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domingo, 2 de novembro de 2014

MEU PAI, MEU TESOURO

(Google Imagens)
Tomo um delicioso café expresso em um shopping de Manaus, quando repentinamente a moça com uniforme preto de uma grife famosa tropeça no pé de Malu e se desmancha em desculpas. Matávamos o tempo, esperando o sol baixar.  A moça de preto fala do descuido e afirma que sempre foi desastrada. Explico que por acontecimentos como esse estamos todos nos conhecendo. Relata que está há pouco na cidade, antes morava com o pai e abre o celular para mostrar sua foto. Ansiosa, esquece onde está o arquivo. Estende a mão. “Muito prazer, meu nome é Daiane”. É uma jovem simpática, morena de cabelos e olhos pretos, olhar sereno e sincero e beleza única. Fala entusiasmada, com orgulho do pai que vive em Curitiba. Percebo que uma história está para surgir
Os pais de Daiane se conheceram em Manaus no ano de 1992. Ele, 22 anos, do Paraná e a mãe, 16, nascida na capital manauara. Viram-se pela primeira vez na farmácia onde o pai era gerente e a mãe fora comprar remédios para o filho doente. O amor a primeira vista os aproximou rapidamente e começaram a namorar. Um encontro que durou pouco, pois o pai foi chamado as pressas a Curitiba onde o avô de Daiane estava enfermo.
Meses se passaram antes dele voltar a Manaus. “Quando retornou, o padrinho de minha mãe o procura para tomar satisfações, acusando-o de não ser homem suficiente para assumir o que fez. E assim, soube da gravidez da minha mãe e meu nascimento.“ O pai, filho de japoneses, gerou a filha tão parecida com ele que, sem dúvidas, registrou a criança como filha. A partir daí fornece mantimentos a Daiane, como forma de ajudar o sustento, fardos de mucilon, leite, água mineral que a mãe dividia com o outro filho.
Quando o pai percebeu que sustentava o irmão de Daiane, alega outros compromissos e reduz a quantidade de mantimentos fornecidos. Assim, a situação apertou para o lado da mãe que, sem alternativa, propôs a ele assumir a menina: “Quando maior, dei razão a meu pai. Acho injusto sustentar meu irmão que não é filho dele”.
Daiane contava dois anos e lembra da sensação de abandono ao trocar de família. “Um dia, ainda pequena e sem entender, acordei nas mãos de duas pessoas. Meu pai, que eu detestava influenciada por minha mãe e uma mulher estranha, que depois soube ser irmã dele, minha tia. ” Quando perguntava pela mãe aos parentes do pai, “não me recordo o que diziam”. A resposta, no porão do inconsciente, espera para aflorar na hora certa.
“Ao passar dos anos, morando com meu pai, passei a odiar minha mãe, que não telefonava”. Se alguém perguntava, dizia que não tinha. “Para mim, era como se tivesse me jogado no lixo”.
Quando chega à adolescência, a jovem passa a ter problemas com a família do pai. “Havia muita rigidez na minha criação. Eu tinha 14 anos e morava com minha batian, é como chamo minha avó em japonês, e pai resolve me levar para morar com ele em Rondônia. Assim conheci minha madrasta e a experiência foi das piores. Ela tinha ciúmes da aproximação de Daiane com o pai. As discussões pioraram. “Morei com eles por quase 4 anos.
“Aos 18, saí de casa para morar com o namorado. Acreditava que assim conquistaria  liberdade e cuidaria de uma casa só minha. Mas não havia amor entre nós. Penso que só eu amava. Não me sentia amada”. Ela ainda não percebera que o amor é um sentimento tão especial, que vale a pena oferecer mesmo que o outro não sinta. Após dois anos de convivência, separaram e, sem espaço para voltar para casa, Daiane volta a morar com a mãe. “Ainda bem que não tive filhos.”
Em Manaus a encontra vivendo com o padrasto há 16 anos. É a terceira mulher do homem que tem cinco filhos de outras relações. “Hoje estou bem, procuro   melhor. Sempre fui independente e é isso que eu quero, conquistas, não quero depender de ninguém.”
Daiane continua a pesquisa do arquivo de fotos no celular. Após longa procura, acredita ter foto na loja onde trabalha. Pega o braço de Malu e o meu e a seguimos. Entramos no sofisticado ambiente da grife. Remexe as gavetas e percebo a frustração da jovem ao não encontrar. Queria materializar a imagem do pai e está desapontada.
Pergunto se gostaria de morar com a mãe ou com o pai. Com sorriso triste e de cabeça baixa, responde quem sabe que a vida nem sempre é como gostaria. “Com o pai. Amo meu pai.”
Em sua sinceridade, acrescenta, “as vezes chego a pensar que não sou amada por ninguém, nem minha família. Pelo menos não demonstram”. Falo que simplesmente ame, sem exigir amor dos outros pois há pessoas que não sabem demonstrar amor.
Três dias depois, em Brasília, recebo dela a foto do pai pelo Whatsapp.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

