso em um engarrafamento e atrasou por cerca de três horas. Eram onze horas quando abriu o portão da casa. Pela janela aberta, ouviu o radio transmitindo o pastor que se esgoelava. Esperou um pouco e a casa ficou em silêncio e as luzes  apagaram. Separou a chave que usara há dez anos, enfiou na fechadura e, com cuidado, abriu a porta e dirigiu-se ao quarto do casal. Os móveis, com poucas exceções, eram os mesmos.  Ao entrar no quarto em penumbra, percebeu a penteadeira, o chapeleiro, o guarda-roupa de seis portas, a cama do casal, tudo familiar. Valentina dormia profundamente. Sentiu-se cansado, deitou ao lado e aquietou-se. Bocejou. Adormeceu.

domingo, 14 de outubro de 2012

COINCIDÊNCIA OU DESTINO?

(Google Imagens)

Rodrigo chegou à frente do túmulo do pai, abaixou-se e naquele areão de pedras e barro que se transformou o cemitério de Luziânia após as chuvas de fevereiro, estilizou com o dedo a figura de um homem. De longe, Canindé percebeu a solidão que massacrava o rapaz. O vento frio e as nuvens escuras anunciavam a chegada do outono.
Na época dos acontecimentos, Canindé realizava trabalho com jovens infratores em um centro de reabilitação de Brasília dedicado a recuperação de delinquentes. Um trabalho difícil e perigoso, que o psicanalista executava com esmero e dedicação, voluntariamente. Rodrigo, o desenhista da tumba do pai, era especialmente o mais violento da instituição, sendo tratado como monstro.
– Sem recuperação, matou o próprio pai – comentou a assistente social ao apresentar a ficha do infrator.
Mesmo após os comentários desanimadores e o exame da extensa ficha criminal, o analista acreditava contribuir para a recuperação do jovem. E foi com este raciocínio que aceitou, entre tantos menores menos devastados psicologicamente, ajudar o que matou o pai.
Eram quatro horas da tarde de uma terça-feira, quando foi apresentado a ele no refeitório. Menino mirrado parecendo contar dez anos, na verdade tinha dezesseis. Olhar parado e triste, sobrancelhas arqueadas e um sorriso de canto de boca, como que fazendo coro com o ar melancólico e tímido. Nem de longe a aparência fazia jus à fama. Esticou a mão para apertar a dele e teve a sensação de amassar seus ossos caso forçasse. Com a mão presa pelo terapeuta, encarou-o esperando que evitasse o olhar firme, mas como recebeu o sorriso experiente do profissional, desviou-se para mirar a rua. O terapeuta sentiu empatia pelo adolescente e, naquele rosto infantil com rugas precoces no canto da boca, percebeu semelhanças com o próprio filho.
– Minha ficha é longa – falou o rapaz, fazendo referência a passagem pelo crime desde tenra idade. A reação de Canindé foi calcada nos anos de experiência lidando com delinquentes juvenis.
– Ah é? – respondeu sem dar relevância.
Você não tem medo, cara? – Apelou tentando nova forma de se apresentar, firme e ameaçador.
– Meu nome é Canindé e sou psicanalista. Fui designado para atendê-lo – falou sem desviar o olhar.
– Só aceito conversar lá fora – chegou a janela e apontou – Lá. – Canindé se aproximou e avistou no outro lado do pátio da instituição, uma frondosa árvore a espalhar sombra acolhedora. O jovem demonstrava aceitar o atendimento, desde que em ambiente escolhido por ele. Fazia de tudo para desestabilizar o terapeuta.
– Amanhã e toda quarta-feira às dez horas conversaremos embaixo da mangueira – encerrou a conversa, apertou a mão da assistente social, despediu-se do rapaz e saiu apressado pela porta do refeitório.
Antes dele, outros dois especialistas em comportamento iniciaram um tratamento com o rapaz e, rechaçados nas primeiras sessões, desistiram.
Os encontros entre Canindé e Rodrigo aconteciam sempre às dez da manhã, embaixo da mangueira como exigiu. Aos poucos, o rapaz se abria e falava abertamente. Sua fala era pesada, quase gutural. Às vezes trazia chicletes e os mastigava nervosamente de queixo erguido, demonstrando arrogância que mascarava a própria fragilidade. Foram quatro meses de trabalho em conjunto, em um aprendizado muitas vezes orientado pelo próprio analisando. Para ajudar Canindé deveria também aprender.Pelo olhar, gestos, falas e emoções.
