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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

DESCOBRINDO PORTUGAL – SEGUNDA PARTE





(Arquivo pessoal)


Todo dia o amanhecer em Portugal me obrigava a exercitar a consciência e localizar onde estava. A arquitetura de Coimbra, cidade onde dormíamos, guarda semelhanças com Salvador e Rio de Janeiro, conferindo que os portugueses aplicaram nas duas cidades brasileiras, ambas ex-capitais, a arquitetura que conheciam. Quem sabe para aplacar a nostalgia da terra natal. Se hoje, com potente meio de transporte, nos sentimos distantes, imagino em meados dos séculos XVI, XVII.
O passeio a Fátima aconteceu em um misto de curiosidade e obrigação. Amigos que souberam da programação de viagem, falavam com entusiasmo sobre o santuário fazendo comentários tipo “ir a Portugal e não visitar o Santuário de Fátima é morrer na praia”. Ora, pois, pois, então iremos. E mereceu um capítulo a parte pela magia e grandiosidade do local. Nem necessitou um dia inteiro e as impressões são relevantes de narrar.
Antes de tomar o ônibus para Fátima, Malu e eu almoçamos em Coimbra privilegiando frutos do mar. Pescada amarela, com salada e batata cozida, acompanhado de vinho do Porto, que nos deixou com uma ponta de preguiça. Observei que nas refeições não é costume servir arroz com a comida. Como não sou adepto do alimento, não senti falta. Após o almoço, seguimos para a rodoviária, onde esperava o que mais chamou atenção em solo português quando o assunto é transporte: ônibus confortável que contribuiu para a soneca depois do almoço. Dormir bem neste percurso de pouco mais de uma hora, garantiu que chegássemos novos em folha e, como a rodoviária é perto do santuário, nos deslocamos a pé, fazendo fotos da vegetação, semelhante à brasileira do sul.
Íamos distraídos quando, por detrás de árvores centenárias, surge o colossal prédio do complexo. Era o templo principal que nos impressiona pela grandeza. Os portugueses capricharam, com razão, a visita ao Santuário é responsável por dez por cento de todo turismo que acontece no país. Em 2005, chegaram a mais de 4 milhões de peregrinos. O templo da Santíssima Trindade, construção mais recente do complexo de templos tem capacidade para nove mil pessoas sentadas.
À frente da porta de duas toneladas, a grandiosidade do pátio central remete a miniatura de nosso significado como seres humanos. O número de pessoas que visitavam o complexo conosco, era significante, mas não preenchia o espaço a disposição. Mesmo neste enorme pátio, o silêncio era quebrado apenas pelos sussurros de orações na missa que acontecia na Capela das Aparições. Os peregrinos, gente de todas as classes sociais e de todos os países do mundo, estavam ali por diversos motivos. A maioria por motivações religiosas. Mas mesmo os que lá comparecem por outras finalidades, acabam se envolvendo em alguma atividade do ritual litúrgico, como assistir missa, sussurrar orações, andar ajoelhado penitência na passarela dos sacrifícios, colocar velas no castiçal ou depositar moeda de 50 centavos de euro na fenda do balcão de uma vitrine para acender uma vela elétrica, entre as centenas que ali estão instaladas.