PROCURA-SE A VERDADE

(Google imagens)
Era o ano de 1970 e a cidade ainda provinciana, apesar de capital, se movimentava lentamente, sob as ordens e contra-ordens dos coronéis pouco  interessados nas aplicações de justiça, decidindo  a vida da cidade nas salas das mansões.  Em tarde assim, que a vida escorre devagar, Mudinho, a mando do patrão, passeia pelo sítio à procura de formigueiro. Ao longe, ouve os tiros da caça aos capotes, comum nas grandes propriedades, onde os pais treinavam a pontaria dos filhos. Mudinho sua muito, enquanto pulveriza o veneno. O dia ensolarado e seco torna a tarefa penosa e vez por outra, quando encontra sombra acolhedora, arria o pulverizador no chão e senta.
Durante as paradas, observa os laranjais minguados. Numa destas incursões de vigilâncias percebe o corpo estirado ao pé do cajueiro. Aproxima-se lentamente, olha para os lados e identifica a fisionomia do jovem de pele clara, sujo de terra, com perfuração no meio da testa. Era o filho do dono da chácara em frente. Passa um pouco das cinco da tarde e o corpo exala o cheiro da morte exposto ao sol escaldante. Sai em carreira desabalada rumo a sede e encontra o patrão cercado pelos filhos, a guardar os apetrechos da caçada aos capotes. Mudinho gesticula desesperado, informando o que vira. O homem termina a tarefa e prepara um cigarro de palha. Após acender o pito, sinaliza ao Mudinho para indicar a trilha.
O morto está de bruços e a arma na mão indica mais que morte natural. A polícia é chamada, faz o reconhecimento e após inquirir testemunhas recolhe o corpo e os indícios. Os desdobramentos causam profunda estranheza aos familiares do morto e comentários indignados da população. O falecido era um belo jovem de 16 anos, amante da vida e das coisas boas que oferece. Pelo tipo de vida que levava, pleno de alegria e despreocupado em nada indicava os motivos do infortúnio. Em dois meses, a perícia lavra o laudo e conclui o inquérito. Indica a causa da morte, para surpresa de todos, como suicídio com arma de fogo e arquiva o processo.
Quem viu o corpo, jura que “não havia vestígios de pólvora na mão do rapaz” e afirmaram ainda que “a perícia omitira a evidência do corpo esfolado com sinais de arrasto”. Alguns rumores foram ventilados, mas nenhum levado em consideração, como por exemplo que o rapaz fora flagrado na mata com a filha do dono do sitio onde foi encontrado o corpo. Menina comum, mas fogosa e sapeca, apaixonada pelo “vizinho lindo” que era como a ele se referia. Durante o velório, alguns presentes cogitaram ser bala perdida. Três dias após a ocorrência, a mulher do dono da fazenda onde o garoto foi encontrado internou-se no Hospital Municipal com grave crise nervosa. O Mudinho desapareceu sem prestar depoimento e na mesma semana a família mudou-se e nunca mais se ouviu falar deles.
A irmã mais nova contava a época 13 anos e estava de férias na praia quando ficou sabendo da morte do irmão. Imediatamente retorna às pressas a tempo de consolar a mãe que, muito mal, nem abria os olhos inchados pelo choro. Entre os cinco filhos, era a mais próxima e faz descrição comovente do rapaz. “O mais bonito dos irmãos”. Hoje com 57 anos, ainda se emociona ao falar do caso. Recorda de quando ele deitava a cabeça em seu ombro e comentava que era ossudo, diferente do da namorada que era “macio e aconchegante”. Assim fluem as lembranças do rapaz brincalhão, alegria da família, que desesperava as empregadas ao jogar nelas a lagartixa de estimação. E revive na memória, com saudades “um lindo sonho de infância e adolescência”.
O crime prescreveu e nunca se saberá ao certo o que aconteceu. Fica a marca profunda na família que enterrou o ente querido sem conhecer a verdade dos acontecimentos. Tragédia que, para a policia, foi mais um caso de solução discutível.

