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sábado, 7 de junho de 2014

TELEFONEMA DESCONCERTANTE

(Google Imagens)
Trafegava pela avenida de clubes norte rumo ao Hospital Santa Helena quando o celular tocou. Como não atendi, desligaram. Combinara dar carona a um amigo em visita à esposa internada, vítima de acidente. Em frente ao Extra, final da Asa Norte, o telefone toca novamente e reconheço o nome no display. Era R, amigo de Porto Alegre. Desta vez atendo, mando aguardar e coloco o carro no estacionamento coberto do mercado.
R é amigo de infância, filho de ex-banqueiro. Tínhamos na faixa de seis anos quando me mudei para a rua onde R morava. Sua casa, bela mansão com opulento muro, contrastava com a minha, de madeira e cercada de arame com cerca viva disforme, podada por minha avó. Como na infância as diferenças passam despercebidas, R e eu fizemos amizade que durou até o final da adolescência.
Como todas as crianças, tínhamos rotina simples. Diariamente saíamos da escola e, após almoçar, chamávamos os meninos da rua para iniciarmos as brincadeiras. R sempre tinha os melhores brinquedos, e  isso o fazia invejado. Apesar da casa de R ser a mais espaçosa, era na minha as reuniões, pois no porão montamos um clube onde guardávamos os objetos do patrimônio. Eram chaveiros, flâmulas e coleções diversas como a das caixas de fósforo, com exemplares de todo o mundo.
Mas a casa era alugada e um dia o locador pediu a desocupação. Isso provocou meu afastamento da garotada e a distância da nova residência esfriou a amizade. Mais tarde, entendi que o distanciamento também foi provocado pela chegada da maturidade, quando as diferenças sociais ficaram enormes. R era cercado das facilidades do dinheiro e eu, distante das benesses, entendi o estudo como única esperança. Passei no vestibular, entrei para o Exército, comecei a trabalhar e assim cada qual seguiu seu caminho.
Quarenta anos se passaram e soube que R morava em Campinas, São Paulo e que passava por tristes provações. Por intermédio de seu filho, consegui o telefone e liguei. Percebi uma voz cansada pelo sofrimento. Do bom humor da juventude, apenas a risada nervosa a relatar as provações. Queixou-se da vida, das pessoas, dos acontecimentos. Tirei alguns dias no trabalho, viajei para Campinas e constatei a penúria da situação. Fora despejado do estacionamento onde morava e de onde tirava o sustento, lavando e cuidando de carros na faculdade Anhanguera. Solitário, o próximo passo seria as ruas da cidade.
Anos antes, em Porto Alegre, encontrara a mãe dele, que relatou a difícil situação financeira da família. Negócios errados e pessoas de má índole provocaram dívidas impagáveis. A mulher temia pelo filho morar distante. Na ocasião, praticamente solicitara minha interferência para o retorno do filho à terra natal. Lembrar aquele pedido de mãe me tocou o coração, principalmente ao saber que falecera.
Fiz contato com familiares de R que se prontificaram a lhe estender a mão e assim, ele retornou a Porto Alegre. Mas as coisas estavam longe de serem resolvidas. Os parentes tentaram ajudá-lo, porém R, acostumado a receber tudo em mãos, carecia de iniciativa e novamente despencou na miséria.. Por colocar a vida nas mãos dos outros, esqueceu-se de fazer sua parte e novamente se viu abandonado. Acreditava erroneamente que todos tinham obrigação de unir esforços para mantê-lo. Voltou a comer e a residir de favor, vivendo de pequenos bicos, cada vez mais distanciado dos que o auxiliavam. Permanecia o orgulho infundado afastando-o de todos. R, que nos últimos anos sofrera tanto, ainda não percebera os sinais que a vida lhe dera para melhorar a situação. Deveria empreender profunda mudança de dentro para fora.
Tudo passou pela minha cabeça em segundos ao atender o telefone e pressenti que algo grave se avizinhava. Confessou que bebera o dia inteiro. Articulava palavras desconexas e continuava a queixar-se. Durante a conversa, utilizei todos os argumentos exercitados durante trabalho voluntário em central de apoio a pessoas em situação de risco. Encerrou o telefonema de cinquenta minutos dizendo manter ao lado uma arma engatilhada para acabar com a trajetória de vida. Cego pela desesperança, esquecia os anos de vida de opulência financeira e prazeres. Após o telefonema, liguei para o filho dele e relatei a conversa.
Durante os dias seguintes, tentei em vão ligar para R. Dez dias depois, recebo outro telefonema dele. A voz continuava cansada, mas percebi sobriedade. “Como pode ver, estou vivo!”, grita em gargalhada. Após alguns momentos, fica sério. “Tenho pensado muito no que falou. Realmente até os cinquenta anos vivi na opulência, não me faltava nada. Tive tudo.” Fez pequena pausa e continuou. “Minha mãe morreu em 1999 e a partir daí segui sozinho entre Londrina e Campinas, só gastando, como se meu dinheiro nunca fosse acabar. Você tem razão, desesperar é inadmissível, até porque há quinze anos sobrevivo com quase nada. Entendo merecer tudo isto, pois na opulência deixei de prestar ajuda, apenas ostentei o que nem meu era. Segui cercado de gente errada e desprezei aqueles que queriam me ajudar. Se hoje estou nesta penúria, o único culpado sou eu. Concluí que suicidar não é solução”.
Mais alguns minutos, R se despede e desliga o telefone. Percebi claramente uma grande mudança. Ao entender as escolhas erradas, reconhece que a chance de seguir avante com nova trajetória só depende dele mesmo. Subsistir dignamente desde 1999 sem recursos e enfrentando as tribulações é prova de valor pessoal no cumprimento da missão de vida. No mundo em que vivemos,  sobreviver com cinquenta milhões é fácil. Porém é para poucos viver sem nada, principalmente quando se teve tudo em grande quantidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A SURPRESA

