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sábado, 3 de outubro de 2015

PACIENTE REBELDE

(Google Imagens)
Tenho um grupo de amigos cujo início da amizade vem do período 1974 a 1983, quando as instalações de computadores engatinhavam. Formávamos, no órgão onde trabalhávamos,  a equipe responsável pela implantação de sistemas de informática pelo Brasil.
Os anos passaram, trocamos de emprego, envelhecemos e perdemos contato. Há três anos montei um grupo Whatzap e resgatei um a um. Hoje conta com vinte pessoas e vez por outra reúne. O encanto desses encontros é o autoconhecimento. Ouvir comentário sobre si possibilita saber quem somos, pela visão do outro. Entre os colegas, cabe destaque ao Hélio, com seu permanente bom humor. Agora mais gordo, de bem com a vida, brinda a mesa com natureza aguçada e presença assídua.
A cada reunião muitas novidades. Nem sempre boas. As vezes se pergunta por alguém e é anunciada a temida partida. Mas Hélio trata esses percalços com brincadeiras e, na maioria das vezes o assunto vira conversa agradável, ao recordar cenas pitorescas do falecido. Aliás, a memória do Hélio é prodigiosa, chega a ser perigosa, quando se fala de relembrar fatos.
Hélio tem a capacidade de transformar acontecimento difícil em agradável, como a seguir descrevo, com sua permissão, claro.
Certa feita, Hélio amanheceu com fortes dores no peito. Cabe esclarecer que andava acima do peso, fumava quatro carteiras de cigarro por dia e tomava generosas doses de pingas e cervejas. “São hábitos saudáveis em qualquer idade.” E a comida? “Torresmo e churrasco de carne gorda, que carne magra é dura”. Tirando o cigarro, todo o resto pratica com assiduidade até hoje.
A família espera dois dias e como as dores só pioravam, a dedicada escudeira, Bela, a esposa, chama a emergência. Já no hospital, o médico consulta os exames e constata enfarto. “Sala de cirurgia já”. É submetido a intervenção e após a  UTI. Todos os dias, no horário de visitas, a filha dá plantão ao lado do pai e só sai quando a segurança mostra o relógio na parede. No terceiro dia, ao chegar, nota o pai triste. Pergunta como está.
— Péssimo — responde. Pergunta por quê.
— Fome — responde mal humorado. —Um buraco aqui ó... — e coloca a mão na barriga. — Preciso urgente comer algo sólido, senão morrerei de inanição —  A nutricionista que passa no corredor, ouve a conversa e fala que prescreverá canja magra, sem sal, para aquela noite. Desanimado com o alimento insosso, o relógio marcando as horas sem fim e a leveza da filha pegando sua mão, adormece.
Acorda sobressaltado, mas decidido. Sussurra instruções ao ouvido da moça, que ainda tenta  argumentar. Como conhece o pai, acaba cedendo.
—  Tá bom, vou buscar!
Pouco depois, volta com pacote na bolsa, fecha as cortinas do box da UTI, abre o embrulho e dá o conteúdo ao pai, que devora rapidamente.
Passaram-se alguns minutos e abrem-se as cortinas. Era a atendente. Instala a mesa portátil, coloca a canja sob supervisão da nutricionista. Ele olha o prato com desdém.
— Como está se sentindo agora, senhor Hélio?” — pergunta.
— Maravilha. Agora estou ótimo — responde.
— Tá vendo? Aos poucos irei introduzir alimentos sólidos com tempero. Amanhã deverá ter alta da UTI e irá para o quarto.— fala sorridente
— A senhora não entendeu. Nem provei essa água turva porque isso não é alimento. Comi três coxinhas fritas com suco de laranja. Deliciosas —  e bate na barriga satisfeito.
A moça arregala os olhos e sai a procura do médico. Atrás dela Hélio acrescenta com voz forte:
— Catupiry, recheadas com queijo catupiry. Uma delícia.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O CHEIRO QUE DÓI