sábado, 2 de agosto de 2014

DIFÍCIL É DIZER NÃO

(Google Imagens)
A casa de Graça pouco mudou nestes anos todos. Reconheci as roseiras e o enorme pé de cinamomo, envelhecido pelo tempo. Na frente a varanda com duas cadeiras. Conheci a dona da casa há mais ou menos quarenta anos, quando aos finais de semana visitava minha tia levado pela vó. Normalmente eram domingos e molhava as plantas enquanto a mãe podava os arbustos. Do quintal da casa da tia, a olhava escondido atrás da árvore, enquanto as mulheres da casa tagarelavam na sala. Passava tardes inteiras a espreita atrás do pé de cinamomo. Ela sabia e eu não fazia a mínima questão de disfarçar. Escondia para fugir das brincadeiras dos primos, caso percebessem a espreita.
 Um dia, acredito que contávamos com cerca de vinte anos, aproveitei a festa na casa dela, criei coragem e resolvi falar sobre as intenções secretas pela primeira vez.
– Graça, vou confessar algo sério  – estava muito, mas muito mesmo, encabulado – quero namorar contigo.
Dado o inusitado da declaração, riu e desconversou, pensou ser uma  brincadeira. Como insisti, desfiou para mim a resposta difícil de ouvir, com a costumeira doçura que me cativara.
– Não posso namorar contigo Armandinho, tenho namorado. Está na cozinha, preparando o jantar. – A resposta era definitiva e Graça virou nos calcanhares, para retornar a casa. Na verdade esperava confirmação como resposta. Nunca a rejeição dura e triste. Insisti.
– Não tem problema, termina o namoro com ele e fica comigo. Gosto de ti e tenha certeza, não arrependerás.
– Sinto te desapontar, mas não posso aceitar – e entrou em casa, fechando a porta atrás de si, me deixando a sós na pequena varanda. Lá dentro, Roberto Carlos cantava uma melodia romântica.
Diante da negativa categórica, só restou virar as costas e sair dali. Nunca mais nos vimos.
Passaram-se quarenta anos e novamente estou em frente da casa de Graça. Olhei o prédio onde havia a residência da tia. Um prédio envidraçado foi erguido no terreno. Imaginei as árvores sendo derrubadas feridas de morte por serras elétricas. Identifiquei o único cinamomo que sobrara. Era o que me escondia enquanto admirava Graça no quintal.
Na casa dela, alguém plantava orquídeas. Parei o carro em frente e observei. Não tive dúvidas, era ela. O jeito de menina, o cabelo curto. Criei coragem.
– Olá Graça, Tudo bem? – Falei firme, demonstrando o contentamento em vê-la – Lembra de mim? – Pelo semblante, não. Vasculhava na memória algum indício, algum movimento conhecido. Seu rosto se iluminou de repente  e pegou meu entre as mãos.
– Claro Armandinho. Continuas querido. – Percebi sinceridade no comentário.
Falamos sobre fatos da época, sobre casamentos, filhos, enfim, momentos de atualização de nossas vidas. Em determinado instante ficamos sérios.  Me olhava esperando. Pressenti o que seria.
– Recorda o dia que te pedi em namoro, Graça? – Rimos bom tempo. Ficarmos em silêncio. Peguei a tesoura de sua mão, cortei uma rosa e lhe ofereci. Olhamo-nos para ler pensamentos.
– Claro – Ficou pensativa, como a escolher palavras – Aquela negativa foi a única na vida que arrependo até hoje.