(Google-Imagens)
Esta é uma das tantas histórias entre passageiros. Voo de Porto Alegre a Brasília e a mulher, aparentando cinquenta anos, lê a Bíblia enquanto a aeronave taxia na pista do aeroporto Salgado Filho. Em Brasília, tomará conexão rumo ao Nordeste. O avião decola e rapidamente alcança as nuvens e a leitura é interrompida por intensa turbulência. A mulher fecha o livro sagrado e o guarda no compartimento do banco à frente. Torce as mãos e, na tentativa de conter a ansiedade, puxa conversa com o passageiro ao lado.
— Adoro viajar, mas a turbulência me inquieta.
— Ainda é o meio mais seguro. — fala o passageiro, convincente.
Sorriem e trocam experiências de viagens. Tensa, mas agora confiante, a mulher fala muito. Apresentam-se. Ela é turismóloga ele é escritor.
— Escrevo narrativas, coloco no papel histórias que ouço, mas só as melhores — acham graça.
— Se contar a minha, o senhor publica sem identificar?
— Sim, claro. Para ser conhecida, uma história, deve ser divulgada. Omitida, desaparece — Comenta o homem pronto para ouvir.
A mulher fecha os olhos para concatenar as ideias e inicia a narrativa. As mãos juntas.
— Fui casada por quinze anos com um argentino. Homem de temperamento forte, mas alto, bonito e galanteador. Fazia frequentes viagens de Córdoba, na Argentina, ao Rio Grande do Sul para visitar amigos em Caxias. Quando nos conhecemos, eu era jovem, recém-entrada na idade adulta, inexperiente, apesar de um filho de relação anterior. Apresentados por amigos comuns, desde o início houve empatia, mesmo com a grande diferença de idade, o que nunca levei em conta. Com nove anos de namoro, casamos e fomos para a terra dele, onde exercia importante cargo público. Para ocupar o tempo cursei Belas Artes na Universidade local. — aquieta por instantes, procurando dados na memória.
— Falar com estranho, pode ser melhor que com amigo — instiga o escritor que logo silencia. Sabe a importância de ser ouvido.
— Vivíamos em festas de representação, jantares sociais na alta sociedade, onde ele era influente. Nossa vida era intensa. Mesmo assim, queríamos ter filhos e, como não engravidava, após cinco anos, resolvi fazer tratamento. Não compreendia a dificuldade para engravidar, pois já tinha um filho. Foram muitas tentativas de inseminação e, finalmente, desistimos. Para compensar, meu filho morava conosco e se dava muito bem com o padrasto. Costumavam sair para pescarias e a boa convivência entre eles era meu orgulho e tranquilidade. Isso compensava o tratamento machista que recebia no dia a dia. Sim, meu marido tinha temperamento ríspido, típico do homem portenho.
Vez por outra, o companheiro de viagem massageia o pescoço que dói forçado a olhar para a mulher da poltrona ao lado. O aviso de apertar cintos apaga e as comissárias iniciam o serviço de bordo.
— A posição firme do machista na vida social escondia um homem simples e emotivo, alterado de uma hora para outra quando confrontado com situações de estresse. Procurava entender a criação rígida recebida do pai autoritário e relevava as grosserias, que longe de mudar, só pioravam. Passou a viajar e ausentar-se de casa por longos períodos. Ao longo da convivência, a relação tornava-se burocrática. A vida conjugal cedeu lugar à frieza e praticamente desistimos do contato físico.
