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sábado, 7 de dezembro de 2013

A MENINA QUE SE FEZ MULHER

(Google - Imagens)
Rosinha é menina esperta e aos treze anos, entendendo as dificuldades do pai para financiar as despesas, decide trabalhar. Distribui currículos em lojas, shoppings e supermercados, e em pouco tempo coleciona ofertas de emprego. É contratada como vendedora em barraca de peças íntimas, na Feira dos Importados. Como exibe silhueta torneada, esbanjando inocência e sensualidade, se permite o uso de vestes provocantes e maquiagem arrebatadora, como as atrizes das novelas. Da menina que lidava com bonecas e brincadeiras infantis, desabrocha a mulher esbelta exposta à cobiça.
André é mais um a interessar pela menina. Homem feito, 22 anos, casado e proprietário da barraca em frente, reconhece a magia da moça. Rosinha percebe o interesse do rapaz e, decidida a resistir, apenas alimenta sua inquietude sem transparecer interesse. Esperta, identifica nele a maturidade e independência que aos outros faltam.
— Aposto que é virgem — comenta André com o amigo, que comparece diariamente e faz do endereço mirante de observação.
De lindo sorriso, resiste bravamente aos mais ousados convites e continua a mostrar calcinhas, sutiãs e roupas sensuais, alimentando a volúpia dos clientes masculinos. Um dia, Rosinha recebe buquê de rosas com cartão escrito “Te quero. Não desistirei de você. André”. As pernas fraquejam e um calor sobe pelo ventre juvenil. A partir daí passa a reforçar o perfume e brinda o rapaz com belo sorriso.
A oportunidade para André surge no mesmo dia. Uma greve de ônibus. O rapaz se oferece para levá-la em casa e, a partir daí, passam a namorar. Sutilmente, o rapaz transparece que quer algo mais que namoro e Rosinha, sem forças para resistir aos beijos recheados de intenções, procura Sônia, a melhor amiga.
André, insistente, também conhece Sônia, a quem pede ajuda para conseguir o troféu. Ela deverá aconselhar a namorada a entregar a virgindade e, em troca, André a emprega na loja. Rosinha, inocentemente, se aconselha com a amiga, sem reconhecer a trama armada.
— Sabe Sônia, acho que perderei André  ¬ e confia o pedido do rapaz.
— Pois se entregue mesmo, deixe de ser boba, se não o fizer, ele te larga. Homem é assim mesmo — aconselha Sônia.
Naquela noite, Rosinha pouco dorme e quando o faz, sonha com as mãos de André em seu corpo, os beijos quentes e acorda suada. Amanhece decidida a entregar-se a André. À noite, se dirigem a uma esquina escura, perto da casa da moça e, dentro do carro, Rosinha deixa a inocência e entra na maturidade. Passam a sair diariamente e, como esquecem as precauções, a moça engravida.
André, homem maduro, já esperava isso e se dispôs a ampará-la. Rosinha aceita a ajuda, mas quando o jovem fala em casamento, declina e explica que a vida de casada não está nos planos. Com 27 anos, a moça considera a gravidez fora de hora, determinante para sepultamento do projeto de vida. Culpa-se e sofre em silêncio. Os olhos baixos refletem sua melancolia. André formou outra família e a visita três vezes por semana. Quando juntos, a leva para o quarto e a submete da mesma forma de quando a conheceu, na esperança de recuperar a moça brejeira e alegre.
— Gostaria de terminar a relação. Tenho 27 anos e estou presa a este homem — baixa a cabeça, parece envergonhada. — Só faço sexo porque ele quer, não sinto nada. Depois, fico feliz. Feliz porque terei três dias de folga antes que ele me procure novamente — pensativa, o olhar caído, a fala baixa. — Um dia refaço minha vida. Na verdade, nem vivi ainda. Saí da opressão de papai e caí na de André.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