Ao ouvir histórias, o narrador se sente cativado pela infinidade de variáveis que incidem na trajetória de uma vida. São bifurcações que funcionam como a construção da obra em que a colocação a mais ou a menos de um tijolo, modifica tudo.

sábado, 7 de junho de 2014

TELEFONEMA DESCONCERTANTE

(Google Imagens)
Trafegava pela avenida de clubes norte rumo ao Hospital Santa Helena quando o celular tocou. Como não atendi, desligaram. Combinara dar carona a um amigo em visita à esposa internada, vítima de acidente. Em frente ao Extra, final da Asa Norte, o telefone toca novamente e reconheço o nome no display. Era R, amigo de Porto Alegre. Desta vez atendo, mando aguardar e coloco o carro no estacionamento coberto do mercado.
R é amigo de infância, filho de ex-banqueiro. Tínhamos na faixa de seis anos quando me mudei para a rua onde R morava. Sua casa, bela mansão com opulento muro, contrastava com a minha, de madeira e cercada de arame com cerca viva disforme, podada por minha avó. Como na infância as diferenças passam despercebidas, R e eu fizemos amizade que durou até o final da adolescência.
Como todas as crianças, tínhamos rotina simples. Diariamente saíamos da escola e, após almoçar, chamávamos os meninos da rua para iniciarmos as brincadeiras. R sempre tinha os melhores brinquedos, e  isso o fazia invejado. Apesar da casa de R ser a mais espaçosa, era na minha as reuniões, pois no porão montamos um clube onde guardávamos os objetos do patrimônio. Eram chaveiros, flâmulas e coleções diversas como a das caixas de fósforo, com exemplares de todo o mundo.
Mas a casa era alugada e um dia o locador pediu a desocupação. Isso provocou meu afastamento da garotada e a distância da nova residência esfriou a amizade. Mais tarde, entendi que o distanciamento também foi provocado pela chegada da maturidade, quando as diferenças sociais ficaram enormes. R era cercado das facilidades do dinheiro e eu, distante das benesses, entendi o estudo como única esperança. Passei no vestibular, entrei para o Exército, comecei a trabalhar e assim cada qual seguiu seu caminho.
Quarenta anos se passaram e soube que R morava em Campinas, São Paulo e que passava por tristes provações. Por intermédio de seu filho, consegui o telefone e liguei. Percebi uma voz cansada pelo sofrimento. Do bom humor da juventude, apenas a risada nervosa a relatar as provações. Queixou-se da vida, das pessoas, dos acontecimentos. Tirei alguns dias no trabalho, viajei para Campinas e constatei a penúria da situação. Fora despejado do estacionamento onde morava e de onde tirava o sustento, lavando e cuidando de carros na faculdade Anhanguera. Solitário, o próximo passo seria as ruas da cidade.
Anos antes, em Porto Alegre, encontrara a mãe dele, que relatou a difícil situação financeira da família. Negócios errados e pessoas de má índole provocaram dívidas impagáveis. A mulher temia pelo filho morar distante. Na ocasião, praticamente solicitara minha interferência para o retorno do filho à terra natal. Lembrar aquele pedido de mãe me tocou o coração, principalmente ao saber que falecera.
Fiz contato com familiares de R que se prontificaram a lhe estender a mão e assim, ele retornou a Porto Alegre. Mas as coisas estavam longe de serem resolvidas. Os parentes tentaram ajudá-lo, porém R, acostumado a receber tudo em mãos, carecia de iniciativa e novamente despencou na miséria.. Por colocar a vida nas mãos dos outros, esqueceu-se de fazer sua parte e novamente se viu abandonado. Acreditava erroneamente que todos tinham obrigação de unir esforços para mantê-lo. Voltou a comer e a residir de favor, vivendo de pequenos bicos, cada vez mais distanciado dos que o auxiliavam. Permanecia o orgulho infundado afastando-o de todos. R, que nos últimos anos sofrera tanto, ainda não percebera os sinais que a vida lhe dera para melhorar a situação. Deveria empreender profunda mudança de dentro para fora.
Tudo passou pela minha cabeça em segundos ao atender o telefone e pressenti que algo grave se avizinhava. Confessou que bebera o dia inteiro. Articulava palavras desconexas e continuava a queixar-se. Durante a conversa, utilizei todos os argumentos exercitados durante trabalho voluntário em central de apoio a pessoas em situação de risco. Encerrou o telefonema de cinquenta minutos dizendo manter ao lado uma arma engatilhada para acabar com a trajetória de vida. Cego pela desesperança, esquecia os anos de vida de opulência financeira e prazeres. Após o telefonema, liguei para o filho dele e relatei a conversa.
Durante os dias seguintes, tentei em vão ligar para R. Dez dias depois, recebo outro telefonema dele. A voz continuava cansada, mas percebi sobriedade. “Como pode ver, estou vivo!”, grita em gargalhada. Após alguns momentos, fica sério. “Tenho pensado muito no que falou. Realmente até os cinquenta anos vivi na opulência, não me faltava nada. Tive tudo.” Fez pequena pausa e continuou. “Minha mãe morreu em 1999 e a partir daí segui sozinho entre Londrina e Campinas, só gastando, como se meu dinheiro nunca fosse acabar. Você tem razão, desesperar é inadmissível, até porque há quinze anos sobrevivo com quase nada. Entendo merecer tudo isto, pois na opulência deixei de prestar ajuda, apenas ostentei o que nem meu era. Segui cercado de gente errada e desprezei aqueles que queriam me ajudar. Se hoje estou nesta penúria, o único culpado sou eu. Concluí que suicidar não é solução”.
Mais alguns minutos, R se despede e desliga o telefone. Percebi claramente uma grande mudança. Ao entender as escolhas erradas, reconhece que a chance de seguir avante com nova trajetória só depende dele mesmo. Subsistir dignamente desde 1999 sem recursos e enfrentando as tribulações é prova de valor pessoal no cumprimento da missão de vida. No mundo em que vivemos,  sobreviver com cinquenta milhões é fácil. Porém é para poucos viver sem nada, principalmente quando se teve tudo em grande quantidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A SURPRESA

