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domingo, 24 de julho de 2011

LOS PESCADORES DE LA VILLA NUEVA

foto 1 - Marco arquivo pessoal)
Quando viajei a Porto Alegre em maio deste ano, pressenti como seria o inverno de 2011. E confesso que frio não é minha praia. Quem gosta é turista. Por ter laços familiares, frequento a capital gaúcha mês sim, mês não, exceto no inverno. Pulo junho, julho e agosto. Em maio, o frio nem foi estas coisas, mas liguei a velha estufa da casa da mãe.
O melhor aquecimento vem do convívio com amigos em Porto Alegre. “E amigos de meus amigos são também amigos”. Constatei isto com Jorge, cuja amizade remonta aos tempos de infância. Vez por outra passamos meses sem conversar e no reencontro, iniciamos do ponto que parou. Amizade é isto, saber puxar o assunto que interessa ao outro. Perdemos contato, com minha mudança para Brasília. Anos depois o reencontro aconteceu graças a internet. Hoje em Porto Alegre, encontro o grupo do Jorge, Arturzinho, Chicão, judeuzinho e as duas Reginas.
Outro grupo Jorge queria me apresentar. Falava deles com amizade “são os pescadores da Vila Nova. Quando não planejam pescarias a Argentina, fazem churrascadas na casa do Laerte toda quarta-feira.” Apesar da curiosidade, faltava-me tempo. As idas a Porto Alegre são rápidas e plenas de compromissos.
Em dezoito de maio, a oportunidade chegou. Na hora combinada, Jorge e o filho Ivan, chegaram à porta de minha casa. Peguei casaco pesado esperando a friagem.
Por volta das sete entramos no estacionamento do sítio. Laerte preparava a churrascada. Ficamos bebericando um delicioso vinho artesanal enquanto o grupo chegava e as apresentações aconteciam. Receberam-me como se fosse integrado ao grupo há anos. A condição de morador de Brasília não foi poupada. Perguntaram se eu era deputado.

El extraño en la casa a su llegada es recibido con un asado gaucho y la amistad.

A casa do Velho Laerte, como o chamam, tem a cara do dono. Os convidados são recebidos num galpão com pé direito de cerca de três metros. Ao fundo, a churrasqueira estrategicamente na ponta mais estreita, com visibilidade de todo o ambiente, dando a Laerte a posição de timoneiro. Pela cor escura dos tijolos bem curtidos, a carne não pára de assar ali há muitos anos. Faz questão de pilotar a churrasqueira, preparar a carne, espetar, assar e, como manda a tradição gaúcha, servir a todos. “O açougueiro escolhe a melhor carne, separa e eu busco nas quartas-feiras” vangloria Laerte no alto dos 78 anos.

Ao centro, a mesa para cerca de vinte pessoas revela que o Velho gosta de receber. Na lateral, enorme e rústica estante, onde mantém objetos curiosos. Cada um com sua história.

Pacientemente, Laerte guarda aquilo que representou algo em sua vida. Predominam estatuetas de cavalos, aviões de aeromodelismo, fotos de aventuras, entalhes em madeira, livros, coleção da Delta Larousse, da Barsa, machadinha medieval, carrinhos em madeira, frascos diversos com ou sem líquidos. Sobram inutilidades como aparelhos elétricos, torradeira, forninho elétrico e televisor fora de uso. Todos com desculpas para estar ali, “um dia servirão para alguma coisa”.

Objetos que representan a un hombre salva a su historia de vida.

Saí para conhecer o quintal, que não é grande, mas muito charmoso. Um riacho ao fundo, com uma pequena ponte apresenta aos visitantes ares de casario europeu.
Quando retornei ao galpão, o churrasco era servido e a alegria imperava ao redor da mesa. Laerte fazia questão de levar carne aos convidados com carinho fraterno.

El viejo quiere inmortalizar los grandes momentos.