O pai do menor era alcoólatra e diariamente chegava a casa esbravejando e, sem motivo, batia duramente na mãe. Após as constantes sessões de tortura, a mulher abraçava a Rodrigo, que era o filho mais velho e chorava copiosamente. Muitas vezes ele percebia o sangue que brotava dos ferimentos e assim, misturando as lágrimas e o sangue da mãe aos seus, alimentava profundo ódio ao pai. No decorrer das sessões, Canindé observou a origem do instinto criminoso do rapaz. O assassino estava sendo forjado ao assistir as surras sofridas pela mãe, seguidas pelos abraços ensanguentados e choros convulsivos.
A uma das sessões escolheu a imagem de quando contava apenas cinco anos. Nela, a lembrança do pai aplicar a maior de todas as surras neles e recordou, em meio à lágrimas e ódio, o agressor sair porta afora e desaparecer por dez anos.
Começou então uma fase de aparente calmaria naquela casa e, dos cinco aos quinze anos de idade, a raiva ao pai, transformou-se em profunda sede de vingar a mãe, só amortecida pela ausência do algoz. Um dia o inferno voltou a rondar e o pai retornou barbudo e maltrapilho. Na primeira noite, comemorando o retorno, bebeu todas e aplicou nova surra nos dois.
Recém introduzido na adolescência, ainda com penugens no rosto, o adolescente colocou as mãos na cabeça e exclamou desanimado “meu Deus, vai começar tudo de novo.”
Após o massacre, abraçou-se a mãe e da mistura dos rostos ensanguentados, ressurgiu o ódio que o cegou. Correu ao quarto e voltou munido do revólver calibre 32 do irmão e o apontou para o pai que ria com a  idiotice dos embriagados. Anestesiado pela cachaça, sem um gemido, o homem tombou varado por cinco tiros desferidos pelo filho, que naquele momento inaugurou a desastrada vida adulta. Mal teve tempo de correr a esquina e foi pego pela polícia e recolhido a instituição de menores infratores.
Contou tudo de supetão após Canindé oferecer a segurança da ajuda.
– Não te preocupe. Ninguém conhecerá o conteúdo do que falarmos. Você está sob sigilo profissional.
– Posso pedir algo? – sussurrou o menor olhando para os lados.
– Claro, porque não? – o analista se dispunha a atender o que ajudasse o tratamento.
– Quero visitar o túmulo de meu pai – Canindé num primeiro momento ficou desconcertado, mas logo entendeu o que se passava. O analisando precisava enterrar o passado e seus fantasmas. Mas era preciso cuidado.
– Faça o seguinte, pense nisto uns dois dias e falaremos novamente – Sair dali com aquele menor poderia ser uma operação de alto risco, pois o rapaz estava jurado de morte pelos irmãos. Além do mais, nada garantia que uma vez na rua, não empreendesse movimento de fuga.
O terapeuta queria tempo para pensar.
            Naquele mesmo dia procurou o diretor da instituição e obteve a primeira negativa. Começou uma peregrinação pelo sistema prisional e, após muitas alegações, conseguiu um mandado judicial assinado pelo juiz da Infância e Adolescência, dando direito e responsabilidade a conduzir o infrator. Em conjunto com a direção do Centro, marcou a data de saída.
            No dia combinado, ao chegarem ao cemitério, rumaram diretamente a tumba, localizada no dia anterior por Canindé que, previdente, queria evitar perambular pelas alamedas arriscando o reconhecimento do menor infrator por qualquer pessoa.
            Rodrigo continuava fazendo desenhos no barro e, pressentindo a chegada do terapeuta, pos-se de pé. Emocionado, ombros e braços caídos, o rapaz estava desolado.            
Canindé o abraçou ternamente e percebeu a fragilidade física e emocional. Rodrigo, então arrogante e imaturo, desmanchou a carapuça e chorou sacudindo os ombros em longo desabafo. Naquele momento, Canindé percebeu que o luto se completou. Após atirar no pai, Rodrigo foi preso e impedido de participar das cerimônias fúnebres. Permaneceu apenas o vazio e era preciso resgatar. A falta de acompanhar o velório e os demais procedimentos formaram um imenso vazio que agora se preenchia.
– Canindé, – perguntou o menor virando o rosto – queria fazer outra pergunta muito importante, agora do lado profissional – e assumiu um ar sério, maduro.
–Claro, Campeão – havia intimidade entre o psicanalista e o jovem.
– Meu pai matou meu avô, será que isto acontecerá comigo?
– Como assim? Não entendi. – Canindé se fez de desentendido.
– Meu pai matou meu avô e eu matei meu pai. Será que meu filho me matará?
Rodrigo hoje cumpre pena sob regime semi-aberto, frequenta o sétimo semestre de Direito e estagia no Ministério Público.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O BLOG

