
A viagem narrada neste texto aconteceu ao longo da fronteira oeste do Rio Grande do Sul. A largada deu-se em Brasília, de avião até Porto Alegre. A partir daí, segue de automóvel.
Os preparativos começaram com a busca de dados sobre as cidades, no Google. A aquisição do Mapa Rodoviário Quatro Rodas em DVD, mostrou-se eficaz na escolha das melhores opções de estradas, hotéis e restaurantes. Indispensável, o GPS facilitou a localização dos endereços. Também fez parte da infra-estrutura, o aluguel do carro. Companhia na divisão do tempo e na troca de idéias não poderia faltar e Maria Lúcia, a namorada, foi convidada e aceitou o desafio de conhecer a região.
Tudo pronto, partimos em 10 de janeiro de 2011, segunda-feira, as 09h 50 em vôo da Gol. A chegada em solo gaúcho foi as 12h 30. Após almoçar no aeroporto, fui à locadora e recebi o carro. As 14h 30 passava sobre o vão móvel da velha ponte sobre o Guaíba. Iniciava-se a viagem de resgate sobre a infância no interior do estado, entre os dois e oito anos. Muitas vezes pensara executá-la, mas compromissos e falta de tempo, impediram-me. Na década de cinquenta, percorri este trajeto de automóvel, trem e avião da Força Aérea Brasileira. O objetivo é rever lugares e pessoas, que convivi na infância.
Com cerca de duas horas de viagem, um caminhão joga pedras no pára-brisa, acordando-me dos devaneios. Um estalo seco e surge a teia no vidro frontal. Parei o carro, coloquei um adesivo na rachadura e segui em frente. O incidente, único da viagem, alertou os sentidos aos perigos da estrada, tornando-me cauteloso daí para frente.
Cheguei a Rosário do Sul às 19h e procurei o hotel Areias Brancas, as margens do rio de mesmo nome. A cidade permeia o rio e é laser de moradores das cidades vizinhas. Além do banho, oferece amplo calçadão destinado a caminhadas e corridas. Nas areias as margens, quadras de futebol. Ressentimos a falta de restaurante para jantar. O único aberto, num posto de gasolina na entrada do município, oferecia refeição adornada por moscas.
Na manhã seguinte, partimos cedo a Alegrete. Chegamos às 10h e decidi procurar o primo Carlos Alberto, pois há 40 anos não nos víamos. Ainda não seria desta vez. Com alguns telefonemas constatei que desfrutava férias em Porto Alegre. Procurei a segunda ex-mulher do pai, Ilsa Ricciardi, de origem alegretense, que voltara a cidade após a separação. Com a localização do Hélio, primo dela, achei-a facilmente. Hélio é personalidade conhecida, dono de emissora de rádio e do primeiro jornal do Rio Grande do Sul, a Gazeta de Alegrete. Amigo de Mário Quintana, enveredado pela poesia, jornalismo e hábil cartunista. Ricciardi é bem humorado apesar da idade e problemas dela. Apresentou a mulher como “posa”, e explicou que “es”posa seria se fossem separados. A filha, arquiteta Lilia, é hoje quem capitaneia o jornal e a radio, com consultoria do pai, claro.
Em Alegrete pai residiu no início dos anos sessenta. A partir do casamento com Ilsa, nascida na cidade, adquiriu o hábito de retornar frequentemente, quando visitava parentes da mulher e jogava xadrez no clube dos oficiais da Brigada Militar. Passar em frente ao quartel da Brigada fez-me imaginar quantas vezes passara pelo pórtico de entrada e recebera continência.
As oito horas passadas na cidade foram proveitosas. A acolhida e as informações que obtive comporão o artigo que escrevo sobre o pai. As 18h deixei Alegrete e retornei a BR 290 com destino a Uruguaiana.
A medida que aproximava da cidade, experimentava inquietude. Representava um resgate importante, pois não retornara desde 1959.