Sobre o grupo reunido, faço algumas observações, retiradas da visão do Jorge, que os conhece há mais tempo. A descrição foi baseada na foto 1 do grupo, da esquerda para a direita. Começa pelo uruguaio Gustavo, excelente cavaleiro e professor de equitação. Na pescaria é considerado principiante. É candidato, assim como eu, a frequentar os rios argentinos.
De boné azul, Capitão Carlos, filho do Laerte, o Milico, advogado, dono do ônibus que transporta os pescadores. O seguinte é Marco Aurélio, primo do Jorge, aposentado da Receita Federal, tem 71 anos “de luz negra”, como diz Jorge. Este é dos mais animados. Ao fundo, o Iloni, mais conhecido como Capivara ou simplesmente Capi. Sobre quem se conta a seguinte história acontecida num hotel da Argentina. Todos tomavam o café da manhã, quando Capi chama a garçonete e proclama “Yo quiero más queso” A moça respondeu prontamente, “Usted quieres es mantequilla, porque no hay queso”. Capivari nunca mais se viu livre das brincadeiras em cima deste mico portenho. Mas garante que leva na esportiva, como bom pescador.
De costas na foto, Édio, que trabalha numa loja de autopeças e está sempre de bom humor, um grande contador de histórias. Nunca foi visto carrancudo.
O próximo é Zezinho, que trabalha para o Milico, na chácara do Laerte. Já participou de algumas pescarias com a turma. Depois, Marco que participou de duas pescarias, seguido por Artur, advogado, considerado bom parceiro.
Logo após o Jorge, entusiasta destas amizades que cultiva desde menino. Considera Laerte seu segundo pai. Ao lado o filho Ivan, que apesar de freqüentar o grupo e comer churras, está em treinamento para se tornar pescador.
Na sequência, Marcão, engenheiro do DMAE, “ótimo pescador”, de acordo com o Jorge. A seguir Élder, o Bistrica, o maior contador de piadas da turma. Goza a cara de todo aquele que paga mico e, juntamente com Milico, campeão de idas a Argentina.
Por último o Vitalino, aposentado da CRT prestativo e baita parceiro. Dele contam um episódio que virou marca registrada. “Certa vez estávamos chegando a Corrientes, e Vitalino chamou a atenção para a baita cancha reta que surgia a esquerda. Todos olharam e a gargalhada foi geral. Era a pista de pouso do Aeroporto de Corrrientes. Ele envaretou. Mas bom cabrito não berra.” Vitalino disfarça toda vez que citam o mico nas reuniões. Pois confundir pista de corrida de cavalos com aeroporto...

Onze horas e a reunião perdeu força, afinal a maioria trabalhava no dia seguinte. Por mim varava a noite, afinal estava a passeio e queria ouvir as histórias. Saímos todos ao mesmo tempo, eles com a certeza do reencontro na próxima quarta-feira, eu, com convicção de que aumentei meu círculo de amizades. Unidos pela afeição, este grupo encontra tempo para curtir a amizade, num mundo cada vez mais individualista e solitário.

“Y ahora tengo la convicción de que amigos de mis amigos también son mis amigos.”

domingo, 17 de julho de 2011

ARRAIÁ DO ZÉ

(foto da festa)