(arquivo pessoal)

A ideia de montar o blog ocorreu há quatro anos. Conversava com Fabio, meu filho, quando ao final da conversa me presenteou com um livro sobre o assunto. Logo o devorei e fui seduzido pela idéia. Naquele singelo presente de filho, acompanhado de delicioso prato de tilápia com alcaparras no Carpe-Dien do Casa Park, estava sacramentado. Junto do livro, elencou algumas dezenas de endereços da internet para visitar. Visitei todos. Sem exceção, eram da ala progressista, coisa de jovem pleno de ideais.
Mas ainda não seria desta vez que o projeto vingaria. Em 2009, durante um curso de Jornalismo Literário em Goiânia, o professor Edvaldo Pereira Filho, o Ed, novamente reforçou a idéia. Toda vez que apresentava os textos no curso, recebia o incentivo daquele jornalista experimentado, forjado dentro das redações de jornais, revistas e professor da USP. A criação do blog era questão de tempo. Sempre fui muito crítico e experimentava a sensação de ser verde na arte literária. O contato com o Ed reforçou minha auto-estima jornalística.
Apesar da data inaugural ser maio de 2009, postei o primeiro texto em agosto deste ano. Após isto, passei longo tempo com escassas publicações, talvez esquentando os motores. O incremento aconteceu a partir de 2010, mais precisamente setembro, com o  texto Recanto do Coração publicado em 22/09/2010, onde descrevi minhas impressões sobre o bairro Tristeza em porto Alegre, onde passei a infância e adolescência. Este texto mereceu publicação no caderno Zona Sul da Zero Hora de Porto Alegre e o considero a primeira obra do blog. A partir daí, não parei mais. Hoje em dia, quando passo duas semanas sem postar, sinto que estou em falta, pois sei que os leitores querem sempre ler algo novo e, de preferência, todos os dias. Ocorre que tenho compromissos e muita preocupação com o esmero e o gosto de postar sempre textos revisados e enxutos o que dá um trabalho danado. Além disso quero publicar assuntos satisfatórios ao leitor e que acrescente novidade.
Até este mês foram publicadas 72 narrativas, mais 11 em espanhol, minha segunda língua. Pretensioso, exibi algumas telas que fiz em óleo sobre tela e apresentei fotos de viagem, como as de Portugal, as de viagens a fronteira gaúcha, as visitas a pequenas cidades brasileiras como Nova Veneza, Pirinópolis, Caldas Novas e Goiás Velho no estado de Goiás e Barão do Triunfo no estado do Rio Grande do Sul.
Recebo atualmente um total  de 11.500 leitores o que é enorme responsabilidade. São cerca de 500 leitores todo mês que me visitam, e isto pesa na qualidade do que me proponho apresentar. Considero que publicar os textos é algo sério e só o faço quando está tão próximo do ótimo quanto possível, mas mesmo assim conto com comentários de alguns leitores, o que acho muito bom.
Pode o leitor ter certeza que nas minhas narrativas, grande parte é composta de realidade, mas como a ficção dá o gostinho saboroso nas histórias, também existe. Na verdade até nos documentários cabe ficção. Escrever para o blog é por demais prazeroso e muitos textos provocaram comentários interessantes e cada vez que os recebo, melhoro mais um pouco. O escritor e o leitor se harmonizam num processo de criação e perfeição constantes. 

sábado, 22 de setembro de 2012

O FILHOTE QUE CAIU DO NINHO ANTES DE VOAR

(Google Imagens)

Histórias de desventuras familiares de dependente químico existem inúmeras. Chocantes, podem conter superações incríveis, principalmente quando o adicto assume a doença e conscientiza que só ele pode tratar. Esta, ilustra a problemática e diz respeito ao casal que conheci em viagem a Porto Alegre.
A afinidade com a família aconteceu no aeroporto, enquanto esperávamos o embarque. Iniciou com assunto corriqueiro mas o estado de ansiedade de ambos, gerou a empatia necessária para um diálogo transformador. Acompanhavam o filho para internação em clínica. Os três estavam exauridos pela situação.
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1 – A expulsão de casa