Um prédio ao fundo, atrás da bastilha, abriga uma bateria de banheiros, bem cuidado e com papéis a disposição. Saliento por não estar acostumado com estes confortos no Brasil.
Em determinado momento, ao passarmos embaixo de um pinheiro, uma pinha desprendeu-se do galho e caiu com estrondo. Nunca vira uma daquele tamanho. Ficamos inertes por alguns instantes, admirando-a, mas logo Malu deu a idéia “vamos levar para o Brasil”. Apanhei-a do chão e se tornou nosso souvenir de Fátima. Não somos adeptos a comprar lembranças de pontos turísticos a preços exorbitantes.
Após cumprir a tradição de acender uma vela num tanque, começamos a nos afastar vagarosamente do templo, pois anoitecia e lá cerra suas portas as sete horas. Acompanhamos com o olhar alguém que, ajoelhado, fazia penitência dolorida arrastando com dificuldade os joelhos na pista dos sacrifícios. Ficamos longo tempo em silêncio, caminhando de mãos dadas, perdidos em reflexões sobre a fé humana e, seu significado, manifestações, símbolos e crenças.
Lanchamos perto do santuário, um doce chamado Feijão, feito com ovos moles. O passeio não ultrapassou três horas e logo estávamos retornando a rodoviária.
As oito da noite tomamos o ônibus e voltamos para Coimbra. Fátima foi ficando para trás com todo seu esplendor e significado litúrgico. Colossal monumento erguido ao povo crédulo que procura significado para a morte e sentido para a vida.
Antes de dormir entramos num pequeno restaurante, aconchegante, intimista, decorado com quadros do século XVIII. O dono, um senhor de meia idade, atendia pessoalmente seus clientes, que, pelo porte do local, não poderiam passar de vinte por vez. A apresentação do cardápio decorado com bom gosto. Atrás do balcão uma senhora que parecia sua mulher, esmerava orientando dois cozinheiros. Quase imperceptível, uma música francesa pairava docemente transformando o ambiente em algo preguiçoso. Pedi duas porções de caldo com grão de bico e legumes e, enquanto esperava, conversávamos sobre os acontecimentos do dia e seu significado. Na mesa ao lado uma moça de uns vinte e poucos anos, lia um livro com título francês. Tentei ler o autor, mas não consegui. As demais mesas estavam todas ocupadas. As conversas eram reservadas e contidas, e havia um limite de som aceitável entre os clientes. Passados trinta minutos, um jovem aparentando mais de trinta anos, entrou e se aproximou da moça do livro. Ela levantou para recebê-lo. Cumprimentaram-se com carinho e sentaram um de frente ao outro. Tentaram falar em português. Não deu certo. Em alemão não conseguiram ir muito longe. Acertaram o diálogo em francês. O sussurro dos dois, o vinho branco que pediram, o prato a base de lula, tornou a atmosfera romântica naquele canto do restaurante. Fomos contagiados e nos recolhemos cedo ao hotel. A noite fria em Portugal pode ser bem aconchegante.

2 comentários:

  1. Olá Merco.
    No boteco trocamos cartões e comecei então a entrar neste mundão que tu bens descreves. Por enquanto estou em Portugal, tentando enxergar através dos teus olhos aquele canto da Europa onde homens tiveram e esperteza de nos descobrir e a burrice de nos deixar.
    Como te disse no boteco, sempre procuro perceber a inteiração entre o que vemos e o que compreendemos, os físicos modernos provaram que a simples observação modifica o fenômeno. Então, transitar novamente em Portugal contigo e a Malu é fazer engenharia reversa. Acredito que tudo o que tu armazenaste nas emoções geradas por aquele lugar, menos o todo que está dentro de mim ao ler teu conto, é algo muito maior que a soma de nós dois. Que paradoxo, como pode o resultado de uma subtração ser maior que a soma das parcelas?
    Fácil seria dizer que a conta está errada, mas se estivesse errada com o passar dos tempos teríamos ficado todos iguais e não ficamos. Sendo assim, vou continuar lendo teu blog onde eu posso transitar pelas infinitas possibilidades dos sentidos.
    Não deve ter sido um desafio muito maior multiplicar os pães naquele banquete antigo, bastava saber que o tudo é menor que o nada e que existe uma passagem que liga os dois, assim como muito maior deve ser a diversidade de olhar a mesma coisa.
    Imagina transformar o muito antigo numa sensação nova não é melhor que participar de um banquete antigo?
    Um abraço, diz para a Malú não dar mole para ti, é bom te ler, tu transformas o fenômeno. Não vou deixar de ler os outros contos, não sou português.

    Gilvan

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  2. Obrigado amigo. Também tenho lido teus textos, e admiro a criatividade que te acompanha. Tirando a matemática de lado, conhecer outros mundos é enriquecedor. Remete aos ntepassados que arriscaram suas vidas atravessando os oceanos para fincar seus gostos e modus-vivendi no Brasil. Heróis que graças a eles agora fazemos a nossa parte. Grande abraço.

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