AS DORES DO ABANDONO

(Google-Imagens)
Antes de entrar, observa demoradamente a varanda protegida com lona preta. Cuidadosa, empurra a porta encostada e entra. Lentas passadas, ajudadas por uma bengala levam a mulher que deixa agradável perfume na sala da casa de madeira. Usa bolsa e sapatos de couro marrom, calças de brim e blusa amarrada na cintura.
A residência é simples, os móveis surrados. A dona da casa, sua irmã, a recebe com breve sorriso. Marcaram o encontro no dia anterior. A recém-chegada sente o coração acelerar e torce as mãos de ansiedade ao perceber o rapaz com uniforme militar e boné entre as mãos. Apesar dos anos de separação, o reconhece imediatamente. Lentamente vai ao seu encontro e, quando está perto, deixa a bengala cair e o abraça forte. É recebida com braços arriados ao longo do corpo. O homem está frio, como estão gelados seus sentimentos.
- Pedro, meu filho, senti muito sua falta – soluça abraçada ao rapaz. O rosto afundado em seu peito.
A anfitriã observa o distanciamento, conhece os motivos. Há aproximadamente 25 anos, a mulher abandonou o rapaz na rodoviária de Brasília. A criança contava cerca de cinco anos de idade e foi deixada numa fila de ônibus, após passeio pelo Conjunto Nacional. Disse que compraria pastel e desapareceu. Depois, informou a Administração que avistara um menino perdido no piso inferior, descreveu-o e saiu rapidamente. Pedro foi levado pela assistente social à creche do governo.
Quando a tia o chamou para reencontrar a mãe, Pedro relutou muito.
- Não tinha condições de te sustentar, querido. Nem você nem sua irmã – fala baixo ao filho impassível. Continua abraçada ao rapaz. - Quando conheci Alfredo, ele exigiu que eu desse um de vocês. Escolhi você, mais velho e menino, tinha melhores chances de sobrevivência que sua irmã de colo.
As explicações em nada mudam o comportamento do rapaz e a mãe procura amparo nos olhos da irmã, que desvia o olhar para o chão.
A tia também é responsável por parte da história difícil do rapaz. Quando soube que seria desligado do abrigo, ao completar treze anos, ficou penalizada e o levou para casa. Mas a sina estava longe do fim. Chegando lá, o adolescente foi muito mal recebido e, francamente hostilizado pelo tio e primos. Como exigiram que dormisse fora de casa, a tia alojou-o na varanda, protegido apenas por lona plástica preta. Nas madrugadas frias, enroscava-se com o cachorro e o gato para se aquecer. Dormindo nesse estado a mãe o viu em visita a irmã e novamente desapareceu.
Durante a adolescência, carente de relacionamentos, compensava com as melhores médias da escola e assim foi o primeiro colocado no Colégio Militar.
- Filho, quero pedir perdão. Sei que tens dificuldade para perdoar, mas entenda, fiz por amor – tenta encarar o rapaz, que desvia para o lado.
- Tenho grande decepção contigo, nem sei chamá-la de mãe. Jamais me procura, diz que ama e pede perdão. Teve posição subalterna com relação ao teu companheiro e abandona uma criança na rodoviária. Nem imagina o que passei e pede perdão? Não é tão simples. Estou despreparado para perdoar – dirige-se à porta, abre e sai batendo-a forte. Na pressa, deixa cair um envelope e não percebe.
A mãe chora baixinho enquanto a tia corre atrás do rapaz com o papel na mão, mas o carro está longe. Abre o envelope. É um laudo médico. Lê e passa para a mãe.
“Paciente com surtos psicóticos, provável esquizofrenia. Indicação de acompanhamento por psicoterapeuta e psiquiatra. Focar tratamento na infância”.