Com apenas 26 anos este rapaz viveu intensa e perigosamente. Foram sumiços de objetos dentro de casa para sustentar o vício, roubos, assaltos simples, depois a mão armada e por fim prisões e ameaças de morte. Piorou quando os pais cansaram das estripulias e o expulsaram de casa. Sentiam-se impotentes perante a adicção e resolveram abrir mão do filho.
A saída de casa foi traumática e, sem compreender nada da vida, o jovem se viu na rua sem teto e comida. Num primeiro momento, odiou os pais.  Anos mais tarde, amou-os pela atitude corajosa.
– Só compreendi a gravidade da situação e o problema que causava a família, ao ser colocado para fora de casa – fala pausada, parecia dopado por forte medicação. As palavras saíam devagar, forçadas e vez por outra desconexas. – Doeu-me sair de casa moço, não desejo isso a ninguém.
Minha posição no avião facilitava ouvir pai e filho. Sentara no corredor por comodidade de acesso ao banheiro. Ao meu lado direito o pai, na janela a mãe, olhando a pista que se distanciava. Do lado esquerdo, após o corredor, o rapaz, pouco mais que um menino. As mãos queimadas pelo vício. Ficamos em silêncio enquanto o comandante prestava informações sobre o vôo que já iniciara a plena altura. Logo agradeceu, desligou o microfone e voltamos a falar. Comentei sobre as dificuldades da vida e o jovem  entendeu a senha para continuar o relato.
– Quando meu pai me expulsou, estava ameaçado de morte pelos traficantes e naquela noite recebi cobrança dura. Enquanto caminhava sem rumo pela rua, uma moto cortou a frente. Duas figuras desceram. Reconheci e, antes que encostassem em mim, falei precisar de tempo. Um deles fez a volta e veio por trás e recebi violento golpe na nuca. Desabei sem forças, mas  consciente.
Interessei-me pelo relato e virei o corpo para ficar de frente ao perceber que certas coisas um estranho ouve melhor. O pai aguçou o ouvido, demonstrando desconhecer a parte da história. Percebi no tom de voz, nos olhos úmidos e na fala mansa, palavras vindas do coração, de uma profundidade doída de quem padecera na carne.



2 – A vida ensina

– Após este primeiro golpe, lembro apenas que caí e um chute no rosto brotou o gosto de sangue na boca. Acho que desmaiei. Perdi a noção do tempo que fiquei desacordado. – Encurvado, relembrava os fatos pela primeira vez e percebi a inocência de menino. Ofereci o lenço de papel que carrego. Aceitou e assuou o nariz com estardalhaço. A senhora ao lado, encolheu-se. Ao viver as ruas, adquirira hábitos do meio. Continuou.
– Acordei na esquina da rua que depois soube ser de cidade satélite. Em frente ao nariz um coturno e quando olhei para cima, vi o vulto fardado. Polícia. Eram três. Levei um chute no estômago e foi só. Deixaram-me. Não merecia atenção. Acompanhei-os com os olhos e, com dificuldade levantei cambaleando. Estava fraco do espancamento do dia anterior. Sentia-me um caco de madeira triturada e lembrei da minha cama. Caí no chão e dormi de novo. Acordei a noite, moído e ensanguentado. A vontade de usar a droga me assolava e ao ver um menino com tênis, ameacei-o e roubei. Corri para a boca e troquei pela primeira pedra de crack do dia. Depois juntei a três desconhecidos e roubamos a bolsa de uma mulher. Compramos dez pedras com o dinheiro e dividimos. Dormi dopado esta noite e ao acordar, o sol alto e o calor mormacento me incomodaram. Senti fome. Lembrei do café da manhã de mãe. O corpo era uma dor só. Não dava para saber onde doía mais. Consegui levantar e comecei a busca por comida. Ao dobrar uma rua, avistei o cartaz de supermercado. Apressei o passo até a lixeira, onde vi um pacote de papel. Sem parar, peguei-o e abri caminhando em direção a sombra do estacionamento, escondendo dos seguranças. Sentei ao lado de um rato que olhava desconfiado. Era um sanduíche e, ali mesmo comi, não como mendigo, mas como aprendera, mastigando vagarosamente, com a boca fechada. Senti o gosto da carne, do catchup, da maionese e do pão. Alguém o descartara quase inteiro. – Interrompeu a narrativa buscando minha cumplicidade e complementou – O senhor se surpreenderia ao ver o desperdício que o povo descarta. Graças a Deus, pois assim o pessoal de rua tem o que comer.
Conversar em avião tem inconveniente, fica-se com o pescoço torcido. Olhei para o outro lado, onde estavam os pais. A mãe solitária e distante, estava alienada pelo barulho dos motores, mesmo se ouvisse o rapaz, não choraria. As lágrimas secaram. O pai, mais perto, se emocionava. Coloquei a mão sobre seu ombro e ele baixou a cabeça.
Retornei atenção ao jovem, que continuou.
– A fome continuava e voltei às lixeiras, onde fui premiado por quatro bananas e um yogurte pela metade. Agora estava alimentado e saudável. Ou quase. Novas investidas da droga assolavam. Levantei e caminhei as seis horas seguintes até o anoitecer, sem rumo. Parava em algum muro, deitava e dormia e o tempo passava. Juntei-me a um grupo que seguia para boca de fumo. A cabeça só pensava no consumo e, quando percebi chegamos. Era no local de onde tinha o débito. Tentei voltar, mas era tarde. Uns quatro me cercaram e, diante de minha negativa em pagá-los, começaram a bater. No início até sentia dores das pancadas, mas logo o corpo adormeceu e a voz deles ficou distante e perdi os sentidos. – Sua fragilidade pode ser comparada ao filhote de pássaro que cai do ninho antes de aprender a voar.