(Google-Imagens)
Esta é uma das tantas histórias entre passageiros. Voo de Porto Alegre a Brasília e a mulher, aparentando cinquenta anos, lê a Bíblia enquanto a aeronave taxia na pista do aeroporto Salgado Filho. Em Brasília, tomará conexão rumo ao Nordeste. O avião decola e rapidamente alcança as nuvens e a leitura é interrompida por intensa turbulência. A mulher fecha o livro sagrado e o guarda no compartimento do banco à frente. Torce as mãos e, na tentativa de conter a ansiedade, puxa conversa com o passageiro ao lado.
— Adoro viajar, mas a turbulência me inquieta.
— Ainda é o meio mais seguro. — fala o passageiro, convincente.
Sorriem e trocam experiências de viagens. Tensa, mas agora confiante, a mulher fala muito. Apresentam-se. Ela é turismóloga ele é escritor.
— Escrevo narrativas, coloco no papel histórias que ouço, mas só as melhores — acham graça.
— Se contar a minha, o senhor publica sem identificar?
— Sim, claro. Para ser conhecida, uma história, deve ser divulgada. Omitida, desaparece — Comenta o homem pronto para ouvir.
A mulher fecha os olhos para concatenar as ideias e inicia a narrativa. As mãos juntas.
— Fui casada por quinze anos com um argentino. Homem de temperamento forte, mas alto, bonito e galanteador. Fazia frequentes viagens de Córdoba, na Argentina, ao Rio Grande do Sul para visitar amigos em Caxias. Quando nos conhecemos, eu era jovem, recém-entrada na idade adulta, inexperiente, apesar de um filho de relação anterior. Apresentados por amigos comuns, desde o início houve empatia, mesmo com a grande diferença de idade, o que nunca levei em conta. Com nove anos de namoro, casamos e fomos para a terra dele, onde exercia importante cargo público. Para ocupar o tempo cursei Belas Artes na Universidade local. — aquieta por instantes, procurando dados na memória.
— Falar com estranho, pode ser melhor que com amigo — instiga o escritor que logo silencia. Sabe a importância de ser ouvido.
— Vivíamos em festas de representação, jantares sociais na alta sociedade, onde ele era influente. Nossa vida era intensa. Mesmo assim, queríamos ter filhos e, como não engravidava, após cinco anos, resolvi fazer tratamento. Não compreendia a dificuldade para engravidar, pois já tinha um filho. Foram muitas tentativas de inseminação e, finalmente, desistimos. Para compensar, meu filho morava conosco e se dava muito bem com o padrasto. Costumavam sair para pescarias e a boa convivência entre eles era meu orgulho e tranquilidade. Isso compensava o tratamento machista que recebia no dia a dia. Sim, meu marido tinha temperamento ríspido, típico do homem portenho.
Vez por outra, o companheiro de viagem massageia o pescoço que dói forçado a olhar para a mulher da poltrona ao lado. O aviso de apertar cintos apaga e as comissárias iniciam o serviço de bordo.
— A posição firme do machista na vida social escondia um homem simples e emotivo, alterado de uma hora para outra quando confrontado com situações de estresse. Procurava entender a criação rígida recebida do pai autoritário e relevava as grosserias, que longe de mudar, só pioravam. Passou a viajar e ausentar-se de casa por longos períodos. Ao longo da convivência, a relação tornava-se burocrática. A vida conjugal cedeu lugar à frieza e praticamente desistimos do contato físico.
