Conhecer Aveiro foi uma aventura a parte. A cidade tem charme e não é a toa que é conhecida como “A Veneza Portuguesa”. Isto porque, a partir de um centro geométrico, é cortada por canais navegáveis que deságuam no mar.
Um passeio ao estrangeiro inclui a convivência com o povo, conhecer costumes e saborear os pratos de cada lugar. Procuro assim, narrar em detalhes acontecimentos que culminaram com mais esta aventura portuguesa. O projeto era conhecer a cidade, passeando de barco.
Na estação Coimbra-2, onde comprei as passagens para Aveiro, Malu perguntou pelos pontos turísticos a uma moça do guichê. Teve como resposta um nome que nos intrigou: Aveiro é a cidade da RIA.
Abro parêntese para explicações. RIO é a corrente de água que se origina de nascente. RIA é quando não existe nascente, a água é formada pelo braço do mar que adentra a terra. Na definição dos portugueses, a RIA é o resultado do recuo do mar, com a formação de cordões litorais que, a partir do séc. XVI formaram uma laguna. A RIA constitui um dos mais importantes e belos acidentes hidrográficos da costa portuguesa. Fecho o parêntese.
Algo muito interessante acontecia ao descer nas estações das cidades que visitávamos. Tínhamos dificuldade em identificar o lado onde estava a cidade. Imagino pela falta de hábito em andar de trem. Em Aveiro, após identificar o caminho a seguir, descemos pela rua principal rumo a RIA. No caminho, por várias vezes entramos em restaurantes para almoçar, pois o mais forte sentimento era o de fome. No entanto, sabíamos de outras jornadas, que não se come ao primeiro impulso e resolvemos priorizar um restaurante com bom cardápio.
No caminho, diante da demora em divisar a orla, perguntei a um balconista de banca de revista, onde estaria o rio (até então, ignorava que era RIA) recebi a resposta com a lógica portuguesa “vá em frente, mas com cuidado, pois poderá cair dentro dele e afogar”. Tinha razão, a orla onde está o cais apareceu uns vinte passos a nossa frente. Fizemos o reconhecimento do local onde iniciaríamos o passeio de barco e zarpamos atrás de restaurante.
Na praça central da cidade, em frente a um velho casarão do século XV, encontramos o local e, assessorados pelo garçom, pedimos bacalhau a Lagarero acompanhado de vinho tinto alentejano. Almoçamos devagar saboreando a refeição, o vinho e a música espanhola. Após o cafezinho, saímos satisfeitos para a navegação na RIA.
No cais, barcos de turismo não descansam no ir e vir dos canais, abarrotados de turistas. Tomamos assento no da vez, com um grupo de espanhóis idosos e alegres e sentamos bem na frente. Na fila para os passeios, reparei em excursões de várias partes da Europa, predominantemente de espanhóis, italianos e alemães, além dos próprios portugueses que são os que mais movimentam o turismo no país.
No circuito, de mais ou menos duas horas, cruzamos por todos os canais, e conhecemos a cidade navegando, num passeio romântico, narrado pela guia em italiano, espanhol e português. Como era portuguesa, tínhamos a vantagem de entender as informações e as respostas aos questionamentos. A guia narrava tudo e deteve-se nas salinas, um dos principais meios econômicos de Aveiro, apesar da extração ser artesanal. A certa altura do passeio desconcentrei da narrativa da guia que tagarelava em três idiomas e reparei um casal que namorava a beira da RIA, sentados num banco de madeira. Alguns passageiros, como eu, notamos a mão do rapaz a descer displicente para o traseiro da moça. Gritei “cuidado com a mão” e eles olharam rindo. Os passageiros gargalharam. Isto mereceu um comentário de Malu, que é carioca: “a linguagem da gozação é universal mesmo”.
Ao final do passeio, paramos para experimentar ovos moles, um doce delicioso da região. E aí conheci mais um pouco da cortesia portuguesa. Um idoso simples, de simpatia ímpar, se acercou, sentou-se à mesa e puxou assunto. Perguntou de onde éramos. Mas sem ouvir a resposta, falou de si. Disse ser natural de Aveiro, e trabalhara até aposentar, na Áustria. Contou a história de lutas e desconfortos passados fora da terra natal. Ficara solteiro e entendi que voltara a seu país, aposentado, para descansar junto aos parentes após a luta pela vida com glórias e fracassos. As marcas da batalha avivaram o olhar, mas marcaram seu rosto e os cantos de sua boca incapacitando-o de sorrir. Ao final, quis pagar a conta, o que julguei desconfortável aceitar. Quando me flagrou tentando pagar diretamente no caixa se ofendeu e recuei, agradecendo e aceitando a oferta. Realmente fiquei espantado, principalmente por ser desconhecido. Malu e eu refletimos que o fato ocorrera de forma casual. Talvez por tratar-se de pessoa simples que recebeu atenção de turistas. Explicação plausível até certo ponto, afinal o povo europeu anda com recursos financeiros escassos. Melhor acreditar que nos julgou merecedores.
Fomos para a estação ainda sob o impacto do acontecimento.
O retorno foi a jato. Tomamos um trem-bala e, na velocidade de duzentos e cinquenta quilômetros por hora dormi até Coimbra. Chegamos a tempo de pegar a sopa na padaria ao lado do hotel e assistir a mais um jogo do Benfica.
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