sábado, 16 de novembro de 2013

PRISIONEIRO

(Google Imagens)
A fechadura abre com barulho ensurdecedor, a porta escancara e entra intensa luminosidade que fere os olhos do prisioneiro, acostumados a escuridão. Aparece a silhueta do homem que diariamente faz tremer o rapaz algemado ao banco de madeira aplicando métodos de tortura para obriga-lo a entregar amigos. Sempre a mesma gravata surrada, calças e sapatos pretos. Encara o rapaz com desdém. O prisioneiro entende que a sessão de tortura iniciará. Se igual às anteriores, o fim está próximo. O sangue gela, como acontece sempre que antecede as sessões. O recém-chegado acende a potente lamparina da mesa e foca no prisioneiro.
Atrás do homem de preto, entra outro, de avental branco e longo bigode grisalho. Fecha a porta e aproxima-se do prisioneiro. Levanta a pálpebra esquerda e pergunta o nome:
- José P. – responde após longo silêncio, rouco, voz baixa, quase imperceptível. O desânimo toma conta do rapaz.
- Dificilmente resistirá a mais uma sessão. – o homem de avental branco fala pausado, com experiência de médico de pronto socorro. Detesta o torturador, classifica-o como frio e sanguinário. Já atendera prisioneiros  passados pelas mãos do homem.
- Se quiser viver, que assine a confissão. – o carrasco fala alto, esbraveja que não é problema dele e reafirma que fará o trabalho. Atira uma folha de papel na frente do prisioneiro. A assinatura, bem sabia o médico, não afiançava a vida do torturado.
- A saúde está comprometida pelos maus tratos no pau de arara, os eletrochoques e dias sem comida e água. – reafirma.
José P. fora retirado de casa acusado de terrorismo, levado de pijama para um porão e submetido a toda sorte de sevícias. Taxado de terrorismo contra o Estado, o estado do rapaz era lastimável, com olhos vermelhos  emoldurados por profundas marcas negras. Na boca, um hematoma que pululava gosma branca a escorria peito abaixo.
- Que diga o que tem a dizer, por bem ou por mal. Basta assinar o documento sobre a mesa. – o torturador exultava os momentos que antecediam o início do interrogatório.
- Não posso atestar pela saúde do prisioneiro. Deve ser internado em um hospital imediatamente. Posso ter o diploma cassado. – o médico se preocupa com a reputação e isto enraivece o torturador.
- Pouco me interessa. Iniciarei a sessão -. Vira e liga o equipamento de som. A sala inunda o ambiente com música clássica. Abre o volume ao máximo, e enfia um par de luvas cirúrgicas.
O médico percebe o prisioneiro fixado no revólver em cima da mesa. Por instantes, se entreolham, costurando tenra cumplicidade.
Alheio aos acontecimentos, cego de raiva, o torturador coloca as luvas, o capuz, a soqueira, toma água. Ouve dois estampidos. A dor lancinante e instantânea o impede de respirar. Volta-se, leva a mão à cintura a procura da arma. Percebe-a na mão do prisioneiro. Mais dois estampidos e cai em agonia.
Enquanto o médico atende o carrasco, ouve outro tiro. Apressado larga o moribundo e atende ao rapaz que, sem coragem de tirar a própria vida, acertara o teto da cela.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