 — Quer cappuccino? — pergunta o escritor. A mulher aceita e ele pede dois à comissária. Ao receber os copos, passa um para a mulher, que segue o relato.
— Para preencher o tempo, resolvi aperfeiçoar-me em pintura. Contratei um  conhecido artista plástico, para ministrar aulas semanais em casa, o que se mostrou um hobby ideal. Com dois meses, o artista perguntou-me sobre meu marido o qual nunca havia visto e nem sabia o nome. Conduzi-o até a biblioteca e apontei o enorme pôster do casal, alguns anos mais jovens, presente dele, nas comemorações de dez anos de casados. O artista empalideceu. Perguntei o que acontecera. Pensativo, pediu licença e voltamos ao ateliê. Serviu-se de um copo d’agua. Sem dúvida, o transtorno do mestre aconteceu ao ver a foto. Ao término do horário, despediu-se e saiu. À noite, já de Buenos Aires, o artista liga e informa o cancelamento do contrato de ensino. Fala vagamente sobre compromissos impeditivos.
— As pessoas são agentes das ações do destino — fala o escritor recolhendo os copos vazios dos cappuccinos e colocando-os na mesa da poltrona do corredor.
— Percebi a mudança no artista, sentei na sala de estar e adormeci. Era noite quando meu marido chegou e, como hábito, cobra a janta. Passo o cartão de meu professor e pergunto de onde conhece o mestre da pintura de Buenos Aires. Pense num homem desconcertado. Após explicações inteligíveis, convidou-me para jantar fora. Nos aprontamos rapidamente em silêncio. Rodamos por uma hora, até o pequeno restaurante La Coruña, na estrada para Buenos Aires. Um lugar deserto, de comida cara, mas excelente, bem frequentado pela alta sociedade.
— Permanecemos em silêncio por longo tempo, rompido por ele. Começou a falar sobre a sexualidade reprimida, o assédio na infância pelo padrasto e, para meu espanto, do caso com o mestre Juan Carlos, convívio que arrastou por anos, mesmo após nosso casamento. Meu marido chorou muito, pediu perdão e implorou para permanecermos juntos. Falei sobre a dificuldade em aceitar a vida dele. Afinal, tinha vida dupla entre nossa cama e de outros “amigos”. Argumentou que juntos, eu poderia levar a vida que quisesse. Levantei, nos despedimos e tomei um táxi até um hotel. Nosso divórcio saiu em tempo recorde na Argentina. A homologação no Brasil se arrasta há anos. Somos grandes amigos agora, mas convivência marital é impossível.
O comandante acende avisos de apertar cintos. Descreve o tempo na capital, instrui passageiros em conexão e o avião aderna emparelhando com a pista de pouso.
Foram duas horas e quinze de voo que pareceram dez minutos. A mulher abre a Bíblia e pede licença para ler o Salmo de ajuda ao piloto para aterrissagem tranquila.
No saguão se despedem. Ela segue para a conexão. O escritor pega a bagagem e procura o ponto de táxi.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