Google Imagens
Para garantir que poucas pessoas sintam seu odor, Severino levanta antes do sol nascer. Toma um gole da cachaça em cima da mesa, come um sanduiche de mortadela e segue para mais um dia de trabalho. Acena para Manoelzinho, marido de Lindaura, sua ex-mulher.
— Vá lá pra trás — grita o motorista do ônibus, enquanto os passageiros  afastam para ele passar. Senta no último banco. Na falta do que fazer, pega a revista do chão e a folheia. O sacolejar do ônibus, parece querer jogá-lo para fora. Os passageiros evitam aproximar. Deveria ter ido a pé.
Talvez no lugar deles, fizesse o mesmo. Sente-se estranho. Dá sinal de descida e caminha até a porta. As pessoas se afastam tapando o nariz. Salta do ônibus em movimento. Inicia a caminhada de uma hora até o trabalho do dia. O homem que o contratou espera no portão.
— Sou Severino — apresenta-se. O homem rejeita a mão estendida e o encaminha ao fundo do quintal.
— Aqui — aponta o buraco fétido, cheio até o topo.
— É fundo? — pergunta colocando a mão aberta abaixo do peito.
— Mais ou menos — fala o proprietário, apontando o barraco onde pode trocar de roupa.
Severino coloca o calção amassado, tira o chinelo, a camisa e toma um gole de aguardente. O fedor que sai do buraco deixa de incomodar. Há trinta anos limpa latrinas. Entorna meia garrafa de cachaça, para dar coragem e enfia o pé no buraco onde a pasta fétida fermenta soltando bolhas. Inicia a descida.
Desce lentamente e o líquido toma conta do corpo. Alcançando os genitais, a cintura, o peito, finalmente o pescoço antes do pé apoiar  em terreno firme.
— Pensei que tinha menos profundidade — comenta Severino.
— Isso aí tem conteúdo de uns cinco anos — exclama o contratante com uma gargalhada.
Com a chegada do ajudante, Severino enche o primeiro balde. Levará o dia inteiro a retirar o produto.
As tres da tarde, após completar duas garrafas de aguardente, retira o último balde e entrega ao ajudante, que o coloca na caixa da carroça contratada. O cavalo desajeitado sai reclamando. Severino agarra a borda do buraco e pula para fora escorrendo lama marrom, viscosa. Quando ajeita o corpo, perde o equilíbrio e, na tentativa de se manter em pé, segura no braço proprietário que grita e afasta. Rapidamente o auxiliar toma Severino pelo braço e o senta no chão. Com a mangueira do jardim dá jatos nas costas, pés,  peitos, braços. A água limpa e gelada reanima Severino. Pede que dê um jato em seu rosto. O proprietário, traz-lhe sabão em pó e escova e o ajudante  esfrega o patrão com rigidez.
Quando o filho chega para busca-lo termina a lavação e seguem para casa lado a lado. Apesar de cansado, pai e filho seguem a pé, os ônibus não param pegar Severino.
— Pai, porque o senhor saiu da casa da frente? — Severino espanta-se com a pergunta e demora a responder.
— Sua mãe pediu e mudei para o barraco dos fundos — fez breve silêncio — Acho que enojou com meu cheiro. Logo depois tio Manoelzinho tomou conta da casa.
O resto do caminho foi em silêncio. Ao chegarem, ouviu o resmungo do homem que ocupara seu lugar ao lado da mulher.
— Já, já levarei a janta — Lindaura sorri da janela com o perfume de leite de rosas que o conquistou na juventude.
— Boa noite Severino, deposita o dindinho aqui ó, na mão do gerente do banco — esticou o braço rindo, Manoelzinho. Com a outra mão, apertava o nariz trancando a respiração.
O filho entrou na casa, ele seguiu pelo portãozinho lateral até os fundos. Desabou no banco de madeira. Perto das oito da noite, a ex-mulher chegou com o prato de arroz, feijão e carne assada. Depositou-o na mesa, junto com o boleto do IPTU e deu as costas com a respiração suspensa.
Severino raspa o prato com miolo de pão. Olha o boleto e percebe que vencimento seria no dia seguinte. Passa a mão na garrafa de cachaça, deita na cama e mira o teto de zinco.  No dia seguinte teria duas fossas para limpar. Fecha os olhos e adormece ao som do violão vindo da casa da mulher. Manoelzinho toca e canta Nelson Gonçalves todos os dias para sua amada antes de dormir..

