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Histórias de desventuras familiares de dependente
químico existem inúmeras. Chocantes, podem conter superações incríveis,
principalmente quando o adicto assume a doença e conscientiza que só ele pode
tratar. Esta, ilustra a problemática e diz respeito ao casal que conheci em viagem
a Porto Alegre.
A afinidade com a família aconteceu no aeroporto,
enquanto esperávamos o embarque. Iniciou com assunto corriqueiro mas o estado
de ansiedade de ambos, gerou a empatia necessária para um diálogo transformador.
Acompanhavam o filho para internação em clínica. Os três estavam exauridos pela
situação.
.
1 – A expulsão
de casa
Com apenas 26 anos este rapaz viveu intensa e
perigosamente. Foram sumiços de objetos dentro de casa para sustentar o vício,
roubos, assaltos simples, depois a mão armada e por fim prisões e ameaças de
morte. Piorou quando os pais cansaram das estripulias e o expulsaram de casa.
Sentiam-se impotentes perante a adicção e resolveram abrir mão do filho.
A saída de casa foi traumática e, sem compreender nada
da vida, o jovem se viu na rua sem teto e comida. Num primeiro momento, odiou
os pais. Anos mais tarde, amou-os pela
atitude corajosa.
– Só compreendi a gravidade da situação e o problema
que causava a família, ao ser colocado para fora de casa – fala pausada, parecia
dopado por forte medicação. As palavras saíam devagar, forçadas e vez por outra
desconexas. – Doeu-me sair de casa moço, não desejo isso a ninguém.
Minha posição no avião facilitava ouvir pai e filho.
Sentara no corredor por comodidade de acesso ao banheiro. Ao meu lado direito o
pai, na janela a mãe, olhando a pista que se distanciava. Do lado esquerdo, após
o corredor, o rapaz, pouco mais que um menino. As mãos queimadas pelo vício. Ficamos
em silêncio enquanto o comandante prestava informações sobre o vôo que já
iniciara a plena altura. Logo agradeceu, desligou o microfone e voltamos a
falar. Comentei sobre as dificuldades da vida e o jovem entendeu a senha para continuar o relato.
– Quando meu pai me expulsou, estava ameaçado de
morte pelos traficantes e naquela noite recebi cobrança dura. Enquanto caminhava
sem rumo pela rua, uma moto cortou a frente. Duas figuras desceram. Reconheci
e, antes que encostassem em mim, falei precisar de tempo. Um deles fez a volta
e veio por trás e recebi violento golpe na nuca. Desabei sem forças, mas consciente.
Interessei-me pelo relato e virei o corpo para ficar
de frente ao perceber que certas coisas um estranho ouve melhor. O pai aguçou o
ouvido, demonstrando desconhecer a parte da história. Percebi no tom de voz, nos
olhos úmidos e na fala mansa, palavras vindas do coração, de uma profundidade
doída de quem padecera na carne.
2 – A vida
ensina
– Após este primeiro golpe, lembro apenas que caí e
um chute no rosto brotou o gosto de sangue na boca. Acho que desmaiei. Perdi a
noção do tempo que fiquei desacordado. – Encurvado, relembrava os fatos pela
primeira vez e percebi a inocência de menino. Ofereci o lenço de papel que
carrego. Aceitou e assuou o nariz com estardalhaço. A senhora ao lado,
encolheu-se. Ao viver as ruas, adquirira hábitos do meio. Continuou.
– Acordei na esquina da rua que depois soube ser de cidade
satélite. Em frente ao nariz um coturno e quando olhei para cima, vi o vulto
fardado. Polícia. Eram três. Levei um chute no estômago e foi só. Deixaram-me. Não
merecia atenção. Acompanhei-os com os olhos e, com dificuldade levantei cambaleando.
Estava fraco do espancamento do dia anterior. Sentia-me um caco de madeira
triturada e lembrei da minha cama. Caí no chão e dormi de novo. Acordei a
noite, moído e ensanguentado. A vontade de usar a droga me assolava e ao ver um
menino com tênis, ameacei-o e roubei. Corri para a boca e troquei pela primeira
pedra de crack do dia. Depois juntei a três desconhecidos e roubamos a bolsa de
uma mulher. Compramos dez pedras com o dinheiro e dividimos. Dormi dopado esta
noite e ao acordar, o sol alto e o calor mormacento me incomodaram. Senti fome.
Lembrei do café da manhã de mãe. O corpo era uma dor só. Não dava para saber
onde doía mais. Consegui levantar e comecei a busca por comida. Ao dobrar uma
rua, avistei o cartaz de supermercado. Apressei o passo até a lixeira, onde vi
um pacote de papel. Sem parar, peguei-o e abri caminhando em direção a sombra do
estacionamento, escondendo dos seguranças. Sentei ao lado de um rato que olhava
desconfiado. Era um sanduíche e, ali mesmo comi, não como mendigo, mas como aprendera,
mastigando vagarosamente, com a boca fechada. Senti o gosto da carne, do catchup, da maionese e do pão. Alguém o descartara
quase inteiro. – Interrompeu a narrativa buscando minha cumplicidade e
complementou – O senhor se surpreenderia ao ver o desperdício que o povo
descarta. Graças a Deus, pois assim o pessoal de rua tem o que comer.