DESESPERAR JAMAIS

(Google Imagens)
Romero estaciona a Kombi 1962, desce lentamente apoiado na direção e inicia o trabalho de preencher o engradado vermelho com mercadorias. Falta a agilidade de quando enchia dois engradados e os levava um em cima do outro para dentro da residência. Organiza os mantimentos, pacientemente. Primeiro os tomates, depois abacates, abacaxis, limões, laranjas. “Por cima folhas de alfaces, repolhos, couves-flores,  e rúculas, senão amassa”. Levanta a caixa na altura do peito e a leva à despensa. “As verduras foram escolhidas a dedo”, fala bem humorado ao dono da casa.
Há 35 anos fornece verduras frescas semanalmente. Em uma casa do Lago Sul, almoça toda terça a convite do proprietário. Durante a refeição, senta-se à mesa onde é tratado como membro da família. Serve feijão diretamente da panela de onde extrai paio, carne e linguiça.
Tem ar cansado, o Romero. No rosto, marcas da vida de sacrifícios. “Já fiz de tudo para sobreviver, desde caseiro a carregador de bagagens.”. O trabalho pesado custou hérnia e varizes doloridas, operadas por perigo de trombose. A aposentadoria é pequena. Diariamente, amanhece na Central de Abastecimento (CEASA) onde escolhe verduras e frutas frescas e distribui a compradores fiéis. Na casa onde almoça, dedica especial atenção ao fornecimento dos produtos. “Este casal é muito bom para mim. Aprendi muito com a família. Considero-os segundos pais”. Refere-se ao casal de 85 anos, donos da casa. Fala sobre as dificuldades, sentado à cabeceira oposta ao dono da casa.
“Perdi a mãe aos quatro anos de idade e poucos meses depois, perdi meu pai”. A partir daí, tudo fica difícil para o vendedor. A vizinha se encarrega de cuidar do menino, mas o submete a mãos impiedosas. A qualquer contrariedade, o castiga severamente. Certa vez, na insanidade dos maus-tratos, a mulher arranca-lhe metade de uma das orelhas. “Neste dia, jurei que na primeira oportunidade fugiria daquela tortura”. Acreditava haver um mundo melhor do que o que o acolheu. Aos cinco anos, arquiteta a primeira tentativa de fuga. Tenta uma, duas, três vezes, mas sempre é trazido de volta. A cada vez que retorna, os castigos pioram. No entanto, a cada fuga, adquire experiência e em certo dia de tempestade violenta, em meio aos trovões, foge correndo, alcança a estrada de terra e envereda pelo mundo desconhecido. Temendo ser reencontrado, caminha por três dias em direção incerta.
Dorme pelas ruas, debaixo de bancos e, de favor, em fazendas. Desesperado, à procura de lugar onde se fixar, Romero é abordado por um homem que o leva para casa e apresenta-o a mulher. “Olha quem encontrei na rua, está sem dono”, brinca. A mulher serve um prato de comida ao menino franzino e triste. “Pode ficar conosco. Não temos filhos. Dê ao jovem ocupação, boas roupas, salário e coloque-o na responsabilidade pelas vacas”.
Romero cresce aos cuidados do casal que, bons e hospitaleiros, o tratam como filho. Amadurece em lugar acolhedor e amoroso. Mas a vida prepara mais testes. Certo dia, o dono da fazenda amanhece adoentado e, após exames, é constatada doença terminal. A enfermidade é rápida e em poucos meses o homem falece. A mulher, idosa, assediada por parentes distantes é convencida a vender os bens. Chama Romero e fala que é chegada a hora de seguir caminho. Como ajuda, o indeniza com uma velha bicicleta, a qual será útil para trabalhar. O rapaz enfrenta o mundo novamente. Melhor preparado, mas de novo abandonado pelas pessoas que ama, convida a namorada para acompanhá-lo, fazendo uma irrecusável proposta de casamento. Com família para sustentar, monta o primeiro negócio próprio e, de bicicleta, passa a distribuir leite pelas vilas da vizinhança.
Um dia, em 1957, Romero ouve falar de Brasília: “canteiro de obras no meio do cerrado”. Consulta o mapa de um caminhoneiro, coloca as tralhas na bicicleta, a mulher na garupa e parte para o novo empreendimento.
No Distrito Federal, cresce financeiramente. Em pouco tempo, compra uma Kombi, arrenda uma chácara e passa a plantar para venda. E é com a distribuição de legumes e verduras que forma filhos independentes.
“Por que planos para o futuro? Vivo o presente, sigo as determinações de Deus, que só podem ser boas. Saúde é dádiva que agradeço todos os dias”. Hoje, Romero tem 75 anos e ensina que problemas existem para serem administrados e que dias melhores sempre existirão. “O dia bom, mais cedo ou mais tarde chega. Isso ninguém tira. Como me considero? No lucro”.