terça-feira, 25 de agosto de 2015

A VIÚVA

(Google Imagens)
Acorda cedo. É dia de faxina, dia de separar as roupas para a máquina de lavar. Coloca a água para ferver. Adora passar café fresco, principalmente o da manhã. Em pouco tempo o cheiro forte invade a cozinha e a faz recordar o amante da juventude. Na época, era uma jovem viúva com quatro filhos. Tinha trinta e dois anos. Ele dezoito, estudante universitário. Encontravam-se furtivamente em sua casa, onde conversavam e transavam a tarde inteira. Antes dele partir  para a universidade, preparava um bom lanche para alimentar o jovem.
É interrompida pela campainha. Abre a porta. É Bené, a faxineira barulhenta, que dá bom dia e se encaminha ao quarto de serviço.
Gostaria de ter o amante ao lado, pelo menos mais uma vez. Balançou a cabeça para espantar os pensamentos, foi à cozinha e tomou o remédio da pressão. Seria o odor de café que acordara sua memória? Ao ver o calendário, identificou o motivo. Faziam vinte anos da morte do filho, melhor amigo do jovem amante. A lembrança provocou a lágrima que rolou pela face lisa e branca. Teve grandes perdas, sendo a primeira o marido que perdera jovem para uma doença terminal, deixando-a com quatro filhos.
O amante também foi perda difícil de enfrentar, mesmo sabendo ser amor impossível. Logo depois da formatura, o jovem casou com a namorada e mudou de cidade, deixando pais e parentes para trás. Sentiu vontade de confessar os sentimentos a alguém. Falar sobre esse amor que nascera com data de validade. Foi até a área de serviço, mas descartou conversar com Bené, que cantava um funk nada atrativo. Voltou à cozinha. O jovem havia sido o segundo homem, quando recém completara três anos de viuvez. Até a morte do marido, recordava-se em detalhes de como fora feliz. Uma relação sem espaço para brigas que terminou inesperada. Uma manhã de domingo, o companheiro sentiu fortes dores, foi ao hospital e lá ficou.
Enquanto toma café, consulta o Faceboock. Entra no perfil do amor da juventude. O que estaria fazendo? Com quem viveria? Estaria casado? Teria filhos? Que mais? Não lembra. Foi ao quarto, abriu a gaveta do criado mudo e pegou, com cuidado exagerado, o binóculo de teatro. Recebera de presente do rapaz, no dia que completaram um ano de convívio.
No dia anterior, o avistara chegar para a visita mensal aos pais, seus vizinhos. Ficou tão nervosa que não encontrou o aparelho de aproximação. Agora o deixaria no móvel da sala. Toda vez que vinha, ele passava a pé pela frente da casa dela. Desconfia que estacione o carro propositalmente de forma a ser visto. Será que se lembra das tardes passadas juntos? Agora de binóculo, iria aproximá-lo para junto dela.
Da cozinha, a empregada pergunta qual sua idade. Ouve, olha com impaciência para o teto e pensa: “...tenho oitenta, mas...”
— Tenho trinta, Bené, trinta e dois anos — responde com sorriso.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