3 – A redenção

O jovem olhou o pai e pediu que continuasse o relato. Antes de começar, o homem secou a coriza que teimava em pingar da ponta do nariz. Depois iniciou uma fala difícil, muito baixa.
– Eram seis horas da manhã quando recebi o telefonema do hospital avisando que nosso filho fora encontrado sangrando na rua. Minha mulher e eu atendemos ao chamado imediatamente e saímos sem café. Naquela manhã chovia muito, mas mesmo assim, fizemos o trajeto do Plano a Samambaia em quinze minutos. Quantas vezes ainda teríamos que aguentar isto? – A voz do pai era gutural e rouca e percebi que a mãe ouvia e as lágrimas ainda existiam. Baixou a cabeça e secou-as num lencinho rosa. Quando se recuperou, continuou a narrativa.
– Quando chegamos ao hospital, o médico recebeu de pé. Disse que achou o número do telefone colado na carteira de identidade e que agora o menino estava em coma induzido. O maxilar estava quebrado, assim como um braço, a perna esquerda e, o mais grave, quatro coágulos no cérebro estavam drenando. A situação era grave e impossível de precisar o que vinha pela frente. Foram 45 dias de dor com visitas diárias a UTI e nosso garotinho entre a vida e a morte. Após este tempo, saiu do coma e passou por várias cirurgias. No dia que recebeu alta, pediu ajuda e declarou querer uma clínica de recuperação.
Ficamos todos em silêncio e percebi naquela família destroçada o quanto um elemento pode afetar a harmonia e a paz. O problema deles está longe do fim. Os pais precisam ter consciência de sua impotência e que o filho deve ser o responsável pelo tratamento. O adicto deve promover seu cuidado, pois são os melhores cuidadores de si mesmos.
Após a pausa, a mãe se sentiu fortalecida a continuar.
– Nosso filho parecia um indigente no hospital. O pé inchado e cascudo. O senhor não imagina. – fiz sinal que sim, que podia imaginar e ela continuou em tom de confidência. – Ao ver meu menino na UTI, lembrei quando o acalentava a chorar no bercinho. Muitas noites acordei para verificar se respirava, chegava a colocar um espelho na frente do nariz. – a dor da mãe contaminava, fez um silêncio breve absorvida em recordações e continuou – sempre foi um menino fraco, de peso aquém da idade. Tivemos que tratá-lo diferente dos outros.
O comandante avisou para apertarmos os cintos, pois o vôo chegara em Porto Alegre. Um a um suspiramos.
O avião aterrissou com forte impacto na pista. Quando estacionou, nos despedimos dentro da aeronave. Perguntei ao pai se poderia publicar a história sem identificar as pessoas e recebi um sinal que sim com cabeça e complementou que poderia ser útil aos leitores.
No saguão, acenamos. Como estava com bagagem de mão dirigi-me a porta principal do aeroporto Salgado Filho que, quando abriu deixou entrar um vento gelado.
Puxei o casaco da maleta. Três graus na capital gaúcha.