SEMPRE HÁ SAÍDA

(Foto cedida de arquivo pessoal de Elaine)
Enquanto observa o filho casando aos 37 anos, Elaine rememora a própria vida. Consulta o relógio. Dezenove horas e trinta minutos. Os convidados levantam e a noiva entra na igreja ao som de cornetas e da marcha nupcial.
Elaine recorda a infância pobre no interior do Paraná quando ajudava a mãe, sendo babá dos irmãos desde os sete. Brincava de bonecas com os bebes recém-nascidos gerados um a cada ano. Mais velha entre nove irmãos, ficou órfã cedo. Aos dezesseis presenciou a mãe morrer no parto da caçula e o pai, sem condições de sustentar a recém-nascida, a deu ao médico. Quando a máquina da existência parecia azeitada para funcionar, o pai casa novamente e inicia a segunda família e seguem as mudanças radicais. Com a casa cheia de crianças, a madrasta passa a maltratar a prole do pai. Os conhecidos da família, enternecidos pela sorte das crianças, se oferecem para criá-los e cada um é entregue a uma família. Por fim Elaine e os dois menores saem também da casa e vão morar com a avó materna. O pai teve quatro filhos com a madrasta e, ao vir o último, não havia nenhum da primeira mulher a morar na casa.
A noiva segue a passarela no corredor central da Igreja Matriz do Paranoá enquanto os pensamentos de Elaine fervilham com as lembranças do longo caminho trilhado até este momento de alegria. Agora, casa o filho mais novo, e os pensamentos estão em Sérgio, o mais velho a dormir em casa sob efeito de pesada medicação.
Aos vinte e um, a gaúcha natural de Soledade no Rio Grande do Sul, conhece o homem que viria a ser o pai de Sérgio, o primeiro filho. Nesta época, Elaine idealizava a família, mal sabia que estava para começar a saga. Aquele que carregava na barriga, gerado com amor e a quem cantava canções de ninar, sofreria os primeiros maus tratos. Diariamente o pai chegava a casa embriagado. Certo dia, sob efeito da bebida, sacou da arma e descarregou-a na mulher no oitavo mês de gravidez tentando acertá-la. Errou os tiros, mas acertou o emocional. Insatisfeito, desferiu vários socos em seu rosto. Os maus tratos, sem cuidados médicos, acredita Elaine, ocasionaram a doença do filho. Ao nascer, a criança foi diagnosticada com falta de oxigenação cerebral. Sofreu desvio neurológico grave. Elaine inicia a peregrinação por médicos e hospitais na tentativa de amenizar os sintomas. A enfermidade estava longe de ser solucionada e Elaine, abandonada pelo marido, segue a busca por tratamento, sem abandonar a luta da sobrevivência, agora só com Sérgio.
Gláucio, o caçula, aguarda a noiva que entra devagar no templo, Visivelmente nervosa, faz longas e profundas aspirações e expirações. Elaine percebe o estado da nora e, ao trocarem olhares, procura passar sorriso doce e confiante. A noiva entende o recado, suspira profundamente e acalma. Segue rumo ao noivo que a espera radiante. Os dois se beijam, dão-se os braços e se viram ao altar. Ao sinal do padre todos sentam e inicia a cerimônia. O casamento é um grande momento para a gaúcha. É filho do mesmo homem que a maltratou.
Admite amar muito o segundo filho, sempre compreensivo e carinhoso com Sérgio. Lembra-se das circunstâncias do nascimento. Abandonada pelo marido, ainda grávida de Sérgio, após alguns anos ele implora para voltar. Ela tem medo, mas a pressão familiar é grande aceita. Logo percebe que nada mudara naquele homem. Continuava alcoólatra, violento e cruel. Fica grávida do segundo e entende que tudo se repetirá. Porém, desta vez o homem age diferente. Reconhece o comportamento violento e as atitudes que causam sofrimento. Sente-se aquém da mulher que o tirou da lama pela segunda vez, arruma as malas e some, desta vez, sem paradeiro. Reaparece anos mais tarde, doente do corpo e da mente. Gláucio recebe o recado que quer vê-lo e, ao atendê-lo, ouve do pai no leito de morte, o comovente pedido de perdão.
O padre faz a homilia do matrimônio. Elaine enxuga a lágrima de felicidade que rola até o queixo. O casamento do caçula é o coroamento não só da vida até então plena de desventuras, mas da força que identifica a mulher.
Como na cena de filme de horror, lembra de como cuidara do filho mais velho, o Sérgio. Na adolescência o rapaz teve surto psicótico e quebrou parte do barraco onde moravam. A contragosto, internou-o em clínica psiquiátrica do governo, onde permaneceu por dois anos. Certo dia ouviu do médico psiquiatra que a medicina nada poderia fazer para ajudar. Experimentara “doses cavalares” de remédios que nenhum efeito fizeram. Elaine retirou-o da clínica e aos poucos desmamou a medicação do filho. Hoje, Sérgio tem 44 anos e para alimentar depende da mãe.
Aprendeu a trabalhar o ressentimento com o ex-marido, que sempre negou ajudar no sustento dos filhos. Para não dar pensão alimentícia, mesmo após decisão judicial, pediu demissão de emprego público. Mágoa, guarda apenas dos vizinhos que para livrar da presença incômoda de Sérgio, fizeram abaixo assinado. Em defesa dela, veio o prefeito da cidade e a diretora da escola. Após isto, a vida se encarregou de ajudar a mulher a desenvolver a superação. Na época morava na área posteriormente inundada pelo lago da Itaipú Binacional. Com a indenização, pegou os filhos e mudou para Brasília. Não guarda rancor do ex-marido. Sabe que a fez sofrer, mas reconhece a participação importante e nobre, os filhos adorados. Acredita que ele presta contas em outra dimensão, diretamente ao Poder Superior e não o julga.
A saída da igreja, mãe e filho abraçam demoradamente. A emoção só é compreendida por quem conhece.  Gláucio admite dever as conquistas à mãe.
Elaine aprendeu a conviver e acalmar Sérgio. E se cuida, física e mentalmente, ensinando a enfrentar provações, “pra tudo há  saída mesmo nos piores momentos.” E se diverte. Frequenta todos os locais de dança em Brasília. “Quem sabe vejo o carioca, dançarino danado de bom.” Afirma sobre o amigo que vez por outra encontra nos bailes da vida. “Adoro dançar até perder as pernas”.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