 — Quer cappuccino? — pergunta o escritor. A mulher aceita e ele pede dois à comissária. Ao receber os copos, passa um para a mulher, que segue o relato.
— Para preencher o tempo, resolvi aperfeiçoar-me em pintura. Contratei um  conhecido artista plástico, para ministrar aulas semanais em casa, o que se mostrou um hobby ideal. Com dois meses, o artista perguntou-me sobre meu marido o qual nunca havia visto e nem sabia o nome. Conduzi-o até a biblioteca e apontei o enorme pôster do casal, alguns anos mais jovens, presente dele, nas comemorações de dez anos de casados. O artista empalideceu. Perguntei o que acontecera. Pensativo, pediu licença e voltamos ao ateliê. Serviu-se de um copo d’agua. Sem dúvida, o transtorno do mestre aconteceu ao ver a foto. Ao término do horário, despediu-se e saiu. À noite, já de Buenos Aires, o artista liga e informa o cancelamento do contrato de ensino. Fala vagamente sobre compromissos impeditivos.
— As pessoas são agentes das ações do destino — fala o escritor recolhendo os copos vazios dos cappuccinos e colocando-os na mesa da poltrona do corredor.
— Percebi a mudança no artista, sentei na sala de estar e adormeci. Era noite quando meu marido chegou e, como hábito, cobra a janta. Passo o cartão de meu professor e pergunto de onde conhece o mestre da pintura de Buenos Aires. Pense num homem desconcertado. Após explicações inteligíveis, convidou-me para jantar fora. Nos aprontamos rapidamente em silêncio. Rodamos por uma hora, até o pequeno restaurante La Coruña, na estrada para Buenos Aires. Um lugar deserto, de comida cara, mas excelente, bem frequentado pela alta sociedade.
— Permanecemos em silêncio por longo tempo, rompido por ele. Começou a falar sobre a sexualidade reprimida, o assédio na infância pelo padrasto e, para meu espanto, do caso com o mestre Juan Carlos, convívio que arrastou por anos, mesmo após nosso casamento. Meu marido chorou muito, pediu perdão e implorou para permanecermos juntos. Falei sobre a dificuldade em aceitar a vida dele. Afinal, tinha vida dupla entre nossa cama e de outros “amigos”. Argumentou que juntos, eu poderia levar a vida que quisesse. Levantei, nos despedimos e tomei um táxi até um hotel. Nosso divórcio saiu em tempo recorde na Argentina. A homologação no Brasil se arrasta há anos. Somos grandes amigos agora, mas convivência marital é impossível.
O comandante acende avisos de apertar cintos. Descreve o tempo na capital, instrui passageiros em conexão e o avião aderna emparelhando com a pista de pouso.
Foram duas horas e quinze de voo que pareceram dez minutos. A mulher abre a Bíblia e pede licença para ler o Salmo de ajuda ao piloto para aterrissagem tranquila.
No saguão se despedem. Ela segue para a conexão. O escritor pega a bagagem e procura o ponto de táxi.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

