Casamento de Joana e Dante - Arq. pessoal |
Avó
Joana era mulher ímpar. Sua obstinação e fortaleza interior herdou dos pais italianos,
que sobreviveram a viagem de trinta dias de navio pelo Atlântico em finais do
século dezenove. Queriam desbravar o interior gaúcho. Católica fervorosa, frequentava
a igreja todos os domingos e foi na fé que encontrou forças para enfrentar com humildade
e perseverança os obstáculos e tragédias que a vida colocou pela frente.
Conheceu vovô Dante no município de Barão do Triunfo, distrito de São Jerônimo
cujo acesso até hoje se dá por estrada de terra batida e onde anualmente a
família Tassinari se reúne no terceiro domingo do mês de maio, para comemorar a
chegada dos antepassados.
Joana
casou com vovô Dante recém saída da adolescência e logo iniciou a prole. Não
havia tempo a perder, faltavam braços para a labuta no campo e a fonte era o ventre
das descendentes italianas. Teve sete filhos, quatro mulheres e três homens,
sendo minha mãe a mais nova. Cedo conheceu a dureza do destino que cunhou seu instinto
de sobrevivência. Em um final de semana, enfrentou a morte trágica do marido que
era ferreiro de profissão, mas tocava trompete na banda do clube embalando casais
de imigrantes a dançar nos dias festivos. Naquele dia extremamente frio do
rigoroso inverno gaúcho no julho de mil novecentos e trinta e cinco bem que ela
tentou que Dante colocasse o casaco de lã. Mas após o término do baile, cerca
de quatro da manhã, ele saiu à rua sem camisa e tomou um golpe de ar gélido que
provocou tosse insistente evoluindo rapidamente para
febre alta, renitente a compressas e remédios caseiros. Já temendo o pior, Joana
tratou a carroça e o levou desacordado e com respiração ofegante a São
Jerônimo, onde havia médico. Chegaram no dia seguinte e o doutor estava na
roça, fazendo um parto e, como a situação agravava, a esposa dele aplicou uma
injeção inócua e Dante Tassinari faleceu de pneumonia dupla aos quarenta e três
anos, no dia dezessete de julho, quarta-feira, nos braços de Joana, indefesa
diante do destino que ensinava sobre a perenidade da vida.
Ao me contar esta história, vó
desembrulhou a seringa ainda com resto de líquido. Expliquei que guardar aquilo
só trazia sofrimento. Assim, aos prantos, assisti Joana jogar no lixo a relíquia
sinistra, que tocara o corpo do marido, talvez já morto. E nunca mais falou no
assunto.
Viúva,
com sete filhos, carente de alternativas e desiludida com a vida do interior,
enviou os dois filhos maiores para Porto Alegre, com a incumbência de arranjarem
trabalho. Algum tempo depois, recebeu a carta que esperava e rumou para a
capital. E colocou os filhos para trabalhar em um hotel onde os rapazes se
empregaram na lavanderia e as moças como camareiras. Joana foi trabalhar em
casa de família e atender a doentes acamados para reforçar o orçamento. Nada a
intimidava. Concluiu que viver no interior era inviável e incumbiu a venda das
terras de herança aos irmãos que permaneceram, pois acreditava poder comprar moradia
na capital. Mas as terras daquela região eram desvalorizadas e a quantia arrecadada
serviu apenas para adquirir dentadura.
Quando
menino, eu morava em Uruguaiana e Joana em Porto Alegre. Ouvia
de mãe que ela morava um pouco na casa de cada filho. Mais tarde compreendi que
assim, ajudava na criação dos netos, cozinhando, lavando e passando, numa
labuta que a mantinha saudável. Anos depois, ao ser aliviada dos afazeres
domésticos experimentou a decadência física e mental da velhice ociosa, na
forma que falarei mais a frente.
Joana
apesar de miúda era forte e tinha o colo mais macio
que Deus botou na terra. Era ali sentado que ouvia as histórias dos primos de
Porto Alegre e da família que ainda desconhecia.
Diariamente alternava pratos italianos deliciosos como pastelão, cueca virada, pão
e o melhor feijão que tive a felicidade de provar, recheado com linguiça,
carnes e partes de porco, numa feijoada difícil de encontrar, a não ser na casa
da prima Viviani que herdou o talento.
Deixou
a todos o exemplo de luta, perseverança e esperança mesmo em momentos difíceis.
Como na perda do filho, que se suicidou após grave depressão, agravada pelo trabalho
doloroso como Juiz de Paz que o obrigava a realizar perícias em desastres com
morte na BR 101. Perder um filho é dor mais forte que qualquer outra e por várias
vezes a percebi chorando as escondidas. Evitava falar nestes momentos, apenas secava
as lágrimas e logo superava.
