LEIA TAMBÉM:"ARQUIVO" e "PÁGINAS"

Dificuldades para comentar? Envie para o email : marcotlin@gmail.com
****************************************************

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ENCONTROS PELOS ARES

(Google Imagens)
A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida
Vinicius de Moraes

— Poderia me dizer que fila é essa?
Recém o alto falante chamara seu voo e estava atordoado com o barulho dos passageiros procurando as filas. Voltou-se e percebeu a jovem mulher sorridente. Por breves instantes, apenas sorriram. O burburinho vindo era ensurdecedor. Aproximou o rosto para ouvir melhor. O hálito da mulher era agradável, a voz macia, a respiração cadenciada. Haviam três filas enormes. Como na dele estava só, imaginou que errara.
— Para ser sincero, não sei. Entrei na outra fila e a moça da companhia aérea apontou para cá. Vai ver pensa que sou político brasileiro — Riram amistosamente. Comentaram sobre as dez horas de voo que enfrentariam até o destino e sobre como a Europa é pequena para tantas línguas.
Quando a atendente abriu a corda e os mandou entrar, as filas iniciaram um movimento lento e tumultuado com a conferencia de passaportes e bilhetes aéreos dos cerca de 600 passageiros.
Antes que se perdessem de vista, o homem gritou para a mulher:
— Ei! Se tiver poltrona vaga ao seu lado, avisa. Assim, vamos conversando e o voo fica curto — A mulher riu e fez sinal com o polegar para cima.
Dentro da aeronave, localizou a poltrona e arrumou a bagagem no guarda-volumes. Preferia comprar o banco de corredor para transitar. Os passageiros chegavam e assumiam as poltronas e os compartimentos guarda-volumes. O banco na janela, permanecia vazio. Percebeu alguém a acenar. Era a mulher da fila. Respondeu ao aceno. Estava cinco bancos a sua frente, na fileira do meio.
— Senhores passageiros, embarque encerrado. Iniciamos procedimentos de portas.
Perguntou à Comissária se poderia convidar a amiga a ocupar a poltrona. Recebeu o consentimento e, ao sinal, a mulher pegou a bagagem de mão e sentou-se ao lado. O avião taxiou lentamente, iniciou a corrida para a decolagem e o continente europeu, em segundos, ficava distante.
— Estava em visita a minha filha em Portugal. Ela passa por problemas. É a primeira vez que mora fora de casa. Com minha visita, percebi melhora — disse a mulher.
Nesse desabafo, notou que era mais bonita do que quando a havia visto no saguão de embarque. A inquietude com a filha, a fez séria. O homem comentou o quanto é difícil para as mães ter filho longe
— As mães custam a cortar o cordão umbilical. Na maioria das vezes, nem conseguem esse feito. Já os pais, são mais realistas. Os filhos precisam disso.
O avião seguia roncando as turbinas rumo ao destino. Vez por outra,  turbulências desconfortáveis aconteciam, pouco percebidas, pois a conversa seguia.
— Quando separei, meu marido desapareceu e tive que lutar sozinha para o sustento e conforto de meu casal de filhos — ficou em silêncio alguns instantes e acrescentou — não sei porque conto detalhes de minha vida, afinal você é um estranho.
— Será que o encontro entre pessoas é um acaso da vida ou existe uma administração a coordenar e facilitar as relações? — Perguntou o homem
— Não sei. Outro dia minha filha e eu íamos de Lisboa para Paris e a companhia aérea colocou tanta dificuldade na troca de poltrona para sentarmos juntas que desisti. Mas hoje foi facílimo. Vá entender.
Eram vinte e uma horas. O serviço de jantar foi iniciado. Durante a refeição, pediram uma taça de vinho tinto e após, outra para fechar a janta. O leve bem-estar, logo se fez sentir entre eles e a conversa passou a rolar solta. Falaram sobre a diferença de qualidade dos vinhos europeus e, principalmente, dos preços. A partir daí, a conversa seguiu pelo emocional.
— Faz tempo que não tenho namorado. Minha criação foi muito rígida e tenho dificuldade com os sentimentos. A relação com meu ex-marido não deixou saudade. Nunca mais nos vimos e nunca procurou os filhos.
— Uma relação que durou o tempo necessário e deu o fruto que tinha que dar. Dois filhos. E pelo jeito que fala deles, tenho certeza que os curte muito.
— É verdade.
O resíduo do jantar foi recolhido e as luzes apagadas para os passageiros dormirem. Entre eles, a penumbra serviu para aproximar melhor. Faltava sono.