sábado, 15 de setembro de 2012

PORTO ALEGRE É DEMAIS

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Frequentemente viajo a Porto Alegre e por isso identifico dois tipos de habitantes, quando o tema é a violência. Há os que vivem presos dentro de casa, intimidados com notícias geradas pela televisão, jornais e revistas. Deslocam-se ao trabalho e voltam correndo a casa onde se aferrolham por trás de trancas, cercas elétricas e, alguns moradores de condomínio, se entregam a vigilância armada, espreitando pelas frestas o mundo lá fora. Os outros são os que mesmo sabendo de tudo, ignoram, acreditando que nada lhes acontecerá, desde que sigam o exemplo dos escoteiros e fiquem “sempre alerta”. Com certo cuidado, seguem a vida normal. Pertenço ao segundo time. Quando chego à cidade, procuro despir-me dos medos, porque entregar-me é ficar preso dentro de casa, acreditando em uma  realidade assustadora formatada pelos meios de comunicação. Transito pelas ruas, de ônibus como nos velhos tempos que morava na cidade ou de carro, procurando locais para diversão. Durante o dia, a pé, miro a bela paisagem do Guaíba onde nos  tempos de adolescente nadava e pescava lambaris que vó fritava para o almoço.
Hospedo na casa de mãe na zona sul e por lá mesmo percebo a multiplicação dos enclausurados. As cercas elétricas emendam umas as outras e chego a conclusão que vivo em uma situação irreal, baseada nos anos que por lá era tranquilo de viver. Às vezes tenho a sensação que pouco conheço sobre a realidade de Porto Alegre.
Muitos moradores de hoje não conheceram a zona sul quando totalmente aberta aos moradores, e com vizinhos tomando mate e conversando sentados nas calçadas. São pessoas que economizaram muito para aquisição de suas casas e acabaram escravizadas dentro delas. Só saem para outra clausura, a dos shoppings. E assim entram no círculo vicioso de trabalhar para consumir. Neurose que está levando os moradores a desconhecerem quem mora ao lado. Porque lugar para consumir em Porto Alegre é o que mais tem. Sem contar os pequenos, são cerca de dez shoppings entre médio e grande porte.  Conto por baixo, pois alguns nem conheço. Nos bairros, pequenos shoppings com seguranças e estacionamento para o conforto dos frequentadores, mas também ali, impera a sensação da clausura.
Leio um artigo no jornal local que Porto Alegre foi roubada dos Porto-alegrenses. Pura verdade. A capital está reclusa. Além do laser, as compras se restringem aos shoppings. Quem hoje vai ao centro comprar uma camisa, calça, sapatos ou aparelhos eletro/eletrônicos? Nem sei como sobrevivem estas lojas.
Em Brasília, vivo acostumado a frequentar shopping. Desde que decidi morar na capital federal, em 1974, é o único local que a maioria do brasiliense conhece para comprar. Só me dirijo ao comércio de entre quadras para adquirir pregos, parafusos ou achar um sapateiro. De resto, frequento os mega comércios, pois Brasília assim foi construída, para os habitantes não terem o trabalho de caminhar para consumir. Aliás, foi na capital federal que conheci shopping, como também acostumei a locomover apenas de carro tal o descaso com transporte coletivo, pois a capital federal foi propositalmente concebida para o automóvel. O que não entendo é como Porto Alegre, que possui bom sistema de transporte, seja surrupiada dos habitantes pela bandidagem.
Escrevo sobre isto para deixar claro que nego enclausurar em Porto Alegre. Só vou a shopping quando é preciso e para levar mãe para passeio seguro, banheiros limpos, alimentação diversificada, possibilidades de compras sem atropelos e onde inexistem degraus de calçadas para tropeçar.
Ao contrário, prefiro passeios por Ipanema para vigiar o por do sol que continua lindo e exercitar na Avenida Diário de Notícias. À noite, frequento os barzinhos ou vou a algum clube de dança, que por lá existem muitos. Prefiro curtir a sensação de segurança, talvez pelo tempo afastado da capital gaúcha o que provoca falsa imunidade que pretendo cultivar. Afinal, tenho meus direitos de ir e vir na capital gaúcha.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O MUNDO DÁ VOLTAS, BACELAR

(Google Imagens)

