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quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Sobre as construções
Migrar é uma espécie de carma do nordestino brasileiro. Influenciado pela fome e a miséria da seca, viaja quilômetros à procura de melhores condições de sobrevivência. O deslocamento é constante, vez por outra acelerado pelo recrudescimento da aridez ou oferta de emprego em outras regiões. Aconteceu durante a construção de Brasília, quando milhares de migrantes do Norte e Nordeste do país se deslocaram à região central para ocupar vagas na construção civil.
(foto: fonte internet)
O pedreiro Raimundo Nonato partiu do Piauí em setembro de 1958. Deixou seis filhos com a mulher e pegou carona num caminhão pau de arara rumo ao canteiro de obras do Planalto Central. Conheci-o décadas depois na fila do banco no Conjunto Nacional, enquanto o atendimento demorava. Falou suas aventuras durante a construção. A facilidade dos empregos nas construtoras e a contrapartida da falta de conforto nos alojamentos do Núcleo Bandeirante. Considerava a futura capital acolhedora se comparada a situação piauiense. Havia esperança de melhoria. A seca na terra natal vitimara dois filhos.
Naquela tarde, levaria o neto a um prédio que ajudara a construir. Interrompemos a conversa quando o visor chamou minha senha.
Após ser atendido, ofereci carona e fomos ao prédio do Banco central no Setor de Autarquias Sul. Lá chegando, identifiquei-me e ganhei um crachá de acesso. Quando o elevador chegou e preparava-me para entrar, notei movimentação no balcão.
– O senhor não pode entrar. Aonde vai? – dizia o porteiro a Raimundo – Qual o Departamento?
– Quero mostrar o prédio ao meu neto. Ajudei a construir e ele quer conhecer – O pedreiro usava uma linguagem simples, enquanto torcia a aba do chapéu.
Com olhos grandes e negros, o menino admirava a escultura de mármore por trás do balcão.
Voltei e devolvi o crachá. A fila esbravejava impaciente
– Seu Raimundo, venha tomar um refrigerante. – Levei-os a uma banca de revista próxima e pedi refrigerante para os três.
– Vô, como subiu até lá em cima? – o menino apontava o topo do edifício.
– Subíamos de elevador de tabuas com motor. Durante a subida, qualquer vento balançava o trem. Mas a visão do sol, derramando amarelo/laranja pelo cerrado, compensava – o velho sorria.
– Sentia medo, vovô?
Pedi que esperassem, paguei a conta e saí. Voltei ao edifício e convenci o chefe da segurança a autorizar uma visita acompanhada por vigilante. Tomamos o elevador de aço que, hermético, fechado e claustrofóbico, subiu silencioso e firme até o décimo andar. O menino olhava em volta, como a procurar algo.
O migrante nordestino tem visão simplista do mundo. A cada andar construído, sonhos e matizes diferentes. Nos rostos queimados do sol, marcas do esqueleto de concreto. A mente dos netos se alimenta de histórias utópicas de edifícios com paisagens ensolaradas. Na realidade, só o concreto frio, lacrado por portas e janelas. Ar condicionado. Corredores com gente apressada. Papéis. Planos.
A volta do passeio foi silenciosa. Diante da pergunta se gostara do prédio, o menino respondeu que achara gelado com pessoas chatas.
Netinho! – chamava Raimundo – sabe aquele ali – e apontava a Caixa Econômica Federal. – Construí paredes a noite. Vamos lá, quero mostrar também.
– Não precisa vovô. Prefiro que fale da construção.
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