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Conto 1 - Afeto com Limites

Duas coisas sempre o abalaram na vida. As separações das ex-mulheres e os sofrimentos dos filhos. O avião levanta vôo rumo a Belém e Miguel fixa o olhar no lago Paranoá. Com forte balanço, a terra some e o mundo se divide em nuvens brancas e céu azul. “Nosso vôo terá duração de duas horas e trinta minutos”. Colocou os óculos escuros, fechou os olhos e dormiu.
Miguel estava curioso para saber o que encontraria. A filha, que raramente dava notícias, há cerca de dois meses ligava diariamente, comentando os problemas com a separação do marido. Nas últimas ligações e principalmente numa conversa pelo Messenger, alegava ser espionada por vizinhos. E foi mais longe. Dissera que naquele momento, estavam violando seu texto na tela e desligara sem despedir-se.
No aeroporto de Belém, pegou os pertences de mão e desceu à sala de desembarque onde a moça o esperava sorridente. Miguel reparou as maçãs salientes do rosto. “Como vai filhota, está se alimentando bem?” Ela fingiu não ouvir. “Olá papai, saudades”. Percebeu o carro todo abalroado. Catarina dirigia em silêncio, observada pelo pai. “Às vezes penso que tudo não passa de imaginação”, falou baixinho, quase para si mesma.
Miguel foi o primeiro a entrar no apartamento. A sala pequena aconchegava sofá quebrado, aparelho antigo de TV de 50 polegadas e mesa de jantar com seis cadeiras. Sapatos espalhados e roupas nas guardas das cadeiras completavam o ambiente. No quarto a cama coberta por roupas amarfanhadas. Evidentemente não a arrumava há tempos. A cabeceira cheia de tocos de cigarros portava um cinzeiro com baganas de maconha. “Voltou a usar drogas?” Perguntou de supetão, revolvendo o lençol sujo. “Por quê? Pensa que inventei as histórias?”. O pai virou-se e perguntou novamente, encarando-a. Ela deu as costas “estou usando, mas não tem nada a ver, paro quando quiser”.
Entendeu que Catarina recaíra após quinze anos sem droga. “Você deve voltar comigo para Brasília, filha, precisa de tratamento”. “Nunca”, correu à porta, abriu-a e saiu apressada. Embaixo do prédio o carro arrancou cantando pneus. Ele abriu a geladeira e, do meio da desordem, separou um pão de forma, leite e ligou a televisão.
Eram duas horas da madrugada quando a porta se abriu. “Olá, até que enfim. Vá deitar, mais tarde conversamos” disse o pai a uma filha com o olhar vidrado. Com certeza usara drogas e o pai queria evitar discussão. “Vou dormir, mas saiba que não volto para Brasília de jeito nenhum”. Os dois se beijaram e foram dormir.
Pela manhã, Miguel acordou com leve batida na porta. “Coloquei a mesa do café, vou até a padaria. Desculpe por ontem” disse a filha com cara amassada. Lancharam em silêncio. A moça pediu licença e acendeu um cigarro. “Falava sério em me internar na clínica de tratamento?” perguntou preocupada. Abanou a fumaça com a mão e encarou-a. “Claro que sim. E aviso que só saio daqui com você, comprei passagem para amanhã, portanto, você está demorando a se arrumar”. Mais uma vez, a reação foi violenta. Jogou a xícara na parede e o açucareiro no chão. Aos gritos alegou não necessitar de tratamento. “Eu paro de cheirar a hora que eu quiser”. Miguel  a esperou se acalmar. “Hoje é seu aniversário. Onde podemos almoçar em sua homenagem?” Qualquer deslize, precipitaria uma fuga e ele perderia a filha para a droga.
Durante o almoço, o pai recomeça a argumentação. “Filha, aqui em Belém, está só. O Beto não a ama. Acabou-se a ilusão, vamos voltar.” Falou com paciência. “Saiba que você está no fundo do poço”. “Ok, voltarei, mas se você me internar, fujo. Corro que ninguém me pega”. Miguel abraçou-a com ternura, recordando a criança que foi um dia. Novamente acalmou-se.
Na madrugada, após longa permanência da filha no banheiro do aeroporto, entraram no avião. A certeza de que usara droga veio quando o avião alçou vôo e ela gritou perguntando aonde iriam. Desesperada, berrava que o avião estava caindo. “Não verei mais minhas filhas!”. Em outro momento, exclamou: “Seremos capturados por extraterrestres.” Para acalmá-la, o pai deitou-a com a cabeça no colo e acariciou seus cabelos loiros entoando  uma canção de ninar. Miguel desconfiou que Catarina fazia uso de droga pesada.
Quando o avião aterrissou em Brasília, pai e filha saíram abraçados. Dirigiram-se ao carro que Miguel deixara no estacionamento e rumaram para a clínica. “Você está traindo a confiança que depositei em você. Pensa que não sei aonde me leva?” Catarina ameaçava abrir a porta do carro e pular. O dia estava claro quando deram entrada na clínica. “Pai, você me enganou. Este lugar eu conheço. É asilo de loucos. Ficarei somente um mês”.
Miguel preencheu os papéis da internação. “Ela deu muito trabalho”?, perguntou o atendente. “Fiquei sabendo que a trouxe de Belém do Pará”.
Baixou a cabeça, suspirou fundo e lançou o olhar com ternura à filha que dormia exausta. Levantou-se da cadeira e, pela janela, avistou o pátio onde caminhavam  homens e mulheres sem rumo. Alguns cavucavam a terra com as mãos. Uma moça, parecendo ter a idade da filha, balançava a cabeça e mirava o infinito tristemente.
“As visitas são uma vez por mês, no terceiro domingo. Faremos um exame de sangue que indicará o tipo de drogas usadas e ...........”.
Miguel não ouvia o atendente. Queria sair o mais rápido possível.