A
alegre baixinha empreendedora, certa vez montou uma fábrica de picolés em Uruguaiana. Comprou
formas de gelo e enchia com água e suco de frutas naturais espremidas a mão, pois
não havia naquele tempo o processador para
tirar o sumo. Em cada forminha, após o início do congelamento do líquido na
geladeira, colocava um pauzinho e assim o cubinho virava picolé. Para chamar
consumidores, Joana foi à diretora da escola e perguntou se poderia liberar os
alunos na hora do recreio. A professora cedeu e assim, todo dia, formava-se
enorme fila em frente à casa para comprar o “picolé da vovó”, como ficou
conhecido. Quando a fama se espalhou, Joana pensou em comprar outra geladeira
com freezer maior e aumentar a produção, mas não chegou a concretizar, pois pai
separou da mãe e o destino impulsionou nova mudança e fomos todos para Porto
Alegre.
Todo
ano durante o dia de Finados, vestia preto e, em companhia dos filhos rumava
para o Barão do Triunfo, depositava flores nos túmulos dos parentes, e se demorava
no do vovô a rezar contrita a tarde inteira. Quando a vi assim, compreendi que o
amor, a incompreensão e a revolta desta morte em circunstância tão bestial e
precoce, não a deixaram pela vida toda.
Estava
sempre pronta a prestar ajuda para um filho que precisasse e, quando passei a
residir em Porto Alegre ,
mudou-se para nossa casa e tive a felicidade de conviver mais tempo com Joana,
enquanto mãe trabalhava. Controlava os deveres da escola e dizia que o estudo era
tudo na vida. Falava que ninguém tira. Morávamos
a beira do rio Guaíba e, quando a chuva era demais, dormia com a mão no piso,
monitorando o nível do rio que, dizia poder subir e atingir a casa a qualquer
momento. Aos finais de semana a casa ficava cheia, vó agregava a família.
Depois de sua morte, estas reuniões foram escasseando e a casa ficou grande.
Tinha
um sorriso maroto, sempre franco e com a mão em frente à boca, timida. Dos
medos da natureza violenta daqueles tempos em Porto Alegre , lembro
de acender velas quando os ventos fortes das tempestades rugiam na casa de
madeira da Tristeza, fazendo estalar as tábuas de forma assustadora. Numa
destas tempestades, em que
Joana preocupada colocou os cachorros dentro de casa, perdemos
a caturrita Cocota que voou da gaiola e aninhou-se numa árvore. Castigada pelos
ventos, a árvore tombou e o galho que o animalzinho estava, amassou-o. Joana
chorou a morte da bichinha e enterrou-a com direito a cruz no fundo do quintal.
Faleceu
aos oitenta e sete anos em um centro de envelhecimento assistido em Porto Alegre. Internada
para tratamento médico após diagnóstico de demência senil com piora acentuada
pela idade, agravada pela queda da janela tipo guilhotina da cozinha em sua cabeça.
A partir disto, experimentou esquecimento acelerado pondo em risco sua
integridade a ponto de esquecer bocas do fogão aceso após cozinhar. Mas a
preocupação maior foi quando ao visitar tia Celina no bairro Sarandi, esqueceu
quem era e aonde ia, ficando horas perdida no centro da cidade, até aparecer um
conhecido e levá-la para casa. Experimentou acelerado processo de
envelhecimento e certa vez quando fui visitá-la no centro, era uma miúda e
chorosa mulher de cabelos branquinhos e o andar firme e decidido fora substituído
por um arrastar de pés lentos e indecisos. Percebi nela apenas o mesmo gosto por
viagens, pois quando me aproximei, tomou meu braço e fomos ao portão do prédio,
onde me disse que queria ir ao Barão do Triunfo. Uma semana depois faleceu e lá
foi enterrada, junto de seus pais e irmãos.
Joana
para cada neto representou algo diferente, de acordo com o tempo de convívio
com cada um. A todos ensinou princípios de honestidade, perseverança e espírito
de solidariedade. A mim, foi a contadora de histórias que me contagiou e fez
enveredar pelo jornalismo.
Marco querido,
ResponderExcluirQue emocionante ler a história de sua avó.
Avós são pessoas especiais, que são duas vezes mãe, que sempre estão pronta a nos contar suas experiências, nos dar um colo macio, e preparar guloseimas na cozinha:)
Lembrei da minha "vó Lica", mãe de meu pai, pois a de minha mãe faleceu quando ela ainda criança.
Vó Lica, era uma criatura doce, daquelas avós que nunca brigou com nenhum neto , e éramos muitos, sempre com um sorriso no rosto, fazendo tranças nos cabelos das meninas, e dando bolas aos meninos. Era uma festa dia domingo ir pra casa dela.
Que saudade!
beijos meu amigo.
Olá Leila, coração de avó é maior que o da mãe, creia nisto. Abraço.
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