Após dois dias em coma, Bacelar acorda e, ao tentar mexer pernas,  braços ou simplesmente os dedos dos pés, percebe completa inanição. A única sensação de estar vivo foi o zoar do aparelho de monitoramento cardíaco. Guardava na lembrança a fisgada no lado esquerdo do rosto, a forte dor de cabeça e o repuxar teimoso do lado direito que o fez cruzar sinal de trânsito vermelho com o pé no acelerador. As fortes luzes do teto queimavam os olhos e neste cenário, todo branco, com odor de éter, onde o tempo deixava de ter importância, ouviu a voz familiar de Graça sua filha, que o alegrou e a seguir a do genro que o entristeceu. Percebeu-os aos pés da cama em conversa sussurrada.
O que ouve com o bode velho teimoso? – falou Gerson a mulher.
Parece que brigou com um diretor e acabou sofrendo um AVC de grau cinco, o mais grave segundo o médico. Mas pelo amor de Deus, pára de chamar meu pai assim – disse a filha, abatida e desanimada. – afinal, tudo que temos é graças a seu trabalho duro. Mamãe demorou a avisar achando que era coisa passageira.
O paciente ouvia tudo na solidão e imobilidade da doença e pensava o quanto aquele idiota do genro tivera parcela de participação.
Desde o início do namoro, dizia à mulher querer um homem melhor para a filha. Antes da chegada do “intruso”, como se referia, a família era unida e os planos seguiam de vento em popa. A fábrica estava na melhor fase e programava a exportação de produtos a China. A coisa desandou quando a filha única conheceu Gerson e quatro meses depois engravidou, garantindo assim prevalecer seu desejo de se casar com o rapaz. Em seis meses casaram em uma cerimônia aquém da programada.  Todo o movimento contrário ao casamento esmorecera frente ao amor entre os jovens. Amor capaz de  remover obstáculos e dobrar o pai furioso. Na época do casamento, a mulher o convenceu a patrocinar uma grande festa, que foi desprezada pelo genro soberbo e o enlace aconteceu na igreja perto dos pais do noivo e a festa no salão paroquial, embalada por música de pagodeiros, regada a cerveja e doces encomendados no supermercado. Bacelar então montou casa para os jovens, que foi abandonada e o casal passou a residir em casa vizinha aos pais do marido.
Gerson era rapaz de hábitos simples e até o casamento, morava em casa de dois cômodos com os pais na Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Mal terminara o segundo grau, a filha do empresário, administradora de empresa, fora preparada para gerenciar os negócios. O pai não contava é com Graça fisgada pelo coração sonhador e simples do rapaz. Bacelar tinha certeza que fora a busca da filha por alguém parecido com ele, também de origem humilde o que influenciou na escolha.
Na única vez que foi visitar a filha, Bacelar não economizou palavras para exprimir a precariedade da moradia e tanto humilhou como desafiou o genro a dar o mesmo conforto que Graça tinha antes do casamento. Desta única vez que os visitou, floresceu a dor de cabeça do pai que nunca mais o deixou. O desgosto tomou conta da mansão do empresário que permanecia quieto e solitário em casa, pouco falando com a mulher.  
As tentativas de reaproximação entre os dois, feitas por Graça, para que o rapaz trabalhasse na fábrica, eram rechaçadas pelo pai que afirmava categórico:

Um dia, minha filha, você irá voltar para casa sem “o intruso” e terá novamente as roupas de grife que você adora usar. Hoje você veste somente roupas de feirão. Este idiota não tem condições de assumir a empresa.
Bacelar, imerso forçadamente em pensamentos era observado pelo neto que olhava o avô como a um fantasma. Dor não tinha. Notou a visão turva mas os ouvidos estavam atentos e assim escutou a mulher  cumprimentar a todos e a ele, dirigir apenas um comentário maldoso, feito por não saber que o marido a tudo escutava.
– Ta vendo no que dá querer mandar em todo mundo? Agora, todos mandam em você.
Filha, agora você pode pensar em voltar para casa, o médico falou que não há prazo para recuperação. O caso é grave e acredita em recuperação gradativa e muito lenta.
A mulher fez uma pausa para se certificar que foi entendida e continuou em tom grave.
– Agora a fábrica é sua e de Gerson e o melhor é assumir imediatamente para manter a continuidade. Falei com o contador, que amanhã reunirá a diretoria com o advogado para assumirem a gerência legalmente. Seu pai após a alta será instalado no quartinho da Clotilde no andar térreo lá de casa, onde ficará confortável.
Bacelar ouvia atentamente, impedido de qualquer reação. Apenas a mente trabalhava. A mulher saiu da sala e deixou o casal a conversar na frente do enfermo.
– Por mim, colocava o velho numa casa de saúde, afinal está um vegetal mesmo! – o rapaz destilava veneno recebido do sogro ao longo dos anos e fazia questão de demonstrar. Mesmo se soubesse que o sogro a tudo ouvia, era bem capaz de falar assim mesmo.
– Pára com isto, querido, papai sempre quis nosso conforto. Fazia tudo para mim e você usufruiu muito disto – a filha era grata ao pai.
Na verdade Gerson lembrava apenas que o sogro o humilhava a mesa nos almoços de domingos e nas reuniões familiares o classificava de formas negativas.
– Pois saiba que há tempos tomei ciência do andamento das finanças, querida. Não andam nada boas e expandir para a China é péssimo negócio, assim mandei abortar os planos. Temos que focar no Distrito Federal. Teremos que reduzir a empresa a dez por cento do que é hoje, para se manter no mercado.
Na cama, prostrado, Bacelar percebeu que nada podia fazer. Dependia de decisões de outros e concluiu que a empresa, sua propriedade e que proporcionara tanto prazer e conforto e até mesmo a filha que criou e educou nas melhores escolas, não mais lhe pertenciam. 
Fechou os olhos e passou a viver de fantasia.

