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A
maquiagem de Rosilene estava borrada
quando chegou em casa. Eram dez horas da manhã e o marido havia saído para o
trabalho. No pequeno e único quarto do barraco dormiam os dois filhos de sete e
quatro anos. Cansada jogou-se na cama e adormeceu rapidamente e ainda ao som da
bateria da escola de samba nos ouvidos e dos aplausos dos assistentes, sonhou
com a avenida, as roupas e a alegria que a dominava uma vez por ano.
A
semana dura de trabalho e os preparativos para o desfile envolveram-na
completamente às vésperas do evento. “Carnaval é apenas uma vez por ano”, dizia
ao marido quando reclamava que a perdia durante esta fase. Rosilene amava desfilar.
Há dez anos, durante os meses de fevereiro era envolvida no turbilhão dos
preparativos. Corte da fantasia, costura, ensaios atrasavam a chegada a casa até
altas horas da noite. Por várias ocasiões amanhecera na rua. Em algumas noites,
nem dormia, era chegar e iniciar os preparativos para sair. Tomar o ônibus para
a Zona sul e enfrentar a dura faxina do apartamento dos patrões em Ipanema.
Nunca
reclamava da rotina. É verdade que, passados os dias de folia, a culpa a abatia
e se penitenciava em negligenciar o marido, os filhos, mas a sensação de
desfilar na avenida compensava. Teria o que contar aos netos. Mas prometeu ao
marido e filhos que este era o último ano a desfilar.
Todos
os anos, durante a hora e meia do desfile, Rosilene brilhava e, ovacionada pelo
público, a rainha da bateria requebrava com ancas espertas e plenas de sensualidade.
Sentia-se verdadeira deusa aplaudida pela multidão que naqueles momentos a via de
forma especial. Joca, o marido ficava em casa. “Prefiro ver pela televisão”. Na
verdade, a preferência do marido era ficar em casa, assistindo juntos a
evolução das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, “muito mais confortável e
tranquilo”, falava com convicção de quem fora assaltado durante os carnavais da
juventude.
Após
a semana dedicada ao rei Momo, escrevia a família no Piauí. Rosilene então colocava no envelope a foto atualizada
com a fantasia daquele ano. Explicava não ter tempo de viajar e prometia, sem a
preocupação de cumprir, que logo viajaria para os visitar e levar os filhos
para que conhecessem. Mas, encantada pelo próximo desfile, após o carnaval, iniciava
a economia, não para a viagem prometida, mas rumo ao evento do ano seguinte.
Desta
vez prometera e cumpriria, “é o último ano que desfilo”. Atenderia aos pedidos
dos filhos e do marido para gastar as energias e seu dinheiro em outras coisas,
talvez quem sabe até na viagem ao nordeste, que o marido sozinho não dava conta
de bancar. Parar com os desfiles era um esforço supremo e o marido reconhecia que
conseguir isto da mulher era importante.
Acordou
às três da tarde e correu ao banheiro para um banho. Precisava aprontar e ficar bonita para fechar com chave
de ouro a última noite de desfiles. Sua escola entraria na avenida as onze
horas. A rede de televisão avisara que sua despedida seria destaque no
principal programa da emissora no domingo seguinte. Telefonou para o organizador e soube do
repórter que a esperava. Deveria chegar, no máximo, oito da noite. Sem atrasos.
De pé, tomou o caldo do feijão que o marido deixara e saiu porta afora, sem
esperá-lo.
Ao
ganhar à calçada, caminhava apressada até a parada de ônibus quando percebeu correria
de pessoas a fugir do banco da esquina. Rosilene ficou na ponta dos pés e
esticou o pescoço. No momento seguinte, percebeu um jovem com mochila nas
costas que corria em sua direção. Passou por ela rapidamente perseguido por três
policiais. Ouviu disparos e a vida da sambista, até então festiva,
extinguiu-se.
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