Descarreguei a bagagem no hotel Mainardi na avenida Presidente Vargas e segui a rua General Câmara. Lembrava-me do número, 3020. Encontrei-a rapidamente. Intacta, ao lado do presídio onde pai fora Administrador, estava a casa de minhas lembranças. A imagem fixada como numa foto. Contava dois anos e ali permaneci até oito. A fachada era a mesma, como também as paredes de 60 cm de espessura com grades nas janelas. O atual morador acompanhado da esposa, tomava chimarrão sentado na calçada. A pintura externa, descorada, transparecia que levara várias mãos de tinta. Ao narrar o motivo da visita, convidou-me a entrar. Uma pequena reforma mudara uma parede de lugar e rebaixou o pé direito. Entrei na cozinha. Um filme imediatamente montou-se em minha mente e retrocedi no tempo. Por ocasião da Páscoa, no parapeito da janela, vó desenhava rastros de rodas da charrete do coelhinho, que após entrar, seguia ao quintal, onde escondia a cesta de ovos de chocolate. Com esta história, vó retardou minha consciência de que o orelhudo era mera ficção e reafirmou o valor da Páscoa com relação ao Natal. No quarto, o único canto iluminado pelo sol, estava também uma mesa onde há cinqüenta anos lia Monteiro Lobato e Mark Twain. Senti a textura da tinta nas paredes. A mesma que tocara com mãos sujas de barro para desespero da mãe. As janelas, as portas, tudo do mesmo jeito, restauradas preveniram a ação do tempo.
Ao sair, parei no alpendre. Acima da porta avistei o bocal da luz. Nas noites quentes de verão a vó e eu sentávamos nos degraus embaixo da lâmpada a aproveitar a brisa. Durante horas me narrava histórias de antepassados italianos e a saga para conquistar o sustento ao chegar da Itália. Lembro que nesta lâmpada acumulavam insetos e, para dispersar, vó apagava a luz. Mesmo com este cuidado, certo dia, um besouro abandonou o vôo na luz apagada e alojou-se no meu ouvido. Senti as patas impulsionando o animalzinho cada vez mais fundo e o zumbido me ensurdecia. Quanto mais o bicho se enfiava, mais agoniado ficava. Sosseguei no pronto socorro com o médico retirando os pedaços com a pinça. Balancei a cabeça e retornei do passado.
Despedi-me e fui a casa em frente. Lá morava o capitão Bacuri. Encontrei um dos filhos, o Edmar, com cerca de 70 anos. Relembramos acontecimentos da rua e das pessoas. Colocou em dia a vida e as mortes dos moradores. Sobre o sobrinho que ficara embaixo de um Chevrolet 51 e quase morrera afogado quase rebentamos de rir. Vou contar. Naqueles tempos a rua era de terra e cheia de buracos.Todos os finais de tarde, jogávamos futebol na rua. Um dia, a bola rolou debaixo de um carro estacionado e escolhemos o menor dentre nós, para buscá-la. Bastava se arrastar, pegar a bola e sair. Mas o imponderável aconteceu. Iniciou enorme tromba d’água e rapidamente uma poça envolveu a área ocupada pelo veículo. Como o garoto ficou embaixo do carro esperando a chuva passar, ficou ilhado. Se abaixasse a cabeça, afogava e se tentasse levantar, batia no assoalho. As coisas só normalizaram após o automóvel ser erguido pelos vizinhos e ele ser retirado sem ferimentos.
Capitão Bacuri era militar do Exército e tinha dez filhos. Mesmo sendo confortável, a casa não possuía banheiro e a mulher e os filhos usavam uma casinha mal-cheirosa com sol ou chuva, no fundo do quintal. Certa vez, após incansáveis reclamações da mulher, o capitão mandou construir banheiro dentro da residência e a pocilga foi abandonada. Uma das brincadeiras preferidas da garotada acontecia neste sitio do capitão, era o de pique – esconde. O terreno oferecia várias opções de esconderijos. Certa vez, ao chegar minha vez de ser o pique, notei a casinha abandonada. Éramos uns vinte, na faixa dos sete anos. Esperei a vez de esconder e, quando o pique fechou os olhos, escondeu o rosto nos braços e iniciou a contagem debruçado no cinamomo, corri à casinha abandonada. O problema foi que marimbondos a encontraram também e construíram enorme cachopa. Nem preciso dizer nada. Saí correndo com a nuvem me ferroando. Quando dei por mim, estava deitado no chão de cara inchada e placas de barro colocadas pela mulher do capitão. Acreditava aliviar as dores semelhantes à queimadura. E aliviou.
Tenho profundos laços afetivos com a cidade. Fui para Uruguaiana com meus pais. Pai era tenente da Polícia Militar e fora destacado para administrar a casa penitenciária que pertencia a Brigada gaúcha. Estudei na escola Elisa Ferrari Vals, onde fiz o curso fundamental.
Reconheço que Uruguaiana não é mais sombra do que era. A começar pela estrada a BR 290. Encontrei-a cuidada e sinalizada o que proporcionou tranqüilidade a viagem enquanto recordava com a namorada sobre a saga que era cumprir o percurso de 600 km, nos anos de 1954/5. Naquela época, eram intermináveis viagens de carro, atoleiros e longos períodos parados a espera de peças, geralmente da suspensão quebrada na buraqueira.