DESESPERAR JAMAIS

(Google Imagens)
Romero estaciona a Kombi 1962, desce lentamente apoiado na direção e inicia o trabalho de preencher o engradado vermelho com mercadorias. Falta a agilidade de quando enchia dois engradados e os levava um em cima do outro para dentro da residência. Organiza os mantimentos, pacientemente. Primeiro os tomates, depois abacates, abacaxis, limões, laranjas. “Por cima folhas de alfaces, repolhos, couves-flores,  e rúculas, senão amassa”. Levanta a caixa na altura do peito e a leva à despensa. “As verduras foram escolhidas a dedo”, fala bem humorado ao dono da casa.
Há 35 anos fornece verduras frescas semanalmente. Em uma casa do Lago Sul, almoça toda terça a convite do proprietário. Durante a refeição, senta-se à mesa onde é tratado como membro da família. Serve feijão diretamente da panela de onde extrai paio, carne e linguiça.
Tem ar cansado, o Romero. No rosto, marcas da vida de sacrifícios. “Já fiz de tudo para sobreviver, desde caseiro a carregador de bagagens.”. O trabalho pesado custou hérnia e varizes doloridas, operadas por perigo de trombose. A aposentadoria é pequena. Diariamente, amanhece na Central de Abastecimento (CEASA) onde escolhe verduras e frutas frescas e distribui a compradores fiéis. Na casa onde almoça, dedica especial atenção ao fornecimento dos produtos. “Este casal é muito bom para mim. Aprendi muito com a família. Considero-os segundos pais”. Refere-se ao casal de 85 anos, donos da casa. Fala sobre as dificuldades, sentado à cabeceira oposta ao dono da casa.
“Perdi a mãe aos quatro anos de idade e poucos meses depois, perdi meu pai”. A partir daí, tudo fica difícil para o vendedor. A vizinha se encarrega de cuidar do menino, mas o submete a mãos impiedosas. A qualquer contrariedade, o castiga severamente. Certa vez, na insanidade dos maus-tratos, a mulher arranca-lhe metade de uma das orelhas. “Neste dia, jurei que na primeira oportunidade fugiria daquela tortura”. Acreditava haver um mundo melhor do que o que o acolheu. Aos cinco anos, arquiteta a primeira tentativa de fuga. Tenta uma, duas, três vezes, mas sempre é trazido de volta. A cada vez que retorna, os castigos pioram. No entanto, a cada fuga, adquire experiência e em certo dia de tempestade violenta, em meio aos trovões, foge correndo, alcança a estrada de terra e envereda pelo mundo desconhecido. Temendo ser reencontrado, caminha por três dias em direção incerta.
Dorme pelas ruas, debaixo de bancos e, de favor, em fazendas. Desesperado, à procura de lugar onde se fixar, Romero é abordado por um homem que o leva para casa e apresenta-o a mulher. “Olha quem encontrei na rua, está sem dono”, brinca. A mulher serve um prato de comida ao menino franzino e triste. “Pode ficar conosco. Não temos filhos. Dê ao jovem ocupação, boas roupas, salário e coloque-o na responsabilidade pelas vacas”.
Romero cresce aos cuidados do casal que, bons e hospitaleiros, o tratam como filho. Amadurece em lugar acolhedor e amoroso. Mas a vida prepara mais testes. Certo dia, o dono da fazenda amanhece adoentado e, após exames, é constatada doença terminal. A enfermidade é rápida e em poucos meses o homem falece. A mulher, idosa, assediada por parentes distantes é convencida a vender os bens. Chama Romero e fala que é chegada a hora de seguir caminho. Como ajuda, o indeniza com uma velha bicicleta, a qual será útil para trabalhar. O rapaz enfrenta o mundo novamente. Melhor preparado, mas de novo abandonado pelas pessoas que ama, convida a namorada para acompanhá-lo, fazendo uma irrecusável proposta de casamento. Com família para sustentar, monta o primeiro negócio próprio e, de bicicleta, passa a distribuir leite pelas vilas da vizinhança.
Um dia, em 1957, Romero ouve falar de Brasília: “canteiro de obras no meio do cerrado”. Consulta o mapa de um caminhoneiro, coloca as tralhas na bicicleta, a mulher na garupa e parte para o novo empreendimento.
No Distrito Federal, cresce financeiramente. Em pouco tempo, compra uma Kombi, arrenda uma chácara e passa a plantar para venda. E é com a distribuição de legumes e verduras que forma filhos independentes.
“Por que planos para o futuro? Vivo o presente, sigo as determinações de Deus, que só podem ser boas. Saúde é dádiva que agradeço todos os dias”. Hoje, Romero tem 75 anos e ensina que problemas existem para serem administrados e que dias melhores sempre existirão. “O dia bom, mais cedo ou mais tarde chega. Isso ninguém tira. Como me considero? No lucro”.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

