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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O JANTAR

(Google Imagens)
Quintino estaciona na portaria principal do hotel cinco estrelas, o manobrista abre a porta e o casal desce admirando a majestosa árvore de Natal. Localizado defronte ao mar, o prédio ergue-se imponente, iluminado por holofotes para as festas de final de ano.
— Estranho o convite do Márcio. O restaurante aqui é carésimo. E não me vem dizer que é só porque a mulher dele trabalha com você, pois sei que pouco se conhecem. — Quintino já explicara a Simone que a intenção de Márcio era estreitar relações.
— Nada estranho, Yara é minha colega há três anos! — fala impaciente.
A recepcionista os conduz a uma pequena sala reservada onde espera um garçom com impecável terno branco. Com reverência, afasta as cadeiras.
— Doutor Márcio fez uma reserva privativa.
Quintino consulta a carta de vinhos, mas nem tem tempo de pedir, pois o homem chega com um Flor de Pingus safra 2009. Por curiosidade, localiza na carta e aponta o preço a Simone que arregala os olhos.
— O doutor recomendou enquanto esperam — explica o homem, referindo-se ao vinho.
Após submeter a prova aos convidados, serve as taças. Enquanto esperam, observam as pinturas a óleo originais das paredes. O casal anfitrião chega com trinta minutos de atraso. Cumprimentam-se com cordialidade e ao estender a mão para cumprimentar Márcio, Quintino percebe o sorriso enigmático, até zombeteiro. Simone, descontraída por duas taças de vinho, inicia a conversa.
— Tá podendo, hein Márcio? Esse vinho é delicioso e caríssimo. — falou alto para quem pouco conhece os recém-chegados. Quintino e Yara se entreolham. Dois garçons afastam as cadeiras e todos sentam.
Márcio pega o cardápio, mas ao invés de escolher, faz sinal para providenciarem o pedido combinado. Argumenta aos convidados que confiassem na escolha.
Durante o jantar, a conversa girou, entre os homens, em torno do campeonato brasileiro e política, de times de futebol, das eleições, dos partidos políticos. Entre as mulheres, os recentes tratamentos de beleza, cremes, lipoaspirações e aplicações de botox. Vez por outra, Márcio jogava algo referente as novelas, filmes ou amenidades referentes ao amor no casamento moderno, paixões, relações interpessoais, modismos sociais. Assuntos que aos poucos Quintino percebeu, eram um aquecimento para o verdadeiro tema do jantar. Nestes momentos, sentia-se desconfortável, pois Márcio voltava a sorrir  zombeteira.
Ao lado do marido, Simone apresentava uma desenvoltura inocente e Quintino pensou se teria sido melhor confiar-lhe o motivo real do encontro.
Ao término do jantar, as mulheres foram ao toalete retocar a maquiagem. Quintino preenchia o silêncio contando as peripécias sobre uma pescaria e, na tentativa de explicar, esbarrou na garrafa de vinho derrubando-a sobre a toalha branca. Márcio chamou o garçom que imediatamente trocou a toalha e o vinho. Quando as mulheres retornaram, Quintino cutucou a mulher, e levantou explicando que acordaria cedo no dia seguinte. Márcio fez sinal para que sentasse.
— Vamos tratar de um assunto que afetará profundamente nossas relações. — Fala o anfitrião. Quintino sente certo rubor e, assim como Yara, arruma-se na cadeira. O garçom trouxe a garrafa de vinho, taças limpas, garrafas de água e copos. Recolhe os pratos, talheres, copos usados e a um sinal de Márcio, desaparece pela porta, fechando-a.
— O que tenho a dizer Simone, pode ser surpresa, mas é algo que ocorre há dois anos. A decisão a ser tomada afetará a vida de vocês, como afetou a nossa. Yara e eu já conversamos e temos uma posição conjunta. Quintino a está poupando, mas a partir de agora, não poderemos mais conviver com a situação por mais tempo. — Marcio fez breve silêncio. A vontade de Quintino era pegar o carro e sair. Viajar sem rumo. Teve certeza que preparar Simone, seria a melhor solução, mas agora já estava feito.
— Há dois anos percebo a mudança de Yara com relação a casa, a mim e as crianças. Antes atenciosa, preocupada em administrar nossas vidas, repentinamente tornou-se mulher desajeitada e irritadiça, quebradeira de  louças como se houvesse perdido a firmeza das mãos. — O grupo observava Márcio. Yara de cabeça baixa. — Conviver comigo nos últimos tempos, se tornou um tormento, certo, Yara? Pensei inicialmente ser passageiro e que logo retornaria a ser quem era.
Quintino podia adivinhar onde andavam os pensamentos de Yara. Mas voltou a atenção a Márcio, que mudara o tom de voz, monopolizando as atenções.
— Logo, descobri o motivo. — o sorriso sumiu do rosto e Marcio encarou diretamente Quintino, como se o assunto agora pertencesse somente aos homens — Como fora idiota. Yara tinha outra relação. Alguém ocupara meu lugar em seu coração e constatei o quanto estava despreparado.
Márcio baixou a cabeça e a fortaleza que até então tentara transmitir, ruiu. Pegou uma rolha e começou a brincar. Quando levantou a fronte, sofrera profunda transformação e Quintino notou rugas nos cantos dos olhos e da boca.
Simone fuzilou Quintino com o olhar, levantou da mesa e foi à janela. A praia estava vazia. Precisava de ar fresco. Abriu a porta e saiu em direção à orla. A praia era privativa, localizada na ponta da enseada e rodeada de pedras.  Márcio retirou o guardanapo do colo, limpou a boca, pediu licença e saiu atrás da mulher do convidado, deixando sozinhos Quintino e Yara. Da janela envidraçada, visualizavam o casal que conversava. O convidado pediu a conta e o garçom informou que estava quitada. Pensou em ir atrás de Simone, mas desistiu ao trocar olhares com Yara.
— Márcio e eu vamos viajar de férias e na volta, assume um cargo diplomático no Sri Lanka. — estendeu a mão e trocaram beijos nas faces — Adeus Quintino.
Sem olhar para trás, Yara entra no carro, liga o motor e arranca jogando pedrinhas.
Quintino espera algum tempo, consulta o relógio e liga ao radiotaxi. Enquanto espera, vai até a portaria do hotel e dá instruções ao manobrista sobre a entrega da chave do carro.
Quando o taxi chega, dita o endereço e dá a última olhada a orla. Recosta-se no banco e acende um cigarro.