domingo, 19 de agosto de 2012

RAINHA DA BATERIA

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A maquiagem de Rosilene  estava borrada quando chegou em casa. Eram dez horas da manhã e o marido havia saído para o trabalho. No pequeno e único quarto do barraco dormiam os dois filhos de sete e quatro anos. Cansada jogou-se na cama e adormeceu rapidamente e ainda ao som da bateria da escola de samba nos ouvidos e dos aplausos dos assistentes, sonhou com a avenida, as roupas e a alegria que a dominava uma vez por ano.
A semana dura de trabalho e os preparativos para o desfile envolveram-na completamente às vésperas do evento. “Carnaval é apenas uma vez por ano”, dizia ao marido quando reclamava que a perdia durante esta fase. Rosilene amava desfilar. Há dez anos, durante os meses de fevereiro era envolvida no turbilhão dos preparativos. Corte da fantasia, costura, ensaios atrasavam a chegada a casa até altas horas da noite. Por várias ocasiões amanhecera na rua. Em algumas noites, nem dormia, era chegar e iniciar os preparativos para sair. Tomar o ônibus para a Zona sul e enfrentar a dura faxina do apartamento dos patrões em Ipanema.
Nunca reclamava da rotina. É verdade que, passados os dias de folia, a culpa a abatia e se penitenciava em negligenciar o marido, os filhos, mas a sensação de desfilar na avenida compensava. Teria o que contar aos netos. Mas prometeu ao marido e filhos que este era o último ano a desfilar.
Todos os anos, durante a hora e meia do desfile, Rosilene brilhava e, ovacionada pelo público, a rainha da bateria requebrava com ancas espertas e plenas de sensualidade. Sentia-se verdadeira deusa aplaudida pela multidão que naqueles momentos a via de forma especial. Joca, o marido ficava em casa. “Prefiro ver pela televisão”. Na verdade, a preferência do marido era ficar em casa, assistindo juntos a evolução das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, “muito mais confortável e tranquilo”, falava com convicção de quem fora assaltado durante os carnavais da juventude.
Após a semana dedicada ao rei Momo, escrevia a família no Piauí.  Rosilene então colocava no envelope a foto atualizada com a fantasia daquele ano. Explicava não ter tempo de viajar e prometia, sem a preocupação de cumprir, que logo viajaria para os visitar e levar os filhos para que conhecessem. Mas, encantada pelo próximo desfile, após o carnaval, iniciava a economia, não para a viagem prometida, mas rumo ao evento do ano seguinte.
Desta vez prometera e cumpriria, “é o último ano que desfilo”. Atenderia aos pedidos dos filhos e do marido para gastar as energias e seu dinheiro em outras coisas, talvez quem sabe até na viagem ao nordeste, que o marido sozinho não dava conta de bancar. Parar com os desfiles era um esforço supremo e o marido reconhecia que conseguir isto da mulher era importante.
Acordou às três da tarde e correu ao banheiro para um banho. Precisava  aprontar e ficar bonita para fechar com chave de ouro a última noite de desfiles. Sua escola entraria na avenida as onze horas. A rede de televisão avisara que sua despedida seria destaque no principal programa da emissora no domingo seguinte.  Telefonou para o organizador e soube do repórter que a esperava. Deveria chegar, no máximo, oito da noite. Sem atrasos. De pé, tomou o caldo do feijão que o marido deixara e saiu porta afora, sem esperá-lo.
Ao ganhar à calçada, caminhava apressada até a parada de ônibus quando percebeu correria de pessoas a fugir do banco da esquina. Rosilene ficou na ponta dos pés e esticou o pescoço. No momento seguinte, percebeu um jovem com mochila nas costas que corria em sua direção. Passou por ela rapidamente perseguido por três policiais. Ouviu disparos e a vida da sambista, até então festiva, extinguiu-se.