EM PUNTA

(Arquivo pessoal-Malu)
Em beleza, as praias de Punta del Este deixam a desejar. Prefiro nem comparar com as do Rio ou Santa Catarina. Em compensação, possuem dois fatores que agradam à primeira observação: a limpeza e a segurança das ruas. Hospedado em hotel sem garagem, permaneço despreocupado, pois a qualquer hora que saio, observo o ir e vir de turistas.
No almoço, saboreio a merluza apetitosa e fico por duas horas em frente ao mar, enquanto ocorre a digestão. Cansado, após a viagem de 190 km entre Montevideo e Punta, durmo o resto da tarde e ao sair, pressinto o belo pôr do sol que se prepara. Colecionar fotos do pôr do sol é atividade que me atrai. Fiz várias de Portugal. Desde menino, me encanto com o sol se pondo à beira do rio Guaíba, em Porto Alegre. Naquela época, a dificuldade de registro me fez arquivar na memória os raios dourados a boiar na superfície da água.
(Arquivo pessoal-Malu)
A encenação do pôr do sol de Punta é testemunhada por inúmeros turistas sentados nos gramados da orla. Procuro um banco e me distraio a registrar a cena de cinco em cinco minutos. No meio do espetáculo, uma senhora passa mal. Tem ânsia de vômito e, no pé de um coqueiro, elimina o incômodo. Fica algum tempo escondida antes de se lavar no mar. O sol se põe vagaroso, atrasando o anoitecer. Procuro um bar com música ao vivo. O cantor, um uruguaio de uns 40 anos, oferece repertório variado a um público animado. Perto do cantor, uma mulher. É a que enjoou na praia, já refeita. As mazelas ficam para trás, perdidas no entardecer, espalhadas no mar. Ela dança ao som de New York, New York.
Após o lanche, sigo em passeio pela beira-mar. São 22 horas e o calçadão lotado. Graziela e Marta, sentadas em um banco de pedra, assistem ao movimento contínuo de ida e vinda das pessoas. Ambas com 71 anos são empresárias na capital uruguaia. Marta, professora e dona de escola de segundo grau. Graziela, comerciante no ramo de representação de peças para equipamentos de exames médicos. A comerciante é a mais falante e ensina que a vida é cíclica. “O Uruguai é exemplo disso. Após ditadura militar, elege presidente um homem pertencente a grupo guerrilheiro que lutou contra a ditadura militar, o tupamaro. Sabe-se lá o que virá depois”, ri alegre. Perguntada, dá opinião quanto à liberação da marijuana. Afirma que o objetivo do governo é a migração do usuário da pasta básica de cocaína, que danifica o organismo, para a erva cultivada e fiscalizada legalmente. Desacredita que isso resolva o problema. “Pode até piorar”.
Brinca que a degradação geral do organismo humano começa aos cinquenta e segue gradativamente de cinco em cinco anos. Exemplifica imitando a envergadura das costas com o avanço da idade. Pensa em trabalhar enquanto o corpo estiver firme. “Hoje, meu filho manda na empresa, mas me consulta antes de tomar decisões”. Há dez anos a vida de Grazi mudou radicalmente. Para comemorar quarenta anos de casamento, o casal programou viagem pelo interior do país. No caminho de ida, o asfalto molhado provocou a derrapagem e o capotamento foi inevitável. O companheiro falece no local e ela, após anos de fisioterapia, permanece com sequela em uma perna. Apesar da tragédia, Grazzi é mulher alegre. “Ele me quer leve, seguindo a vida sem dores”.
Meia-noite. As senhoras despedem-se e seguem vagarosamente pela orla. Entendem que as mazelas colaboram com o crescimento pessoal e devem ser vividas sem amargura. Caminham sós pela beira-mar da Praia Mansa. Têm tempo e confiança para dialogar com estranhos sobre suas vidas e sobre política.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