TRABALHO SEM FÉRIAS

(Raposa-MA)
Ao nascer a primeira filha, o pai maranhense, escolheu  o nome em homenagem ao estado natal. Chamou-a Mariana, a filha do Maranhão. Cedo a criança conheceu a fome. Mais velha de oito irmãos, dois morreram por desnutrição. Após a perda, o pai desesperado com a situação, arrumou trabalho no caís do porto de Belém e, por conta do transporte de cargas pesadas, adquiriu hérnia inguinal. Retornou a São Luís e, prostrado na cama morreu com as dores da fome e da doença a queimar o estômago. Mariana com dez anos perdeu a infância e inocência para o vizinho compadre.
A partir do dia seguinte ao enterro do pai, Mariana passa a ajudar a mãe no sustento da família. Ainda madrugada, enquanto as amigas dormem, acorda e toma o ônibus rumo à Vila Raposa. Lá arrecada peixe e entrega na capital.
Aos quinze, grávida, amasiou-se com biscateiro viúvo e assume quatro filhos, somados aos do casal, formaram família de onze pessoas. O marido Chiquinho tinha na aguardente verdadeira paixão. Jamais a espancou, mas para criar coragem, bebia muitas, até chegar a casa. Então, jogava a mulher na cama e possuía no único prazer por ele conhecido. Os filhos nasciam sem controle até que no quinto, o doutor ligou as trompas. Cedo ficou viúva e a partir daí, ajudada pela mãe sustentou filhos e enteados.
É uma vida sem descanso. Levanta às quatro da manhã. Labuta na rotina de chegar a Raposa, ajudar os pescadores e arrumar os barcos. Trabalho duro que  rende algum peixe em pagamento. Permanece na feira, conversando com um e outro até às 12h a espera dos barcos carregados de pescadas amarela, pescadinhas e peixes-espada, quando novamente ajuda no esforço de descarregar. E ganha mais peixes.  Quando a quantidade é boa, abastece os clientes com preço convidativo. Caso contrário, complementa comprando o restante que é quando o preço fica salgado.
Hoje com quarenta, Mariana estampa rosto sofrido que emoldura aparência de sessenta. A vida difícil golpeia incansavelmente. Após estender camada de gelo nos isopores, corre a tomar o ônibus de volta. Há pouco tempo para entregar e conta com o auxílio do filho mais velho, o Zé, a espera-la no ponto. Pegam os isopores e seguem ladeira abaixo para abastecer o primeiro cliente. Um restaurante à beira-mar, cujo dono reclama do atraso. Mariana recebe o pagamento e segue para o próximo. Ansiosa e cansada, levanta os olhos aos céus e entra em prece para chegar logo em casa e poder descansar. São meia noite e trinta. Remexe nas panelas, prepara angu com farinha, come e deita. Reza antes de dormir. Agradece o dia, a saúde dos filhos, a dela, o alimento. Há trinta anos a mesma rotina. Dorme antes de orar pelo marido. Morto maltratado por dores, cachaça, fome e desavenças. Mariana enxuga a lágrima e cai em sono pesado. Sonha com a pescada amarela abrindo a boca para a engolir.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

