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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A SERVA DO HOMEM

O mundo anda complexo e as pessoas, centradas em si mesmas, clamam ajuda para entender a vida. As religiões representam uma resposta às ansiedades da alma e tentam aplacar as inquietações. Na cultura oriental há definições filosóficas surpreendentes. A verdade ninguém tem, como dizia meu avô, quem foi não voltou para dizer como é.

Entender a relação do corpo com a alma é complexo. Sobre a destinação do corpo físico, o entendimento é que após a morte, ele desaparece num processo lento de decomposição. No entanto, a alma continua um mistério, mesmo sendo perene para a maioria das religiões.

A mídia cultua o prazer do corpo, apresentando símbolos que trariam felicidade, como carrões, jóias, roupas de marca e diversão com hora marcada. Alguns destes, inalcançáveis para a maioria.

Outro dia reuni amigos em casa e alguém afirmou que ao fazer algo ruim, presta-se contas e paga-se aqui mesmo. Sobre o tema desapego houve unanimidade, a maioria confessou não abrir mão de nada. Falei-lhes que Isaura seria exceção a regra.

Isaura Lívia Lopes é uma mulher de 76 anos. Chegou à capital federal em 1992, no final do conturbado mandato do presidente Collor e fixou-se na casa de parentes em Valparaizo. Vinha da jornada de inúmeras viagens pelo Brasil onde conhece estados de norte a sul. Viajando de avião ou ônibus, conheceu todas as capitais do Brasil, faltando apenas os territórios. Hoje mora no aeroporto JK há pelo menos 5 dos dezesseis anos que por lá transita.

Não casou e considera dádiva de Deus não ter filhos. Assim pode pregar a religião e morar onde preferir, sem interferências. O supervisor de segurança do aeroporto, Luis Gonzaga, afirmou que Isaura é protegida. Mora no coração de todos e é a palavra dela que acalma os ânimos dos passageiros quando há atrasos nos vôos.

Como ela evoca a palavra de Deus, Gonzaga admitiu ser este o fato de ser intocada. Quem de sã consciência mexeria em alguém amparada por tal força?

Aposentada do INSS, Isaura ganha um salário mínimo. Não tem problemas de alimentação, faz as refeições nas lanchonetes do terminal de passageiros. Tem sempre algo a dizer aos empregados do comércio local, atuação que lembra a de consultora espiritual. Assisti-a entregar um bilhete a funcionária de uma lanchonete com mensagens de otimismo e bem viver, amparada em versículos da Bíblia. Fala um bom português, escreve e lê fluentemente, apesar de se declarar surda há quarenta anos.

O desapego desta mulher é surpreendente. Dorme em bancos duros do aeroporto e não reclama. O bem maior é a pequena sacola de papel com roupas e miudezas, que leva para lá e para cá num carrinho de bagagens.

Confidenciou que foi noiva de enxoval e tudo e pediu para não entrar em detalhes.



Ao buscar explicação na filosofia indiana para a vida de Isaura, afirma-se que a situação atual dela a coloca no âmago do ciclo concêntrico da existência. Após passar por vários lugares pregando o que considera ser a verdade, este desapego aos bens materiais e a fixação num local como o aeroporto, com gente que chega e sai o dia inteiro, a aproxima do centro da vida, onde está localizada a purificação do ser.

A reunião em minha casa terminou em silêncio. Ninguém arriscou entender Isaura e seu procedimento. Alguns aceitaram a ótica da evolução da vida nas fases difíceis e outras a interpretaram como desequilibrada.