GENTE URUGUAIA

(Arquivo Pessoal - Malu)
Em passeio por Montevideo, percebo a senhora solitária de biquíni. São duas da tarde no calçadão da Rambla Presidente Wilson, no elegante bairro de Punta Carretas. À vontade, a turista cadencia passinhos curtos. O sol forte não ajuda e a água do Rio de la Plata permanece fria, inibindo a banhista. Sem celular, bolsa, nada que atrapalhe a caminhada. Nem companhia. Está tranquila, cabeça alta, queixo empinado e discreto remexer de quadris com movimentos suaves.
Ligo o carro e sigo adiante, até o homem com roupa de mergulho. Roupa preta e meias de borracha, pés de pato nas mãos, óculos, máscara de nadador. Imagino que esteja preparado para enfrentar as gélidas águas do Rio de la Plata, frias mesmo em dias quentes. Vez por outra, o homem para e olha a imensidão das águas do rio. O olhar parece perdido ao longo das ondas do que pode ser chamado de Mar de la Plata.
Na verdade também estou desencorajado. Na Rambla República Helenica, molho os pés na praia e desanimo. Observo o mergulhador solitário e a seguir a dama de biquíni preto, que agora nos alcança. Cruzam-se indiferentes. Eu, o único elo. A mulher segue o caminho com passinhos curtos e displicentes, elegante e ingênua. Despercebidos um do outro, são protagonistas da minha história. Um olhar entre eles, mesmo rápido, poderia marcar encontro de intenções comuns. Ambos olham o mar, perdidos em mundos diferentes. O homem, mergulhado em observações marinhas. A mulher, saboreando a brisa fresca, aproveita o sol forte, esquenta o coração e bronzeia o corpo maduro. Ambos esperam o rio esquentar as águas e recebê-los. O sol se põe devagar.
À noite, na Plaza de Cagancha, encontro Nelis. Moradora de rua da capital uruguaia, espera condução que a levará ao abrigo do governo. Fala abertamente da vida, das perdas, dos ganhos, sem arrependimentos, sem dificuldades. Interessado em treinar o espanhol, sento ao lado. Nelis coleciona vários sacos guardados impecavelmente e organizados em um carrinho de supermercado. Roupas e objetos de uso pessoal. Teve dois filhos. O mais novo morreu aos 19 anos, de acidente de moto. Do outro, desconhece o paradeiro. Perderam-se quando ele separou da mulher no Uruguai e mudou para a Argentina. Tentou ir atrás, mas “Buenos Aires é muito grande”, explica chorosa.
Gosta de morar nas ruas de Montevideo e reclama do problema dermatológico que exige cuidados especiais, obrigando-a a visitas médicas frequentes. Avalio que prefere assim, pois ganha atenção durante as consultas. Nas ruas, ninguém manda. Usufrui de assistência médica e remédios doados pelo governo enquanto necessitar. Manifesta-se contrária à liberação da marijuana, mas não julga quem usa. “Nas ruas tudo está tranquilo, mas pode se complicar para quem vive nelas”. Teme acabar a segurança com a liberação.
Chega o ônibus. Ela despede-se com abraço apertado. Quando o ônibus sai, grita preocupada: “não coloca meu nome!”. Obedeci.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

