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Rodrigo
chegou à frente do túmulo do pai, abaixou-se e naquele areão de pedras e barro que
se transformou o cemitério de Luziânia após as chuvas de fevereiro, estilizou
com o dedo a figura de um homem. De longe, Canindé percebeu a solidão que
massacrava o rapaz. O vento frio e as nuvens escuras anunciavam a chegada do
outono.
Na
época dos acontecimentos, Canindé realizava trabalho com jovens infratores em
um centro de reabilitação de Brasília dedicado a recuperação de delinquentes. Um
trabalho difícil e perigoso, que o psicanalista executava com esmero e
dedicação, voluntariamente. Rodrigo, o desenhista da tumba do pai, era especialmente
o mais violento da instituição, sendo tratado como monstro.
–
Sem recuperação, matou o próprio pai – comentou a assistente social ao
apresentar a ficha do infrator.
Mesmo
após os comentários desanimadores e o exame da extensa ficha criminal, o
analista acreditava contribuir para a recuperação do jovem. E foi com este raciocínio
que aceitou, entre tantos menores menos devastados psicologicamente, ajudar o que
matou o pai.
Eram
quatro horas da tarde de uma terça-feira, quando foi apresentado a ele no
refeitório. Menino mirrado parecendo contar dez anos, na verdade tinha dezesseis.
Olhar parado e triste, sobrancelhas arqueadas e um sorriso de canto de boca,
como que fazendo coro com o ar melancólico e tímido. Nem de longe a aparência
fazia jus à fama. Esticou a mão para apertar a dele e teve a sensação de amassar
seus ossos caso forçasse. Com a mão presa pelo terapeuta, encarou-o esperando
que evitasse o olhar firme, mas como recebeu o sorriso experiente do
profissional, desviou-se para mirar a rua. O terapeuta sentiu empatia pelo
adolescente e, naquele rosto infantil com rugas precoces no canto da boca, percebeu
semelhanças com o próprio filho.
–
Minha ficha é longa – falou o rapaz, fazendo referência a passagem pelo crime
desde tenra idade. A reação de Canindé foi calcada nos anos de experiência lidando
com delinquentes juvenis.
–
Ah é? – respondeu sem dar relevância.
–
Você não tem medo, cara? – Apelou tentando nova
forma de se apresentar, firme e ameaçador.
– Meu nome é Canindé e sou psicanalista. Fui designado para
atendê-lo – falou sem desviar o olhar.
– Só aceito conversar lá fora – chegou a janela e apontou – Lá.
– Canindé se aproximou e avistou no outro lado do pátio da instituição, uma
frondosa árvore a espalhar sombra acolhedora. O jovem demonstrava aceitar o
atendimento, desde que em ambiente escolhido por ele. Fazia de tudo para
desestabilizar o terapeuta.
– Amanhã e toda quarta-feira às dez horas conversaremos embaixo
da mangueira – encerrou a conversa, apertou a mão da assistente social, despediu-se
do rapaz e saiu apressado pela porta do refeitório.
Antes dele, outros dois especialistas em comportamento iniciaram
um tratamento com o rapaz e, rechaçados nas primeiras sessões, desistiram.
Os encontros entre Canindé e Rodrigo aconteciam sempre às dez da
manhã, embaixo da mangueira como exigiu. Aos poucos, o rapaz se abria e falava
abertamente. Sua fala era pesada, quase gutural. Às vezes trazia chicletes e os
mastigava nervosamente de queixo erguido, demonstrando arrogância que mascarava
a própria fragilidade. Foram quatro meses de trabalho em conjunto, em um
aprendizado muitas vezes orientado pelo próprio analisando. Para ajudar Canindé
deveria também aprender.Pelo olhar, gestos, falas e emoções.
O pai do menor era alcoólatra e diariamente chegava a casa esbravejando
e, sem motivo, batia duramente na mãe. Após as constantes sessões de tortura, a
mulher abraçava a Rodrigo, que era o filho mais velho e chorava copiosamente.
Muitas vezes ele percebia o sangue que brotava dos ferimentos e assim,
misturando as lágrimas e o sangue da mãe aos seus, alimentava profundo ódio ao
pai. No decorrer das sessões, Canindé observou a origem do instinto criminoso
do rapaz. O assassino estava sendo forjado ao assistir as surras sofridas pela
mãe, seguidas pelos abraços ensanguentados e choros convulsivos.