Todos emudeceram, afinal, como julgar alguém que vive assim com Ele e de quem se diz serva.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

JK É A LENDA


A realidade inúmeras vezes mescla com a fantasia e ambas se confundem num vai e vem entre o passado e o presente. Mitos da Antiguidade remetem aos dias de hoje, espelhando acontecimentos do dia a dia. Alguns cruéis, outros edificantes. As narrações épicas de Brasília se assemelham aos da história antiga. Algumas podem até ser inverossímeis, de qualquer forma amplamente divulgadas pela imprensa.
Ao consultar a vasta documentação disponível sobre Brasília, dá para acreditar que a escolha de Juscelino Kubitschek de Oliveira obedeceu critérios místicos. Pode-se comparar à lenda do Rei Artur, monarca que ocupou o trono da Inglaterra e viveu, caso tenha existido, entre os séculos V e VI d.C. A história antiga fala da espada enterrada numa pedra e a participação do mago Merlin.

(foto: fonte internet)
Nossa história, para início de conversa, começou com uma tragédia. O suicídio do presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Ninguém acreditava na candidatura de JK. Os militares não o apoiavam. Desconfiavam isto sim, que o político mineiro teria apoio dos comunistas o que bastava para provocar arrepios na caserna. Ignoravam que o mineiro fora escolhido por entidades místicas, além de obra do destino.
A sequência de acontecimentos concorreria para a consolidação da vitória. Quem sabe até por obra de Merlin. O mago inglês definiu o método de encontrar o rei Artur entre os melhores guerreiros do reino, cravando uma espada encravada na pedra. O fato é que na corrida presidencial brasileira, em 1955, apareceu um candidato alternativo, Plínio Salgado. Pela postura, arrebanhou enorme quantidade de votos de Juarez Távora, forte opositor ao carismático JK. Os votos transferidos a Salgado facilitou a vitória do político mineiro. “A raposa pessedista”, faturou as eleições com o menor percentual de votos válidos da história do Brasil, míseros 36%. Propiciou assim a um cigano chegar à presidência do Brasil. Foi o primeiro e único do mundo.
Mas a sequencia de fatos necessários para Brasília acontecer, não estava completa. A construção da nova capital constava nas Constituições desde 1891, mas a efetivação era adiada continuamente pelos governantes. Parecia mais uma das leis previstas e não realizadas no país.
O destino arranjou as coisas. Após eleito, JK foi cobrado em público sobre a obra colossal. No comício datado de 4 de abril de 1955, em Jataí, Goiás, Antonio Soares Neto, o Toniquinho, questionou-o sobre o item da Constituição que falava sobre a construção da capital. Juscelino comprometeu-se em público. Em fevereiro de 1957, iniciaram-se as obras e em 41 meses, Brasília foi inaugurada para a incredulidade dos céticos.
O mago Merlin é fruto da imaginação inglesa, mas Juscelino valia-se do seu, bem real, de carne e osso. Consultava seguidamente o médium Chico Xavier. Pedia orientações à entidade mediúnica sobre os muitos problemas enfrentados durante a construção da capital.
Da mesma forma que os bispos católicos questionavam a proximidade do bruxo Merlin da realeza na versão inglesa da lenda do rei Arthur, a alta cúpula da igreja se perguntava o que fazia Juscelino ouvir o representante do espiritismo.
Não me espantaria se em solo goiano estivesse encravada uma espada. O predestinado JK desencravou-a e cumpriu a lenda da versão brasileira. A capital é hoje considerada uma das obras mais importantes da arquitetura e do urbanismo contemporâneos. E Juscelino Kubitschek, a lenda.

Sobre as construções


Migrar é uma espécie de carma do nordestino brasileiro. Influenciado pela fome e a miséria da seca, viaja quilômetros à procura de melhores condições de sobrevivência. O deslocamento é constante, vez por outra acelerado pelo recrudescimento da aridez ou oferta de emprego em outras regiões. Aconteceu durante a construção de Brasília, quando milhares de migrantes do Norte e Nordeste do país se deslocaram à região central para ocupar vagas na construção civil.