A maioria das viagens foi de trem. Saiamos de Porto Alegre num vagão leito da Maria Fumaça. A cabine pequena só era diversão para mim, que curtia a aventura com visão infantil e sonhadora. Em Alegrete havia baldeação para carro motor e o restante da viagem seria mais sacrificada pelo desconforto do barulho e dos bancos de madeira. Ao chegarmos a Uruguaiana o cansaço era generalizado. Estas viagens eram acontecimentos importantes e tinham por finalidade rever a família em Porto Alegre. Apesar dos incômodos, nunca percebi mau humor de meus pais.
Certa vez mãe, vó e eu viajamos num avião da Força Aérea Brasileira. Pegamos tempestade com raios, trovões e ventos fortes pelo caminho. Dentro da aeronave chovia mais que fora e éramos obrigados a sentar em bancos de metal, empossados de água. Os aeroportos com pista curta e sem instrumentos ofereciam aterrissagens e decolagens que contavam apenas com a habilidade do piloto. Mãe e vó se revezavam em rezas e ficavam bravas se as tirassem da concentração. Depois desta, mãe fez uma promessa e cumpriu: de avião nunca mais.
No segundo dia em Uruguaiana, levei o carro para reparar e garantir o restante da viagem. Num determinado momento, o dono da oficina, nervoso, aparece com um gato fisgado pela boca por um anzol. A dificuldade foi encontrar a ferramenta para cortar o anzol. Dois alicates não tinham corte suficiente. Apenas a torquês resolveu o problema. Antes fizemos várias fotos do bichano fisgado. Com certeza, sofreu menos que a colocação de piercing.
Pronto o carro, almoçamos e rumamos a Paso de los Libres. Atravessei a ponte e ao me aproximar da Aduana, já em solo Argentino, fui parado pela fiscalização. O carro, com placas de São Paulo, chamara a atenção. Automóveis para cruzarem a fronteira, devem possuir documentação em nome do condutor. O fiscal argentino indicou o estacionamento da Aduana, onde deixei o carro, peguei um taxi conduzido por uma brasileira, que nos levou à cidade portenha. Em plena três da tarde Paso de Los Libres parecia cidade fantasma. A motorista falou-me sobre o costume local da sesta após o almoço com retorno as atividades somente a partir das cinco da tarde. Maria Lucia e eu, sem alternativas, vagamos pela cidade a conversar nas praças. Quando as lojas abriram, compramos mercadorias de qualidade a preços convidativos.
As 8h voltamos à fronteira, peguei o carro e retornei ao Brasil. Naquela noite, comemoramos o dia com matambre, prato típico da região, acompanhado de um bom vinho Norton, argentino. O restaurante acolhedor foi o da praça central de Uruguaiana.
Na manhã seguinte, deixamos Uruguaiana para trás, rumo a Santana do Livramento, com parada em Quaraí e almoço na uruguaia, Artigas. Experimentamos o restaurante D. Pedro II, no lado uruguaio, onde pedi um vazio e uma picanha, carnes de excelente qualidade, acompanhadas por vinho nativo.
A chegada em Livramento foi às 17h e procurei o hotel Castelo. O acesso a portaria se dá por escada a amplo corredor com pé direito de três metros. Por Adriano Morais, recepcionista, soube que o hotel fora sede de grande fazenda da região. Ganhei do funcionário o livro Armour – Uma Porta No Pampa que narra a história do Frigorífico Armour, o maior do Brasil na época. Quebrou devido a administrações equivocadas e perdulárias.
O principal atrativo de Livramento é a fronteira seca com Rivera, Uruguai. Separadas por uma rua, comerciantes de Brasil e Uruguai concorrem em harmonia, mas com vantagem nítida para os uruguaios. Os artigos baratos e o amplo comércio levam legiões de consumidores à cidade.
Ressalvo um descaso da cidade. Em Livramento nasceu Nelson Gonçalves, cantor ilustre que encantou o país. Após ser informado sobre a residência do cantor, segui para lá. Surpresa. O local onde nasceu Nelson, o cantor que encantava multidões, fazia suspirar as mocinhas e embalava os namoros das décadas de 50/60, é uma loja de móveis. Destaca-se apenas a placa de metal, velha e com letras esmaecidas, que logo desaparecerá acabada pelo tempo.
“NESTA CASA NASCEU NELSON GONÇALVES – A VOZ DE OURO DO BRASIL”
Sant´ana do Livramento, agosto de 1978
Homenagem do povo através da Câmara dos Vereadores.