HORA DE MUDANÇA

(Praia de São Marcos - São Luís - MA)
Displicente, Francisca aproveita o lindo por do sol, o azul do mar, a temperatura da água e o ambiente de final de tarde na praia de São Marcos em São Luís do Maranhão. De cabeça baixa, arrasta vagarosamente o pé, marcando a areia em formato de leque. A onda audaciosa lambe os pés brancos da mulher e a corrente de ouro em seu tornozelo direito.  Foi casada por vinte anos e está separada há dez. Severino, o ex-marido, conheceu moça mais jovem e foi embora para Recife. Hoje tem um filho com ela. Francisca mora só e credita a separação à impossibilidade de engravidar. Mas os laços com o antigo companheiro continuam. Trocam confidências semanalmente em telefonemas de uma hora. Admite manter amor por ele.
Após a aposentadoria, pratica caminhadas diariamente desfrutando da facilidade do mar quase em seu quintal. Os pensamentos, assim como o mar,  agitam o coração que dispara. Contemplativa, nem percebe a aproximação do casal. Abaixa para pegar a correntinha de ouro que desprendeu da perna antes que o mar a tome, mas tem dificuldade. Ao perceber a cena, o homem se aproxima e agilmente pega o enfeite e devolve a mulher. De meia idade, acompanhado de bela jovem, o homem exibe um sorriso cativante. Francisca agradece e também sorri. Fala que é joia de família. O desconhecido se oferece para colocar a correntinha. Sem jeito, Francisca alega que a moça o espera. Ele esclarece que é filha e faz sinal para ela seguir a caminhada. Riem e se apresentam com aperto de mão.
O homem da praia abaixa-se sobre os calcanhares e suavemente recoloca o adorno no tornozelo, roçando as mãos no pé de Francisca, que ruboriza ao  toque. Ao levantar, ficam a poucos centímetros um do outro.
O anoitecer se aproxima e o sol banha a praia de dourado. Seguem a passos lentos como se quisessem entrar no espetáculo da natureza. Vez por outra a onda forte os obriga a sair e roçam as pernas levemente. Gostam do contato. O desconhecido ficará dez dias em São Luís. Os dois entendem que o momento merece ser aproveitado. Comentam sobre desencantos, amores e desamores. A maranhense cita lugares interessantes da capital. Programam passeios. Na despedida, combinam dançar forró à noite. Assim foi toda semana. Durante o dia, frequentavam praias e faziam  pequenas viagens por cidades vizinhas. Nas noites quentes da capital maranhense, dançam animados. Na noite que foram ao apartamento da maranhense, beberam vinho e conversaram até o amanhecer.
O décimo dia chega rápido e Francisca entende a hora da despedida do amigo da praia. No mesmo dia, pela manhã, recebe ligação de Severino. Comprou passagem para o dia seguinte a São Luis e adianta o assunto principal da ida. Quer reatar o casamento. Enquanto falam, o celular acusa nova ligação. Atende. É o homem da praia. Eufórico, explica que a filha retorna dia seguinte. Ficará mais dez dias. Quer vê-la, tem planos para os dois.