FIM DE SEMANA EM MONTEVIDEO

(Arquivo pessoal - Malu)

Chego a Montevideo ao entardecer de um sábado com a temperatura a quase quarenta graus. À noite, o calor arrefece e passeio pela Avenida 18 de Julho em busca de livrarias. Procuro versões novas de autores consagrados, entre eles Isabel Allende e Garcia Marques. Edições modernas são confeccionadas com papel e capas menos dispendiosas, consequentemente, boas de preço.
No domingo, a temperatura está confortável. Pego o mapa e saio à procura de pontos turísticos importantes, como o imponente teatro Solis. Depois, o Cais do Porto, onde faço as primeiras compras. À tardinha, surpreendo-me com o movimento de pedestres na cidade. Os uruguaios saem às ruas e passeiam pelas praças. O comércio da Avenida 18 de Julho, uma das principais da cidade, é tomado por clientes ávidos. Livros, alimentos, roupas e cassinos são os locais escolhidos. Quem não compra, anda a passos lentos pelas calçadas. Senhoras com bengalas, jovens enamorados e amigos desfilam preguiçosos.
Em direção à Plaza Independencia aproximo da Plaza de Cagancha. Do outro lado da rua, a revistaria cujo letreiro luminoso exibe o assunto do momento: a marijuana, manchete no jornal El Pais. No banco da praça, três moradores de rua desconfiados aguardam a condução ao albergue.
Continuo pela avenida e ouço música e burburinho de vozes. Sigo a passos lentos, mesmo ritmo da noite preguiçosa da capital uruguaia. Observo o comércio, as vitrines, as pessoas. Chego à origem do som, a Plaza Fabiel, onde duas grandes caixas acústicas tocam um tango bem marcado, dançado por uma dezena de elegantes casais de idosos, admiradores do estiloso ritmo. Quem está sem par curte Carlos Gardel, ídolo eterno e disputado entre argentinos e uruguaios, cada qual afirmando que é filho de suas terras. Divertida, a vida na praça segue indiferente à disputa nacionalista.

(Arquivo pessoal-Malu)
Em outro lado da praça, uma banda toca sucessos regionais dos anos 60 e 70. O cantor animado dança acompanhado das palmas da plateia. Chama a atenção o guitarrista que dedilha solos impecáveis. Um uruguaio grisalho, alto, risonho, com grande bigode e elegância discreta. Pares se formam e dançam separados ou juntos, dependendo do ritmo oferecido, enfeitiçados pelo ambiente enluarado.
Minha resistência é pouca quando há espaço para dança. Chamo Malu, a companheira de viagem pela vida. Entramos na pista e só saímos à meia-noite, quando a banda encerra as atividades. Cessa a música, mas o vai e vem pela praça continua e a conversa corre solta. Percebo turistas brasileiros isolados com seus celulares.
Às duas da manhã volto ao hotel. Há tempo não ando despreocupado pelas ruas. Desde os anos 70 em Porto Alegre, quando adolescente, voltava para casa com o sol nascendo. Se no Uruguai é possível transitar livremente, o que acontece com as cidades brasileiras, infestadas de perigo?
Após este, vieram outros dez dias de passeios, diversões pitorescas, conversas com a população e impressões pessoais. Viagens por Punta del Este, Colonia de Sacramento, Piriápolis e Atlântida. Dias despreocupados, pelo país que passa sensação de segurança e tranquilidade.