AMOR MAIOR

(Google Imagens)
Os primeiros tempos após a morte dele foram estranhos. Transformaram-me em uma pessoa com um vazio no peito impossível de suprir. Sentimento inexplicável que me assolou por anos, com a dubiedade entre recordar os tempos que vivemos juntos e a dor de aceitar o imponderável.
Minha criação foi rígida, diluída entre cinco irmãos a obedecerem cegamente à mãe autoritária que surrava ao menor sinal de insubordinação. Meu pai era alcoólatra inofensivo. Costumava chegar alegre em casa e acordava todos com gritos de “hora de levantar preguiçosos”. Católica fervorosa, para a mãe tudo era pecado. Na idade adulta, continuei casta, nervosa e sonhadora.
Meus estudos de primeiro e segundo graus aconteceram no semi-internato em colégio de freiras. Passava os finais de semana triste em casa. O trabalho duro me esperava como recompensa ao estudo dedicado. A escola representava o oásis de uma vida plena de limitações emocionais. Era a melhor aluna, a responsável pela oração antes do almoço.
Anos mais tarde senti falta disso. Minha mãe alegou que estava sobrecarregada e me tirou da escola. Fiquei confinada, ajudando na criação dos irmãos. Preparava as refeições, fazia faxina, lavava louça e era responsável pela irmã mais nova, pronta a ampará-la nas crises de bronquite.
No ano em que completei vinte e oito anos, mãe me mandou acompanhar meus irmãos á quermesse da igreja; que me lembre a única festa que frequentei. Aquele evento representou muito, pois nele nos conhecemos. Conversamos pouco, menos de dez minutos, porém, o suficiente para provocar esquentamento tão avassalador que nunca mais fui a mesma. O encontro com aquele homem deu outro sentido em minha vida. Naquela noite e nas seguintes, ao deitar, custava a adormecer. Sentia um calor intenso no ventre sem entender o que era. Os pensamentos voavam pelos telhados, só repousavam ao encontrá-lo. Houve noites que acordava com a sensação da barba dele espetando. Nos afazeres domésticos, quebrava pratos ao lavar louça, esquecia alimentos torrando no fogo, errava o tempero.
Nossa relação iniciou rápida como exige o amor, graças a uma atitude intempestiva de minha mãe. Ao me surpreender com a boca torneada de batom, obrigou-me a tirar a roupa e surrou-me sem dó. Nesse dia, corri a ele. Sem perceber o estado de embriaguez, deixei-me amparar pelo homem amável e atencioso. Fiquei tão a vontade que entreguei a ele a virgindade.
Do momento em que nos conhecemos, até morarmos juntos, o tempo foi curto. Primeiro passei a frequentar sua casa todas as tardes, nos horários da missa. Confesso que junto ao homem alegre ao me receber, havia forte odor de bebida, o mesmo cheiro de meu pai. Nada mais importava. A casa era simples. Em vez de fogão, um fogareiro, e as cortinas eram surradas, de chitão vermelho de mesmo tecido da toalha de mesa. Morava só, vivia em meio à desorganização. Tudo era novidade para mim, transformava dores em felicidade. Dei minha arrumação geral, organizei tudo e mudei. Mãe tentou argumentar, mas estava surda para as argumentações. Rancorosa, rogou praga, balançou a cabeça, por fim, me expulsou de casa. Peguei sacola de roupas e corri para morar com o homem da minha vida. Com a felicidade que sentia nem suas constantes bebedeiras esmoreciam meu amor.
Com ele conheci outro lado da vida, aprendi que finalmente entrava, mesmo que tardiamente, no compasso certo. Nossa vida era uma poesia da qual tirávamos estrofes de todos os acontecimentos. Seu costume de chegar tarde embriagado, não afetava nossa relação. Trazia sempre um papel de pão com versos apaixonados para recitar. O amor que sentia era infinito. E ele me fazia sentir uma deusa. Vivia totalmente dedicada à casa.
Foram os melhores anos de minha vida. Ele me respeitava e conheci seus amigos seresteiros com os quais amanhecia a cantar e tocar violão. Após sete anos nessa vida de sonho, falei que estava em suas mãos a decisão de termos um filho. A reação foi inesperada, pela primeira vez discutimos muito. Dias depois, acordei só. Meu amor desaparecera.
Continuei a receber noticias esparsas dos amigos. Que casara, tivera quatro filhos. E hoje pela manhã, que morrera.
Tentei ir ao enterro, mas cadê coragem. Andei sem rumo até acalmar e chegar em casa. Meu marido, monge budista, medita na sala com ruído gutural. Espero terminar, nos beijamos no rosto. Como nunca bebeu nem fumou, percebe o hálito de aguardente. Nada comenta. Falo uma desculpa qualquer e vou para o quarto. Olho meu semblante no espelho da penteadeira. Ao ouvir passos no corredor, deito e finjo dormir.
Pensava no rosto de meu amado com semblante sereno deitado ao meu lado. Que enorme tristeza. Acabou-se. Nunca mais tornarei a vê-lo, em pouco tempo seu rosto se apagará de minha memória.
Ele nunca se apagou.