(foto: fonte internet)
O pedreiro Raimundo Nonato partiu do Piauí em setembro de 1958. Deixou seis filhos com a mulher e pegou carona num caminhão pau de arara rumo ao canteiro de obras do Planalto Central. Conheci-o décadas depois na fila do banco no Conjunto Nacional, enquanto o atendimento demorava. Falou suas aventuras durante a construção. A facilidade dos empregos nas construtoras e a contrapartida da falta de conforto nos alojamentos do Núcleo Bandeirante. Considerava a futura capital acolhedora se comparada a situação piauiense. Havia esperança de melhoria. A seca na terra natal vitimara dois filhos.
Naquela tarde, levaria o neto a um prédio que ajudara a construir. Interrompemos a conversa quando o visor chamou minha senha.
Após ser atendido, ofereci carona e fomos ao prédio do Banco central no Setor de Autarquias Sul. Lá chegando, identifiquei-me e ganhei um crachá de acesso. Quando o elevador chegou e preparava-me para entrar, notei movimentação no balcão.
– O senhor não pode entrar. Aonde vai? – dizia o porteiro a Raimundo – Qual o Departamento?
– Quero mostrar o prédio ao meu neto. Ajudei a construir e ele quer conhecer – O pedreiro usava uma linguagem simples, enquanto torcia a aba do chapéu.
Com olhos grandes e negros, o menino admirava a escultura de mármore por trás do balcão.
Voltei e devolvi o crachá. A fila esbravejava impaciente
– Seu Raimundo, venha tomar um refrigerante. – Levei-os a uma banca de revista próxima e pedi refrigerante para os três.
– Vô, como subiu até lá em cima? – o menino apontava o topo do edifício.
– Subíamos de elevador de tabuas com motor. Durante a subida, qualquer vento balançava o trem. Mas a visão do sol, derramando amarelo/laranja pelo cerrado, compensava – o velho sorria.
– Sentia medo, vovô?
Pedi que esperassem, paguei a conta e saí. Voltei ao edifício e convenci o chefe da segurança a autorizar uma visita acompanhada por vigilante. Tomamos o elevador de aço que, hermético, fechado e claustrofóbico, subiu silencioso e firme até o décimo andar. O menino olhava em volta, como a procurar algo.
O migrante nordestino tem visão simplista do mundo. A cada andar construído, sonhos e matizes diferentes. Nos rostos queimados do sol, marcas do esqueleto de concreto. A mente dos netos se alimenta de histórias utópicas de edifícios com paisagens ensolaradas. Na realidade, só o concreto frio, lacrado por portas e janelas. Ar condicionado. Corredores com gente apressada. Papéis. Planos.
A volta do passeio foi silenciosa. Diante da pergunta se gostara do prédio, o menino respondeu que achara gelado com pessoas chatas.
Netinho! – chamava Raimundo – sabe aquele ali – e apontava a Caixa Econômica Federal. – Construí paredes a noite. Vamos lá, quero mostrar também.
– Não precisa vovô. Prefiro que fale da construção.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Baile de máscaras de (Nova) Veneza