Cheguei a Brasília, vindo de Porto Alegre em 1974 aos 24 anos, recém formado na faculdade de Engenharia de Porto Alegre. Nove e meia da noite do dia 03 de janeiro. O primeiro registro desta chegada à capital foi a Torre de TV da Esplanada dos Ministérios que, iluminada para o Natal, ostentava lâmpadas vistas a quilômetros de distância. Depois descobri que desta torre, partiam todas as transmissões de estações de TV e algumas de rádio da cidade.
Fora contratado para coordenar a montagem dos transmissores de alta potência da Rádio Nacional, no Parque do Rodiador, perto de Sobradinho. A noite se avistava o belíssimo colorido das luzes do Plano Piloto, ainda em construção. Durante o dia, o poeirão.
O Presidente Médici inaugurou o projeto dos transmissores em 31 de março. No dia seguinte, passou o cargo da República ao General Geisel que, numa das primeiras decisões de governo, enxugou o quadro de pessoal da rádio. Fiquei desempregado. Mas a capital oferecia enorme quantidade de mão de obra e fui admitido no Ministério das Comunicações.
No Minicom, formei o primeiro círculo de amizades. Éramos jovens na faixa dos vinte anos com filhos ainda pequenos.
Naqueles tempos a capital carecia de divertimentos e a recreação deveria ser programada por nós mesmos. Churrascos, festas de aniversários, piquenique as margens das cachoeiras da região, além de torneios de xadrez, cartas e damas.
Hoje muitos são avós de cabelos grisalhos que mesmo assim programam encontros. Basta dar a idéia que os amigos se alvoroçam.
Há dois anos, Moacir e Mali, reuniram em seu lindo e confortável sítio. Lá estavam o Marinho, o Gelson, o Paulo, eu e outros tantos.
Paulo é outro festeiro. Em 2010 comemorou seu aniversário num barco que navegou suavemente pelo lago Paranoá onde juntou cerca de 50 amigos que se divertiram ao som de um DJ.
Em 09 de julho passado, o convite partiu de Marisa e Zé Ricardo. Aconteceu uma festa de São João na casa de final de semana no condomínio RK, perto de Sobradinho. Era para eu comparecer pilchado com vestes de gaúcho, mas não o fiz. As botas se perderam no tempo e a bombacha ostentava cheiro de mofo. Nem por isso deixei de ir. De chapéu preto, aba dura e barbicacho, típico da região sulista.
Lá estavam Augusto e Bira, com as respectivas esposas, amigos dos filhos dos donos da casa que enfeitaram com juventude e eu com a namorada Maria Lúcia. Lamento apenas que muitos amigos convidados não compareceram. Estão esmorecendo. O frio os espanta das noites, impelindo a ficar em casa vendo novelas.
O forró estava solto e Marisa anunciou que haveria quadrilha. Fiquei animado. Mas para minha decepção, não aconteceu. Fiquei na saudade.
A comida estava farta e os convidados levaram pratos típicos. Foi um manancial de amendoins, bolos, cachorro quente, vatapá, empadão goiano, canjica, quentão, e tudo o mais que embala boa festa de São João.
Marisa lembrou as fanfarras promovidas pelos anos 80 em minha chácara no Vale das Andorinhas. Por ser distante, quem pensava em permanecer, levava rede e estendia na sala ou varanda. Dormia ao som do sanfoneiro que de tão bêbado tocava três notas numa gaita de sete baixos, por horas a fio.
No segundo andar da casa, Zé Ricardo construiu um varandão de onde tem belíssima vista da cidade de Sobradinho. Nas noites quentes de verão, ele e Marisa sentam e passam a limpo suas vidas. São quase 40 anos de casados.
Zé Ricardo gosta de fazer pizzas no forno a lenha. Prometeu que na próxima fornada chamará a todos novamente. Estou preparado.
Ao final da festa, avistei um rosto familiar. Estava de saída e nos olhamos desconfiados, procurando traços que indicassem algo. Era o Alexandre. Com dezoito quilos mais “forte” e eu dez, os atletas da juventude ficaram para trás.
Ao final, tive a convicção que encontrar amigos é uma forma de nos ver por outro ângulo. São donos de parte da memória e ajudam a reviver acontecimentos esquecidos.
Encontrar amigos é saber que com eles sou feliz em ser eu mesmo.

sábado, 2 de julho de 2011

AVÔ PATERNO

(foto: Marco)


