(Google Imagens) |
“Nascemos para fazer o bem, e fazê-lo é
suficiente para preencher uma vida”.
Vicente Ferrer (missionário
jesuíta espanhol autor de projetos sociais na Índia)
A frase acima ouvi pela primeira vez da médica responsável pela quimioterapia
e só percebi o significado anos depois, ao procurar viver o presente,
abandonando a antiga prática da preocupação com o futuro, sempre incerto. Passei
a analisar as relações pessoais e compreendi meu papel perante filhos, família,
amigos e parentes e percebi o quanto teria que mudar, pois a felicidade deles,
não era necessariamente a minha e questionei se estaria realmente feliz.
O início da jornada passou pelo desapego. Os filhos, já
independentes, deveriam seguir seus destinos. Se até então me sentia
responsável direto por suas vidas e felicidade, agora entendia suas vidas como de
sua responsabilidade. Por trás de tudo está Deus e que o destino do ser humano
não pode ser traçado e nem é de responsabilidade dos pais. Aprendi a dizer não as
coisas que me desagradavam e isto melhorou sensivelmente minha vida. Sentia-me descomprometido
em agradar aos outros. No tocante as relações, fiquei exigente e descobri que nem
todas as conversas me satisfaziam. Dito assim parece prepotência, mas a verdade
é que a vida passa rápido e precisava dar qualidade a minha vida. Procurar
formas de ajudar os outros. Dedicar tempo a quem necessita esclareceu o sentido
de que ajudando, se é ajudado. Preparado para esta mudança, encontrei a CEO –
Central de Paz e Otimismo. Devo a esta entidade de voluntários o primeiro
despertar. A cada plantão ouvindo as pessoas me sentia em um mundo novo,
solidário. Meus problemas, que julgava únicos, passaram a ter a leveza da brisa.
As sessões semanais de quimioterapia foram difíceis. Enquanto o
líquido curador entrava pelas veias, pensava na minha recuperação e esta forma
de pensar facilitou suportar o cheiro que exalava da pele e as náuseas com golfadas azedas. A cada dia mais lições
experimentava e a conscientização da dificuldade de continuar a ser o mesmo. Passei
por diversas fases neste período. Da angústia do sofrimento, ao sentimento de
desamparo e carência de afeto que sempre julgava ser insuficiente. Aquele
materialista, preocupado em ganhar dinheiro se afastava e as prioridades que
nortearam minha vida até então, realocaram-se.
Ao final de cada aplicação de quimio, o único desejo era chegar a
casa. O mal estar e ânsia de vômito eram meus companheiros nestas horas
difíceis. As mãos frias e a sensação de abandono me dominavam. Permanecia
quieto no banco do carona, enquanto o carro seguia seu rumo do Setor Hospitalar
Sul até a L2 sul. Ali começava meu silêncio. Certa vez, ao percorrer o trajeto uma
profunda amargura me dominou ao ouvir uma conversa paralela que, mesmo sem maldade,
me atingiu profundamente. Na sequência, caí num choro convulsivo, interrompendo
o assunto e tudo mais que acontecia até o radio do carro emudeceu. Ansiava por deitar
na escuridão do quarto, fechar os olhos e naquele mundo que se abria somente
para mim, entrar e permanecer quieto e solitário.
Em janeiro de 2000, ainda sem nenhuma manifestação da doença, numa
das viagens a Porto Alegre trouxe um cachorro ao qual meu filho batizou de Spyke. Era um labrador que me acompanhava nos
passeios. Criou o hábito de esperar para juntos caminharmos quando anoitecia. Foi
companheiro no período das aplicações e me ajudava a espairecer nos passeios amenizando
o mal estar do acúmulo de remédios no organismo. Quando fiz a última aplicação,
Spyke, que me acompanhara descomprometido e dócil, caiu doente e em poucos dias,
morreu. Abraçado com minha filha, externei esta morte com muito choro,
fragilizado pela longa caminhada da recuperação que enfrentara ao lado do
companheiro.
Para me refugiar, montei um quadro muito claro. A imagem,
existente apenas na imaginação, era de uma casa a beira da praia, de onde se
via o mar com ondas estourando na areia. A leve brisa tornava o clima agradável
e levantava a areia fina e branca. Por trás da casa, podia avistar montanhas com
altas árvores que abrigavam pássaros cantadores. Neste ambiente mergulhava após
cada sessão de quimioterapia e lá amarguei a perda de Spyke. Até hoje, quando
preciso recolher para refletir, volto a esta casa. Ela existe. Na minha
imaginação.
Criei hábitos pouco compreensíveis a quem me acompanhava por
tantos anos. Passava os dias escrevendo e lendo. A partir do momento que pude
subir ao mezanino, por lá ficava a maior parte do dia. Descia apenas para
almoçar e retornava para dormir por duas horas. Depois lia até nove da noite,
quando sentava no quarto, na poltrona para assistir TV até a hora de dormir.
Sentia uma absoluta necessidade de ficar só o que transformou meus
dias em casa em encontros comigo mesmo,
onde procurava meditar e compreender tudo que me acontecera. Entendia que havia
a expectativa de, numa manhã qualquer, o marido, o pai, o cunhado, acordasse da
forma antiga. Doce ilusão, aquele que conheceram, morrera. Na verdade, até
então vivera no oba-oba da vida, despreocupado comigo e cheio de
responsabilidades com os outros.