Tenho por hábito frequentar eventos no interior de Goiás. São festas tradicionais organizadas em pequenas cidades goianas visando divulgar o folclore e projetá-las como pólos turísticos. Destaco as Cavalhadas de Pirinópolis, o Festival de Curtas Metragens da Cidade de Goiás e a festa religiosa de Muquem em Niquelândia. Citei estas, mas existem outras igualmente interessantes.
É o caso de Nova Veneza. Há seis anos o município de oito mil e quinhentos habitantes, organiza seu Festival Italiano de Gastronomia e Cultura. O slogan da cidade fala por si, Pedacinho da Itália no Coração de Goiás. Um amigo falou-me do evento e fui conferir a Sexta Edição da festa entre os dias 27 e 30 de maio. A cidade dista de Brasília mais ou menos duzentos quilômetros, passando por Anápolis e Nerópolis. Entre esta última e o destino, enfrentei trecho de asfalto esburacado, o que obrigou uma velocidade inferior a trinta quilômetros por hora. Por sorte o trecho era pequeno, portanto, politicamente de fácil solução.
As ruas de Nova Veneza são originais. Sem asfalto, são pavimentadas com bloquetes sextavados, ótimos para drenar as águas da chuva. O asfaltamento, excelente para os carros, contribui com a impermeabilização do solo o que causa alagamentos e enxurradas. Melhor deixar como está.
Após o banho para tirar a poeira, desloquei-me a pé ao evento, coisa impossível nas grandes cidades. Lá, tudo é perto. Desci a pequena rua Francisco Peixoto, cumprimentando os moradores que olhavam o movimento sentados nas calçadas e respondiam animadamente. O festival gastronômico aconteceria na praça principal, onde foram armadas cerca de quarenta barracas para venda de massas, pães, vinhos, bebidas e lembranças em geral. Entre estas, mesas e cadeiras proporcionavam conforto ao turista que chegava. No centro da praça, um palco enorme indicava que haveria programação de shows aos visitantes. E foi o que ocorreu.
Uma parceria entre a cidade de Nova Veneza e sua homônima em Santa Catarina proporcionou aos visitantes a apresentação de uma banda que animava os visitantes com marchinhas italianas. No terceiro dia, um grupo de dança apresentou-se com impecáveis fantasias e máscaras representativas do carnaval da Veneza da Itália. Lá, o evento carnavalesco surgiu a partir do século XVII, influenciado pela nobreza que, disfarçada saia as ruas e misturáva-se ao povo. As máscaras são elementos importantes deste carnaval, tanto da Veneza italiana, como das Novas Venezas brasileiras. Com os trajes, característicos do século XVIII, são comuns máscaras de nobres representadas por caretas brancas pintadas de prateado ou dourado e roupa de seda negra com chapéu de três pontas.O baile de carnaval ao ar livre, com mascarados e banda tocando marchinhas do século passado, foi o ponto culminante da festa. Há algo no anonimato que incita o individuo a soltar-se, dançar e saltitar livremente. Mascaradas, as pessoas parecem criar coragem para a diversão. Após a apresentação no palco, a enorme fila de mascarados serpenteava pelos quatro cantos da feira e puxava os assistentes tímidos. Para participar, o público apelou para a criatividade montando máscaras de caixas de pizzas.
O prefeito, administradores e políticos da cidade, também mascarados, caíram na folia, no que fizeram muito bem.
O sucesso traduziu-se no número de frequentadores. Segundo o apresentador oficial, cerca de setenta mil pessoas compareceram a festa durante os três dias.
Incluí Nova Veneza em minhas viagens. No ano próximo, farei as malas para participar da festa Gastronômica. Espero melhorias na estrada Nerópolis/ Nova Veneza. E irei preparado para curtir o baile ao ar livre. Comprarei máscaras e, disfarçado de Pierrô, levarei a namorada fantasiada de Colombina. E cantarei, “um pierrô apaixonado, que vivia só cantando, por causa de uma Colombina, acabou chorando, acabou chorando”.