A uma das sessões escolheu a imagem de quando contava apenas
cinco anos. Nela, a lembrança do pai aplicar a maior de todas as surras neles e
recordou, em meio à lágrimas e ódio, o agressor sair porta afora e desaparecer
por dez anos.
Começou então uma fase de aparente calmaria naquela casa e, dos
cinco aos quinze anos de idade, a raiva ao pai, transformou-se em profunda sede
de vingar a mãe, só amortecida pela ausência do algoz. Um dia o inferno voltou
a rondar e o pai retornou barbudo e maltrapilho. Na primeira noite, comemorando
o retorno, bebeu todas e aplicou nova surra nos dois.
Recém introduzido na adolescência, ainda com penugens no rosto, o
adolescente colocou as mãos na cabeça e exclamou desanimado “meu Deus, vai
começar tudo de novo.”
Após o massacre, abraçou-se a mãe e da mistura dos rostos ensanguentados,
ressurgiu o ódio que o cegou. Correu ao quarto e voltou munido do revólver
calibre 32 do irmão e o apontou para o pai que ria com a idiotice dos embriagados. Anestesiado pela
cachaça, sem um gemido, o homem tombou varado por cinco tiros desferidos pelo
filho, que naquele momento inaugurou a desastrada vida adulta. Mal teve tempo
de correr a esquina e foi pego pela polícia e recolhido a instituição de
menores infratores.
Contou tudo de supetão após Canindé oferecer a segurança da
ajuda.
– Não te preocupe. Ninguém
conhecerá o conteúdo do que falarmos. Você está sob sigilo profissional.
– Posso pedir algo? – sussurrou o menor olhando para os lados.
– Claro, porque não? – o analista se dispunha a atender o que
ajudasse o tratamento.
– Quero visitar o túmulo de meu pai – Canindé num primeiro
momento ficou desconcertado, mas logo entendeu o que se passava. O analisando precisava
enterrar o passado e seus fantasmas. Mas era preciso cuidado.
– Faça o seguinte, pense nisto uns dois dias e falaremos
novamente – Sair dali com aquele menor poderia ser uma operação de alto risco,
pois o rapaz estava jurado de morte pelos irmãos. Além do mais, nada garantia
que uma vez na rua, não empreendesse movimento de fuga.
O terapeuta queria tempo para pensar.
Naquele mesmo dia procurou o diretor
da instituição e obteve a primeira negativa. Começou uma peregrinação pelo
sistema prisional e, após muitas alegações, conseguiu um mandado judicial assinado
pelo juiz da Infância e Adolescência, dando direito e responsabilidade a conduzir
o infrator. Em conjunto com a direção do Centro, marcou a data de saída.
No dia combinado, ao chegarem ao
cemitério, rumaram diretamente a tumba, localizada no dia anterior por Canindé
que, previdente, queria evitar perambular pelas alamedas arriscando o
reconhecimento do menor infrator por qualquer pessoa.
Rodrigo continuava fazendo desenhos
no barro e, pressentindo a chegada do terapeuta, pos-se de pé. Emocionado,
ombros e braços caídos, o rapaz estava desolado.
Canindé o abraçou ternamente e percebeu a fragilidade física e
emocional. Rodrigo, então arrogante e imaturo, desmanchou a carapuça e chorou
sacudindo os ombros em longo desabafo. Naquele momento, Canindé percebeu que o
luto se completou. Após atirar no pai, Rodrigo foi preso e impedido de
participar das cerimônias fúnebres. Permaneceu apenas o vazio e era preciso
resgatar. A falta de acompanhar o velório e os demais procedimentos formaram um
imenso vazio que agora se preenchia.
– Canindé, – perguntou o menor virando o rosto – queria fazer outra
pergunta muito importante, agora do lado profissional – e assumiu um ar sério, maduro.
–Claro, Campeão – havia intimidade entre o psicanalista e o
jovem.
– Meu pai matou meu avô, será que isto acontecerá comigo?
– Como assim? Não entendi. – Canindé se fez de desentendido.
– Meu pai matou meu avô e eu matei meu pai. Será que meu filho me
matará?
Rodrigo hoje cumpre pena sob regime semi-aberto, frequenta o sétimo
semestre de Direito e estagia no Ministério Público.
REFLETI SOBRE A PERGUNTA DE RODRIGO AO PSICANALISTA. NÃO HÁ RESPOSTA IMEDIATA, DEPENDERÁ DA VIDA QUE RODRIGO ESCOLHER PARA SI.
ResponderExcluirMUITO BOA SUA NARRATIVA. BEM ESTRUTURA E COMPREENSÍVEL.