A última imagem de meu avô Alcino com saúde, contava quatorze anos. Ele estava de pijama na varanda da casa em frente ao Colégio Infante Don Henrique em Porto Alegre onde eu estudava. Diariamente, no recreio, deixava os colegas brincando no pátio e corria a visitá-lo. Nunca vira adultos de pijamas na rua. Ele os usava. Reconheço que faltava intimidade entre nós. Pudera, quando meus avós separaram era menino e perdemos nosso convívio.
Não recordo como descobri que morava em frente a escola. A partir daí passei a freqüentar a casa, ou melhor, a escada da varanda. Nunca entrei na residência.
Tinha um porte altivo, austero e sério. Profundas rugas marcavam a testa e o queixo proeminente, era rígido. Ao sorrir era franco e doce. A voz mansa, serena e rouca pelo uso de cigarro sem filtro.
Sentia-me orgulhoso de ter avô perto da escola. Dava-me vantagens em relação aos amigos. Uma delas é que a mulher com a qual vivia fazia biscoitinhos e bolos para eu provar.
Meu avô foi um homem inteligente. Militar reformado prematuramente por problemas de coração, certa vez mostrou-me um álbum com fotos antigas da carreira e poemas que escrevia. Extremamente sensível, escrevia poesias a companheira. Deixava-a mimada e amorosa. Antes dela, teve cinco amores. A todas amou e curtiu no devido tempo. A todas paparicou, rimou, dançou, musicou e cantou em prosa e verso. Apaixonado pela vida, permanecia na relação enquanto o amor aquecido. Quando insatisfeito primeiro adquiria um ar distante e depois arrumava a mala de couro e saia atrás de novos rumos.
Era inexperiente para entender meu avô. Crianças custam a entender os velhos. Guardava apenas o que dele diziam e o conhecia por imagens e descrições nem sempre fiéis.
Quando morava na rua Cristóvão Colombo no centro de Porto Alegre com minha avó, costumava chegar do quartel fardado com o pão embaixo do braço. Ao entrar, fingia tropeçar e jogava o pão para o alto. Minha avó, sabedora da brincadeira, pegava-o no ar e fingia zangar. Custei a acreditar que as brincadeiras eram sob efeito de álcool consumido antes de chegar em casa. Um dia arrumou as roupas na pequena mala e mudou de residência. Assim tomei conhecimento da primeira separação de casais. Muitas outras testemunharia, mas era cedo para saber.
Após a separação, o pai e meus tios nunca mais o procuraram. Julgavam inadmissível o “abandono” a vó. Filhos não aceitam a separação dos pais. Querem-nos juntos independente de estarem felizes. Não falo de pais que abandonam a mulher e os filhos a própria sorte e sim de homens e mulheres que buscam satisfação em outras relações.
Eu ficava na varanda, meu avô dentro de casa. Nos olhávamos tímidos. Examináva-nos. O velho querendo perguntar, com receio do neto desconhecido. O neto temeroso de ofender o velho circunspecto. Tínhamos receio um do outro. Éramos estranhos, apesar do mesmo sangue. Nosso silêncio falava tudo. Nos fazia cúmplices. Sabíamos quase nada, o que não era importante. Ele silenciava a perscrutar o futuro da descendência. Eu tentava enquadrá-lo na imagem dos relatos. Poucas palavras cheias de significados.
Com o tempo, fomos rareando os encontros. Eu preocupado com a juventude e estudos e ele com a velhice e reflexões. Vez por outra, abanava ao avistá-lo na janela. Com a visão fraca, não me distinguia dos outros.
Algumas ocasiões, a janela permanecia fechada até que não mais abriu.
Passaram alguns anos e certa vez mãe me chamou para o visitarmos no hospital. Arfava buscando ar em cima da cama de lençóis brancos. Ao nos ver impacientou-se, queria falar, a máscara de oxigênio tapava a boca. O fumo fizera o estrago necessário para levá-lo.
Desconheci o avô em cima da cama com lençóis brancos. A mulher o acompanhava. Meu pai fora avisado, mas morava no interior e não pode chegar em tempo. Meus tios eram indiferentes. Alcino jazia na maca, num mundo que rotula, julga e condena. O homem forte, o brincalhão que jogava o pão para o alto, jazia desamparado no leito. Sucumbira a noticia da morte de minha vó. Os filhos não o avisaram. Descobri que desgosto mata.
As gerações se sucedem e hoje entendo a imagem cunhada e deturpada com a ótica da injustiça.
Fiquei com sua herança. Cadernos de poesias, anotações diversas e alguns objetos pessoais. E cartas, muitas. A mala encardida usada pela vida afora carregada de esperanças, descartei.