sábado, 25 de setembro de 2010

CASAL 80


O que torna uma vida boa? A juventude?A idade pode ser uma limitação? Certamente o que fazer é ditado pelas condições físicas, sociais e emocionais. Ninguém em sã consciência, desce uma montanha de neve num par de esqui a 100 quilômetros por hora, com 100 anos de idade. Mas há muitas outras coisas a fazer com esta idade. Descobrir o que fazer em cada fase da vida, é uma arte. Quem encontra, acrescenta prazer, seja qual for a idade.
TÔÔÔÔÔÔMMMMMM. Quando a sirene do transatlântico toca, o casal se olha e suspira, é o quinto cruzeiro marítimo que realizam. Estão em pé no convés, de mãos dadas. A brisa do mar descabela os fios brancos de Welfare Hanriot e acaricia o rosto de dona Marina. O nome de Welfare, escolhido pela madrinha, homenageia um grande jogador do futebol carioca da década de vinte. Ele com 81 e ela com 80, decidiram há dez anos realizar o sonho maior de suas vidas: viajar de navio. Não mais pararam. O cruzeiro da vez parte do porto de Savona na Itália. Até lá, enfrentaram muitas horas de voo. Uma hora de Brasília para São Paulo e mais onze até a cidade italiana.
O planejamento das viagens é feito por eles mesmos. São criteriosos. Sentam na sala da casa onde moram, com decoração bem arrumada e ladeados pela cadela cocker Duda, que não anima de ver os donos prontos para outra ausência. Após algumas horas trocando idéias e roteiros, procuram uma agência de viagens. “Nossos passaportes sempre estão em ordem, nunca se sabe quando a vontade de viajar toma conta da gente”. Dona Marina é decidida. “Não quero nem saber de minha dor no ombro”, Welfare refere-se a uma dor crônica, conseqüência da queda do telhado da residência, durante a obra, trepado numa escada de dois metros, quando tinha 70 anos.
“Lucinha, adivinha onde estamos? Em Recife”, anunciou certa vez dona Marina para a filha. “Eu e seu pai pegamos um navio no Rio de Janeiro e viemos para cá. Semana que vem, estaremos em Brasília de volta”. A filha se espantou. Hoje não acontece. Está acostumada com a independência dos pais que, mesmo idosos, tomam suas decisões e não querem ninguém para dar pitaco, nem os filhos. “Isto aconteceu há cerca de 10 anos, numa das primeiras viagens deles”, Lucinha ri, quando relembra o fato.
O navio se afasta lentamente da costa italiana e singra os mares rumo ao Brasil. É a navegação mais longa que fazem. São 24 dias ao sabor das marolas, do céu e da curtição a bordo. “Ao chegarmos em Savona, tivemos que ir para um hotel dormir, pois o navio só partiria no dia seguinte”. Mas eles não se apertam, já enfrentaram muitas contrariedades e deram conta de todas. “Preferimos chegar um dia antes da partida do navio, para evitar correrias. O hotel foi caríssimo, mas valeu a pena”.
Enquanto o navio segue rumo ao estreito de Gibraltar, iniciam os contatos com os tripulantes e passageiros.
Os tripulantes são de localidades diversas, asiáticos, hondurenhos, latinos e até brasileiros. “São raros os americanos ou europeus na tripulação”, Welfare conta sobre a fartura servida nas viagens. “Os restaurantes a bordo servem comidas de origem internacionais. Carnes variadas e de qualidade e, claro, muito frutos do mar. Precisa ver o camarão. Óh!” E faz um gesto demonstrando que o tamanho do crustáceo é o mesmo do dedo indicador. “Só não aceito ver passageiros que repetem a refeição até não aguentar mais deixando tudo no prato. Que desperdício”! Welfare, indignou-se quando viu um passageiro pegar uma maçã, não dar nenhuma uma mordida e deixá-la no prato, inteira, para ser jogada fora.
A viagem segue tranqüila e eles ampliando as amizades, graças a facilidade de dona Marina em fazê-las. Mas não é somente ela que as cultiva. Welfare, apesar de estar acometido de uma surdez avançada, inclina o rosto, apura o ouvido, faz concha com a mão e conversa com todos, troca idéias, dá opiniões. Fala alto e gesticula entusiasmado. “Sou surdo”, explica.
Dona Marina aposentou-se como diretora em uma escola de alunos excepcionais em Brasília. Eram crianças e jovens adultos com dificuldades de relacionamento, cuja convivência a fez desenvolver habilidade mesmo com os mais fechados e introspectivos. Welfare, capitão aposentado do Exército, é mais duro, mas também tem facilidade em interagir. O passatempo predileto é perguntar à tripulação sobre a dinâmica do navio, como por exemplo para onde vai o lixo. “É incinerado em enormes caldeiras e a fossa é esvaziada quando está atracado nos cais”.