terça-feira, 14 de julho de 2015

GRANADINO CENTENÁRIO

(Google Imagens - Plaza Bib-Rambla-Granada Espanha)
A.C. está sentado no banco de pedra da Praça Bib Rambla em Granada. Sem encosto para escorar, descansa as mãos em cima da bengala preta com cabo dourado, apoiada no chão. “Com licença” sento ao lado. Comento sobre a pomba que come pipoca na mão do garotinho com a babá. A resposta é bem humorada, “esses animaizinhos arriscam tudo por um petisco”. A ironia é sutil e fico na dúvida a quem se refere. Resolvo praticar espanhol. Entendo tudo que fala. Tem 92 anos, viúvo. Até se aposentar , trabalhou com fabricação e venda de móveis em sociedade com quatro irmãos. O negócio os sustentou até a idade avançada afastá-los. Esperavam ser substituídos pelos filhos.
Como não se tem controle sobre as gerações, seus três filhos abriram mão do negócio. Os primos então assumiram a incumbência de administrar a empresa. Inicialmente, a fizeram prosperar, porém, após algum tempo, a fábrica passou a encolher. Seguiram-se aportes financeiros dos patriarcas até estabilizar em tamanho e lucro bem menor do que quando assumiram.
Cada um dos irmãos de A.C tratou de cuidar da própria independência financeira. Alguns compraram ações na bolsa, outros investiram em negócios pequenos, mas sem exceção, assistiram minguar as economias em sucessivos empréstimos para suprir a baixa lucratividade da empresa moveleira.
Na contramão dos sócios, meu amigo da praça investiu boa parte do capital poupado na construção de um prédio. Um conjunto de lojas e quitinetes para alugar. Ao ouvir que era brasileiro, pediu desculpas, depois falou da sua experiência há vinte anos com um conterrâneo meu. “Minha mulher ainda era viva e esse homem chegou muito simpático, falando em espanhol sem sotaque. Conquistou minha família”. A. C. vivia do aluguel das lojas e apartamentos que estavam mais da metade fechados por falta de inquilinos. “A situação econômica do país estava difícil e ninguém queria arriscar”.
O brasileiro convenceu A.C. a alugar o imóvel inteiro a ele. Garantiu que havia investidores na Espanha interessados em aplicar. Ele acreditou no estranho de aparência tranquila. Visualizou a oportunidade de obter ganhos com apenas um inquilino. “Até então, era necessário cobrar o aluguel de várias pessoas e isto era desgastante para mim”. Desocupou o imóvel e o entregou ao estranho sem imaginar que ali se iniciava a maior dor de cabeça da sua idade madura. O homem permaneceu cinco anos com o prédio. Deixou de ocupar e de pagar o aluguel do edifício desde o primeiro dia após pegar as chaves. Após anos de luta na justiça, ganhou a sentença em seu favor para receber os aluguéis, com o direito de reaver o prédio. De nada adiantou, pois o brasileiro desapareceu. “Coisas da vida” desabafa o granadino. “Um dia se perde outro se ganha. Nada contra seu povo, adoro os brasileiros, este foi exceção que poderia ser de qualquer lugar”, completa resignado. Ao final do relato, levanta ágil. “Vou embora, hoje é dia de faxina e a moça me expulsou de casa porque sou alérgico”, fala jovialmente, sai a passos rápidos com a bengala em cadência de causar inveja a muito sessentão.

