(Google Imagens) |
Após dois dias em coma, Bacelar acorda e, ao tentar mexer
pernas, braços ou simplesmente os dedos
dos pés, percebe completa inanição. A única sensação de estar vivo foi o zoar do
aparelho de monitoramento cardíaco. Guardava na lembrança a fisgada no lado
esquerdo do rosto, a forte dor de cabeça e o repuxar teimoso do lado direito que
o fez cruzar sinal de trânsito vermelho com o pé no acelerador. As fortes luzes
do teto queimavam os olhos e neste cenário, todo branco, com odor de éter, onde
o tempo deixava de ter importância, ouviu a voz familiar de Graça sua filha, que
o alegrou e a seguir a do genro que o entristeceu. Percebeu-os aos pés da cama
em conversa sussurrada.
–
O que ouve com o bode velho teimoso? – falou
Gerson a mulher.
–
Parece que brigou com um diretor e acabou
sofrendo um AVC de grau cinco, o mais grave segundo o médico. Mas pelo amor de
Deus, pára de chamar meu pai assim – disse a filha, abatida e desanimada. –
afinal, tudo que temos é graças a seu trabalho duro. Mamãe demorou a avisar
achando que era coisa passageira.
O paciente ouvia tudo na solidão e imobilidade da
doença e pensava o quanto aquele idiota do genro tivera parcela de participação.
Desde o início do namoro, dizia à mulher querer um
homem melhor para a filha. Antes da chegada do “intruso”, como se referia, a
família era unida e os planos seguiam de vento em popa. A fábrica estava na
melhor fase e programava a exportação de produtos a China. A coisa desandou
quando a filha única conheceu Gerson e quatro meses depois engravidou,
garantindo assim prevalecer seu desejo de se casar com o rapaz. Em seis meses casaram
em uma cerimônia aquém da programada. Todo
o movimento contrário ao casamento esmorecera frente ao amor entre os jovens.
Amor capaz de remover obstáculos e dobrar
o pai furioso. Na época do casamento, a mulher o convenceu a patrocinar uma
grande festa, que foi desprezada pelo genro soberbo e o enlace aconteceu na
igreja perto dos pais do noivo e a festa no salão paroquial, embalada por música
de pagodeiros, regada a cerveja e doces encomendados no supermercado. Bacelar
então montou casa para os jovens, que foi abandonada e o casal passou a residir
em casa vizinha aos pais do marido.
Gerson era rapaz de hábitos simples e até o
casamento, morava em casa de dois cômodos com os pais na Ceilândia, cidade
satélite de Brasília. Mal terminara o segundo grau, a filha do empresário,
administradora de empresa, fora preparada para gerenciar os negócios. O pai não
contava é com Graça fisgada pelo coração sonhador e simples do rapaz. Bacelar tinha
certeza que fora a busca da filha por alguém parecido com ele, também de origem
humilde o que influenciou na escolha.
Na única vez que foi visitar a filha, Bacelar não
economizou palavras para exprimir a precariedade da moradia e tanto humilhou
como desafiou o genro a dar o mesmo conforto que Graça tinha antes do
casamento. Desta única vez que os visitou, floresceu a dor de cabeça do pai que
nunca mais o deixou. O desgosto tomou conta da mansão do empresário que
permanecia quieto e solitário em casa, pouco falando com a mulher.
As tentativas de reaproximação entre os dois, feitas
por Graça, para que o rapaz trabalhasse na fábrica, eram rechaçadas pelo pai
que afirmava categórico:
–
Um dia, minha filha, você irá voltar para casa
sem “o intruso” e terá novamente as roupas de grife que você adora usar. Hoje
você veste somente roupas de feirão. Este idiota não tem condições de assumir a
empresa.
Bacelar, imerso forçadamente em pensamentos era
observado pelo neto que olhava o avô como a um fantasma. Dor não tinha. Notou a
visão turva mas os ouvidos estavam atentos e assim escutou a mulher cumprimentar a todos e a ele, dirigir apenas
um comentário maldoso, feito por não saber que o marido a tudo escutava.
– Ta vendo no que dá querer mandar em todo mundo?
Agora, todos mandam em você.
–
Filha, agora você pode pensar em voltar para
casa, o médico falou que não há prazo para recuperação. O caso é grave e acredita
em recuperação gradativa e muito lenta.
A mulher fez uma pausa para se certificar que foi
entendida e continuou em tom grave.
– Agora a fábrica é sua e de Gerson e o melhor é
assumir imediatamente para manter a continuidade. Falei com o contador, que
amanhã reunirá a diretoria com o advogado para assumirem a gerência legalmente.
Seu pai após a alta será instalado no quartinho da Clotilde no andar térreo lá
de casa, onde ficará confortável.
Bacelar ouvia atentamente, impedido de qualquer
reação. Apenas a mente trabalhava. A mulher saiu da sala e deixou o casal a conversar
na frente do enfermo.
– Por mim, colocava o velho numa casa de saúde,
afinal está um vegetal mesmo! – o rapaz destilava veneno recebido do sogro ao
longo dos anos e fazia questão de demonstrar. Mesmo se soubesse que o sogro a
tudo ouvia, era bem capaz de falar assim mesmo.
– Pára com isto, querido, papai sempre quis nosso conforto.
Fazia tudo para mim e você usufruiu muito disto – a filha era grata ao pai.
Na verdade Gerson lembrava apenas que o sogro o
humilhava a mesa nos almoços de domingos e nas reuniões familiares o
classificava de formas negativas.
– Pois saiba que há tempos tomei ciência do andamento
das finanças, querida. Não andam nada boas e expandir para a China é péssimo
negócio, assim mandei abortar os planos. Temos que focar no Distrito Federal. Teremos
que reduzir a empresa a dez por cento do que é hoje, para se manter no mercado.
Na
cama, prostrado, Bacelar percebeu que nada podia fazer. Dependia de decisões de
outros e concluiu que a empresa, sua propriedade e que proporcionara tanto prazer
e conforto e até mesmo a filha que criou e educou nas melhores escolas, não
mais lhe pertenciam. Fechou os olhos e passou a viver de fantasia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é importante