O menor acontecimento para mim tomava dimensões inimagináveis e se
antes abrira mão de convicções, agora estava disposto a lutar por cada
centímetro perdido. Um exemplo foi a poltrona que desloquei do mezanino para o
quarto. Certo dia deparei com a ausência do móvel e pressenti que havia perdido
a negociação. A poltrona voltara ao local anterior. Pior do que perder o
conforto foi a perda da posição dentro de casa. Dependendo da doença a pessoa
passa a se sentir fora do meio e qualquer fato soa como desmerecimento. Rompi
naquele dia com o resguardo, chamei um ajudante e a desci novamente, retornando
ao status anterior. O que para qualquer outro era um fato sem importância, para
mim representou algo de suma importância.
Ao adoecer, o homem regride e fica fragilizado. A sociedade não o aceita
no mesmo status, relegando-o a segundo plano e ele percebe nas mínimas coisas, que
precisa se impor. O custo de abandonar esta luta é representado pela perda das
rédeas da vida e ser relegado ao segundo plano.
Seguia por rumos inesperados. Fiquei mais exigente e, longe de cobrar
com relação a mim, achava que meus deveres com os outros estavam comprometidos,
pois desacreditava tê-los. Entendi a necessidade de me amar, para amar o
próximo e expressar aos outros minhas opiniões e desejos.
Queria nova forma de viver,
e isto passou a incomodar muita gente. Pensava que quando mudasse provocaria o
mesmo nas pessoas em volta. Doce ilusão. Minha mudança virou incômodo a grande
número de pessoas. Algumas tentaram chamar-me atenção e acusaram-me de ausência
em casa.
Após a décima quinta sessão de quimioterapia, obtive licença médica
para voltar a nadar. Das horas que passava nadando, muitas dediquei a repensar
a vida, momentos nos quais acumulava recordações da infância, da adolescência e
do início da idade madura, quando tudo eram sonhos e as perdas eram poucas
representativas. Mas perdas por doenças graves podem ser comensuradas, e são impossíveis
de passarem despercebidas. Nada é como antes. O dano físico causa profunda
transformação e poucos são capazes de entender, por mais compreensivos. O corte
da cirurgia e a quimioterapia são marcas visíveis impossíveis de disfarçar.
Queria viver minha vida de forma autêntica. E pedi a Deus que
ajudasse a achar o caminho menos traumático possível a mim e aos que me cercavam.
"Quando a dor de não estar vivendo
for maior que o medo da mudança, a pessoa muda..." (Sigmund Freud).
E mudei.
AS MUDANÇAS SÃO DOLOROSAS PORQUE É MAIS CÔMODO FICAR NA MESMICE. PORÉM, O ENFRENTAMENTO DO NOVO, COM OLHAR PRÓSPERO, ABRE CAMINHOS SAUDÁVEIS NA VIDA.
ResponderExcluirVivemos num movimento único de irmos sempre em frente, sem direito a reviver algum caminho. AS bifurcações que nos aparecem são sempre para fortalecer nossas decisões. Por isto acredito que errar é humano e persistir no erro é ..... humano também.
ExcluirMeu amigo de adolescência, as lágrimas vieram ao ler e reler seu texto, carregado de sinceridade. Sofri junto com voce, e orei a cada parágrafo, para que nunca mais sofras assim, jubilei-me com seu vigor e sua inteligência, seu sofrimento não foi em vão, se é que isto é consolo, voce mesmo determinou sua cura, e surgiu um Marco, melhor, conforme voce mesmo descreve, melhor para si mesmo, para poder viver esta vida e deixar este exemplo de fé e coragem guerreira. Parabéns pelo novo homem, que se antes já era bom, agora deve ser ainda melhor. Deus te abençoe.
ResponderExcluirUma existência só vale a pena quando é vivida intensamente e dela retiramos o sumo para o crescimento. Saudades das reuniões dançantes da década de 6o no bairro Menino Deus em Porto Alegre. Abraço.
ExcluirSeu texto me lembrou que, quando choramos ao ver um filme, é porque ele nos tocou em alguma parte de nossas emoções. Não choramos pelo mocinho ou mocinha, choramos por nós.
ResponderExcluirVc me fez refletir sobre algumas coisas, sobre anulação e submissão. Tenho estado quieta e reflexiva. Obrigada.
A vida imita a ficção ou vive versa. Abraço.
ExcluirMarco
ResponderExcluirSua sensibilidade é fruto do seu amadurecimento
Ambos me encantam
Caro companheiro,
ResponderExcluirTambém me encontro na mesma luta que você. Acredito que Deus tenha nos escolhido e está nos lapidando para uma missão que ainda desconhecemos. A dor realmente nos faz querer mudar. Penso em quantos séculos de erros e desenganos seriam necessários para me ensinar o que o câncer tem me ensinado em meses...
Também me emocionei com o seu relato e tenho experimentado as mesma emoções.
Desejo-lhe uma ótima recuperação.
Caso queira conhecer o meu blog segue o link: cancerovario-nanci.blogspot.com
A doença nos faz mais humanos, solidários e compreensivos com o próximo. Abraços.
ExcluirCaro companheiro.
ResponderExcluirTambém me encontro na mesma luta que você. Acredito que Deus tenha nos escolhido e está nos lapidando para uma missão que ainda desconhecemos.
Penso em quantos séculos de erros e desenganos seriam necessários para aprendermos o que a doença tem nos ensinado em meses. A dor nos faz querer mudar para melhor.
Também me emocionei com o seu relato, embora esteja experimentando as mesmas emoções e sentimentos.
Desejo-lhe, de coração, uma ótima recuperação.
Caso queira conhecer o meu blog, segue o link: cancerovario-nanci.blogspot.com