sábado, 13 de junho de 2015

AS JARDINEIRAS DE CARMEM

(Rua das Jardineiras-Sitges-Arq Pessoal)
 Voltar da Espanha sem experimentar a temperatura do Mar Mediterrâneo é pior do que deixar de visitar Alhambra. E queria algo mais original do que enfiar os pés nas águas da Barceloneta, praia central dos catalães. Indicaram-me uma cidade a quarenta minutos de trem a partir de Barcelona: Sitges. Consultei o Google. É tomar o metro até a estação de Gracia e seguir de trem da Renfe. A cidade realmente é linda. Tem cerca de vinte e seis mil habitantes e casas que parecem feitas em miniatura, com pequenas varandas e jardineiras floridas. A praça central onde desembarquei, harmoniza um pequeno comércio, o ponto de taxi e a casa de informações turísticas, tudo muito limpo. A partir daí, ruas estreitas acessam a orla. Algumas trafegam somente motos. Outras mais largas com mão única. Vive do turismo e é conhecida como Ibiza espanhola.
Em uma das ruas, rumando ao Mediterrâneo, conheci Carmem. Caminhava distraído clicando fotos por todos os lados, encantado com flores bem cuidadas e a limpeza da cidade, quando percebi a mulher que, do alpendre da casa olhava desconfiada. Baixei a máquina de fotos para deixa-la a vontade e ela me recebe com sorriso amistoso. Tem pouco mais de metro e meio, magra e veste chambre azul claro, meias brancas com pantufas azuis da cor do roupão. O cabelo branco preso ao lado da cabeça com pequeno grampo dourado, contrasta com o rosto alvo e os olhos verdes calmos e risonhos. Puxo assunto no melhor sotaque espanhol que consigo, “minha mãe tem oitenta e seis anos e mora sozinha”. “De onde vocês são?” Pergunta curiosa se referindo a Malu e eu. “Do Brasil”. Acena com a mão indicando que entendeu a distância. Olha para cima. “Muitas horas de avião. Tenho muito medo.” Após meia dúzia de comentários, vencida a desconfiança, a espanhola cria coragem e fala do que é inofensivo segredar a um viajante.
“Tenho oitenta e quatro e vivo com meu filho, que voltou a morar comigo após a separação da mulher. Me chamo Carmem e nasci em Córdoba. Aos dezesseis anos mudei para Sitges, a fim de cuidar dos filhos de minha irmã que mora aqui. Em um baile conheci Ramirez, dez anos mais velho, o único homem de minha vida, com quem casei e tive dois filhos. A vida era difícil naquela época”. Olhou fixamente um ponto qualquer no arquivo da memória, certamente se referia a Revolução Civil Espanhola. “Meu marido tinha negócios em Madri e para lá seguia de motocicleta toda semana. Condução barata que preocupa. Um dia quando meu filho menor completava seis meses, foi e não voltou mais. Ele e o amigo com quem dividia despesas de viagem encontraram o carro na contramão que os matou”. Se já era difícil, piorou e Carmem passou a trabalhar incansavelmente para criar os filhos.
Orla de Sitges-Arq. Pessoal)
Diz não gostar de Sitges. Ama a cidade natal. Talvez pelas grandes dificuldades que a vida lhe apresentou. Os filhos lhe deram netos e estes, bisnetos, motivos suficientes para permanecer na cidade. Sobre casamento, “é para somente uma vez. Não casei e não casarei nunca mais”. Vive na mesma casa que nasceu o marido, filho único. Carmem a recebeu de herança. “Ficará para os filhos. Façam o que quiserem, quando eu morrer”. A casa é um sobradinho com o térreo alugado a um comércio. Mora no andar de cima. Aponta para a escada “subo e desço trinta e cinco degraus todos os dias. Limpo, varro e tiro a poeira. Detesto sujeira”. Distraio com as varandinhas com jardineiras floridas e bem cuidadas do andar de cima. “Essas plantinhas são meus mimos. Cuido-as como cuidei de meus filhos e netos. Dos bisnetos não cuido. Eles têm mãe”! Dá uma risada marota como se fosse uma confidência.
Carmem abaixa e pega agilmente o papel de bala perto de meu pé. “Isso não é meu,” esclarece “mesmo assim, recolho e o colocarei na lixeira lá de casa”. Despeço-me com abraço e beijo nas faces. Ao fechar a porta, acrescenta: “Um beijo em sua mãe”. Faço sinal positivo com o polegar e chamo Malu para continuarmos pela rua até o Mediterrâneo.