— As vezes sinto falta de um companheiro. Principalmente para trocar ideias com relação aos filhos.
— O casamento, aliás, a relação com alguém faz falta e contribui para o crescimento de cada um. — Após breve silêncio, falou baixinho no ouvido da mulher — Está esfriando.
Abriram os cobertores e se taparam para enfrentar a longa noite de travessia do Atlântico.
— Vamos juntar os dois cobertores para esquentar melhor?
— Ok! Vou subir esse apoio de braço que machuca minhas costelas —respondeu o homem.
Riram e a mulher comentou que o sorriso do homem denotava sinceridade. Admitiu desconhecer porque, mas havia contado muita coisa de sua vida que nunca contara a ninguém.
Com a proximidade, encostaram-se e o aquecimento fez bem aos dois. O frio pedia mais agasalho, mas sentados lado a lado, cobertos com dois cobertores, amenizou. Os passageiros se preparavam para dormir. O silêncio confortável entre os dois, era um convite para aproximação.
O avião deu um solavanco e iniciou pequenos tremores para um lado e outro.  Ao anúncio de colocar cintos do comandante, a mulher ajudou o homem a apertar a fivela e nesse movimento as mãos tocaram e percebeu as mãos dela frias e suadas.
Levou as mãos por baixo das cobertas e segurou as da mulher. Ela sorriu e mirou o homem nos olhos. Encostou a cabeça no ombro dele e sentiu conforto.
Permaneceram em silêncio, o tempo necessário para solidificar a relação que rapidamente se fortalecia com a empatia necessária a seguir em frente.
Nos próximos trinta minutos o avião foi jogado com força para os lados e para cima e para baixo. Muitas pessoas, de olhos arregalados, se olhavam apreensivas. Os dois, apoiados entre si, não pareciam perceber o movimento inseguro do aparelho.
— A vida é feita de momentos. Quem viveu aquele momento, viveu, quem se escondeu, perdeu.
— Verdade — concordou a mulher.
De cabeça apoiada no ombro do homem a mulher pensava quem seria esse estranho que tamanho conforto inspirava, tanto física quanto espiritualmente.
— Um menino viajava de avião sozinho, brincando com um quebra-cabeça e observado por um padre sentado ao seu lado — comentou a mulher — repentinamente o avião entrou em meio a violenta tempestade e iniciou a dar saltos e perder altura. Se ouvia o rugido do motor sofrendo para recuperar a altitude perdida, sendo jogado para todos os lados. O padre percebeu que o menino continuava brincando e perguntou se não estava com medo. O menino respondeu que não. O padre insistiu dizendo que o avião passava por violenta tempestade e que os demais passageiros estavam gritando de pavor ao que o menino, parou de brincar e olhou para o padre, “como poderia estar com medo se o piloto é  meu pai?”
Os dois se olharam e riram, imersos na proteção momentânea que representavam um ao outro. Perceberam os passageiros da frente com olhares de reprovação. Queriam sinais de apreensão, cúmplices daquela situação desconfortável que passavam.
Assim como o desconforto iniciou, o avião deu forte sacolejada e estabilizou novamente, como se os buracos da estrada houvessem acabado. Apagaram os anúncios de apertar cintos e o comandante acalmou os passageiros com sua voz profissional, dizendo que os cintos poderiam ser afrouxados e falou que o lanche seria servido.
— Estamos chegando — disse o homem mirando o mapa de voo na tela em frente a sua poltrona. Logo estaremos em solo novamente. Nunca fiz uma viagem mais tranquila que essa.
— Eu também — falou a mulher olhando para o companheiro de viagem.
— Pudera, o piloto era meu pai —acrescentou o homem.
Afirmação que lhes rendeu boas gargalhadas.
Ficaram sérios novamente. O avião aterrissou suavemente e taxiou até a esteira.
— Vamos nos despedir aqui? Vou te dar esse livro que estou lendo de Milan Kundera. É muito bom — A mulher agradeceu e deu um beijo na face do homem.
— Quem sabe um dia faremos um novo voo juntos? Disse o homem. Na saída, perdeu-a de vista ao procurar o passaporte. 
E desceram em separado, cumprindo o destino de companheiros de viagem. Na conferência de passaportes, lembrou que só sabia o nome da mulher, não trocaram nenhum outro dado. Tentou voltar, mas um fiscal impediu colocando a mão em seu peito. Esperou para ver se já havia passado.
— Taxi! — alertou um motorista, pegando sua bagagem.
Mecanicamente, dirigiu-se ao carro, seguindo o homem. Antes de entrar no automóvel, deu uma olhada para a porta do desembarque internacional.