Conversar em avião tem inconveniente, fica-se com o
pescoço torcido. Olhei para o outro lado, onde estavam os pais. A mãe solitária
e distante, estava alienada pelo barulho dos motores, mesmo se ouvisse o rapaz,
não choraria. As lágrimas secaram. O pai, mais perto, se emocionava. Coloquei a
mão sobre seu ombro e ele baixou a cabeça.
Retornei atenção ao jovem, que continuou.
– A fome continuava e voltei às lixeiras, onde fui
premiado por quatro bananas e um yogurte
pela metade. Agora estava alimentado e saudável. Ou quase. Novas investidas da
droga assolavam. Levantei e caminhei as seis horas seguintes até o anoitecer, sem
rumo. Parava em algum muro, deitava e dormia e o tempo passava. Juntei-me a um
grupo que seguia para boca de fumo. A cabeça só pensava no consumo e, quando
percebi chegamos. Era no local de onde tinha o débito. Tentei voltar, mas era
tarde. Uns quatro me cercaram e, diante de minha negativa em pagá-los,
começaram a bater. No início até sentia dores das pancadas, mas logo o corpo adormeceu
e a voz deles ficou distante e perdi os sentidos. – Sua fragilidade pode ser comparada
ao filhote de pássaro que cai do ninho antes de aprender a voar.
3 – A
redenção
O jovem olhou o pai e pediu que continuasse o relato.
Antes de começar, o homem secou a coriza que teimava em pingar da ponta do
nariz. Depois iniciou uma fala difícil, muito baixa.
– Eram seis horas da manhã quando recebi o telefonema
do hospital avisando que nosso filho fora encontrado sangrando na rua. Minha
mulher e eu atendemos ao chamado imediatamente e saímos sem café. Naquela manhã
chovia muito, mas mesmo assim, fizemos o trajeto do Plano a Samambaia em quinze
minutos. Quantas vezes ainda teríamos que aguentar isto? – A voz do pai era
gutural e rouca e percebi que a mãe ouvia e as lágrimas ainda existiam. Baixou
a cabeça e secou-as num lencinho rosa. Quando se recuperou, continuou a
narrativa.
– Quando chegamos ao hospital, o médico recebeu de pé.
Disse que achou o número do telefone colado na carteira de identidade e que agora
o menino estava em coma induzido. O maxilar estava quebrado, assim como um
braço, a perna esquerda e, o mais grave, quatro coágulos no cérebro estavam
drenando. A situação era grave e impossível de precisar o que vinha pela
frente. Foram 45 dias de dor com visitas diárias a UTI e nosso garotinho entre
a vida e a morte. Após este tempo, saiu do coma e passou por várias cirurgias. No
dia que recebeu alta, pediu ajuda e declarou querer uma clínica de recuperação.
Ficamos todos em silêncio e percebi naquela família
destroçada o quanto um elemento pode afetar a harmonia e a paz. O problema
deles está longe do fim. Os pais precisam ter consciência de sua impotência e que
o filho deve ser o responsável pelo tratamento. O adicto deve promover seu
cuidado, pois são os melhores cuidadores de si mesmos.
Após a pausa, a mãe se sentiu fortalecida a continuar.
– Nosso filho parecia um indigente no hospital. O pé
inchado e cascudo. O senhor não imagina. – fiz sinal que sim, que podia
imaginar e ela continuou em tom de confidência. – Ao ver meu menino na UTI, lembrei
quando o acalentava a chorar no bercinho. Muitas noites acordei para verificar
se respirava, chegava a colocar um espelho na frente do nariz. – a dor da mãe
contaminava, fez um silêncio breve absorvida em recordações e continuou – sempre
foi um menino fraco, de peso aquém da idade. Tivemos que tratá-lo diferente dos
outros.
O comandante avisou para apertarmos os cintos, pois o
vôo chegara em Porto Alegre. Um a um suspiramos.
O avião aterrissou com forte impacto na pista. Quando
estacionou, nos despedimos dentro da aeronave. Perguntei ao pai se poderia
publicar a história sem identificar as pessoas e recebi um sinal que sim com
cabeça e complementou que poderia ser útil aos leitores.
No saguão, acenamos. Como estava com bagagem de mão
dirigi-me a porta principal do aeroporto Salgado Filho que, quando abriu deixou
entrar um vento gelado.
Puxei o casaco da maleta. Três graus na capital
gaúcha.
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