Alcino, funcionário do Ministério da Agricultura, fez comentários sobre a região de fronteira gaúcha. Contou que em cerca de dez anos a população decresceu de 100 mil habitantes, para 80 mil. Contou que lamentava ter escolhido morar na fronteira em vez da serra gaúcha. Lá as cidades aumentaram, há qualidade de vida e crescimento econômico que gerou empregos e oportunidades.
Rever Livramento me fez bem. Boa comida, bons preços das mercadorias e excelente hospitalidade do santanense.
No dia seguinte, reiniciei viagem, deixando para trás a fronteira. Curti muito este lado gaúcho. São brasileiros, uruguaios e argentinos, que dão exemplo da boa convivência entre povos vizinhos. É comum o casamento entre pessoas de países diferentes. As diferenças esquentam apenas em ocasiões especiais, como durante os jogos das seleções brasileira e uruguaia. Na hora do jogo a fronteira é fechada por policiais de ambas as corporações para evitar excessos.
O próximo destino é Rio Grande. É bom viajar a dois. Maria Lúcia é ótima companhia. Bem humorada, de boa conversa e alegre. Penso que pela origem carioca. A distância entre Livramento e Rio Grande exigiu parada para almoço em Dom Pedrito. Local para almoçar foi difícil. Encontramos um posto de gasolina, muito simples, com comida caseira.
Chegamos a Rio Grande aproximadamente às 17h. Priorizei hotel que oferecesse estrutura na praia do Cassino, local onde pretendíamos passear e seria excelente se tivéssemos um apoio logístico. O indicado foi o Hotel Atlântico.
No outro dia, levantamos cedo e seguimos a praia do Cassino. Segui o caminho onde se ergue importante porto de Rio Grande. Antes de pegar a estrada pela beira-mar, fomos passear nos molhes. São estruturas de pedras, que adentram para o mar, por mais ou menos 3 800 metros, para facilitar aos navios a entrada no porto. As vagonetas que percorrem o trajeto navegam sobre trilhos, impulsionadas pelo vento. Como é único o par de trilhos que as leva e trás, existe um código. Sempre saem dos trilhos as vagonetas vindas em menor número.
Imagino que Cassino seja a única praia onde os carros transitam pela beiramar. Os banhistas além de correrem riscos para atravessar as ruas das cidades, enfrentam a faixa de automóveis na beiramar de Cassino. Não poderia deixar de consumir isca de peixe na praia, com caipirinha. De volta a Rio Grande visitamos o Museu Oceanográfico, onde estão os contêineres que serviram de apoio a Expedição Brasileira na Antártida, importante contribuição de conhecimento científico da vida marinha à ciência do planeta. A capela de São Francisco de Assis, é obra que reforça aos visitantes a discriminação com relação as classes sociais no período da escravatura. Esta igreja é dividida em duas, com frentes distintas, uma em cada rua. Um lado destinado a nobreza e outro aos escravos. O dos nobres se divide em três categorias, dos nobres ricos, próximas ao altar, dos remediados, do meio do templo em diante e o dos pobres, fora das portas externas.
Em Pelotas, consumi os deliciosos doces e, entre favoritos, o Camafeu. As colônias nas cercanias da cidade, são passeios obrigatórios. Dentre elas, conheci Canguçu, distante de Pelotas cerca de 60 km. Na linda cidade com mais de 150 anos, conversamos com o Secretario de Cultura, durante a visita ao museu. A partir da serra dos Tapes, ergue-se a majestosa imagem da padroeira Nossa Senhora da Conceição. Lugar de passeio obrigatório..
No dia seguinte, voltamos a Porto Alegre, cumprindo o roteiro que classifiquei como da fronteira gaúcha. Foram dez dias de encantamento com belezas naturais e a diversidade de culturas. Sem exceção, convivemos com gente amabilíssima, histórias e informações. Particularmente, fiquei sensibilizado em rever lugares e pessoas da infância.
Ao todo viajamos cerca de 2000 km. A partida e a chegada em Porto Alegre, com hospedagens em Rosário do Sul, Uruguaiana, Santana do Livramento, Rio Grande e Pelotas. Significativas paradas em Alegrete, Quarai, Dom Pedrito e Praia do Cassino. E as estrangeiras Paso de los Libres, Artigas e Rivera.
Sentir o odor dos pampas, o aroma das paisagens onde vivi quando menino relembrou fatos que marcaram época. O cheiro dos arroios reavivou lembranças e da mesma forma ajudou a escrever o texto.