“Gostamos de viajar de navio, porque tudo está ao alcance das mãos. Boa comida, apartamento confortável, pessoas para conversar”. Antes viajavam em excursões, aviões, ônibus, translados, hotéis e inúmeros passeios cansativos. Hoje acabou a disposição para enfrentar estas maratonas. O navio oferece num lugar só, tudo isto com a vantagem que há shows, festas e muitas atrações.
“Fizemos muitas amizades duradouras nestas viagens”. Dona Marina enumera os amigos ali angariados. “Há um senhor, o “seu” Alberto, morador do Rio de Janeiro, que toda vez que vai a Caldas Novas nos avisa para encontrarmos”. Um casal de Brasília que conheceram numa das primeiras viagens também permanecem amigos. “Vez por outra nos encontramos e tomamos chá”. Outra que se juntou a eles nos passeios, foi dona Tonita. Vaidosa senhora de 70 anos, moradora da Asa Sul, antes viajava solitária.
A atividade a bordo que sempre participam é o jantar de gala com o Comandante, onde a autoridade maior divide a mesa com os passageiros. A ocasião exige uma roupa a altura, mas eles não se apertam. Levam na bagagem um vestido longo de dona Marina e o terno cinza de Welfare. Assim, preparam-se para a noite com esmero, e comparecem elegantes para o encontro no restaurante principal, o mais luxuoso.
“Há muita diversão. Shows fantásticos. Por exemplo, há cruzeiros específicos em que o principal é a apresentação do Roberto Carlos. É muito lindo, já fomos a dois. O show que mais gostei foi o do Mielle.” Dona Marina não poupa elogios para o show-man dos anos 60. “Ele promove karaokê entre os passageiros que competem para escolher o melhor cantor de bordo. Depois conta piadas. Canta e encanta com seu charme”.
A embarcação segue pelo canal de Gibraltar e entra em mar aberto. “À noite em alto-mar é linda quando observada do convés. É comum ficarmos, Hanriot e eu, sentados a beira da piscina olhando as estrelas. A lua cheia banhando o mar de luz é esplendorosa.” Empolga-se dona Marina.
As ocorrências desastrosas em navios, relatadas ultimamente, não os intimidam. “Há muitas tragédias maiores em outros meios de transporte. Às vezes acontece de um ou outro passageiro enjoar, mas na maioria das vezes, ninguém sente nada. Os transatlânticos são pesadões e oferecem muita segurança.” Welfare é otimista e tem energia sobrando. Pudera, seu nome significa saúde, bem estar e satisfação! Onde moram há uma bem montada oficina de consertos de tudo. Chuveiros, guardas sóis, cortadores de grama, enfim, tudo que cai na mão dele, é consertado. Se não conseguir arrumar, inventa uma peça nova. Certamente substituirá a defeituosa. “A única coisa que sinto falta nestas viagens é de minha oficina, onde me sinto o próprio professor Pardal”. Se ressente de não ser mais calmo, menos ansioso. Conta que quando um conserto não dá certo, joga longe, geralmente espatifando o objeto. Depois se arrepende e precisa consertar mais coisas.
Welfare é emocional e profundo respeitador da natureza. Esmera-se em economizar água. “Água é nosso bem maior e desperdiçamos”. Diariamente alimenta os pássaros pretos, periquitos e pardais que chegam nos jardins da casa. Chegou a instalar uma casinha de barro para distribuir sementes de girassóis, alpiste e farelo.
Ao chegar à Ilha da Madeira, olham pelo convés. O dia está chuvoso e não vêem necessidade de revisitá-la. “É assim mesmo, mais uma vantagem do navio. Quem não quer descer, não precisa. Estamos muito bem a bordo. Além do mais, em outro cruzeiro, fizemos uma bela excursão aqui”. Dona Marina gosta de enumerar os pontos positivos da viagem.
A partida da Ilha acontece no outro dia, iniciando assim, a travessia do Oceano Atlântico. Serão alguns dias de céu e mar, aproveitando as atrações montadas para os passageiros. Comida abundante, shows, conversas a beira da piscina, noites enluaradas, acomodações de primeira, descanso merecido para quem, após luta de anos e muito trabalho, tem condições favoráveis para usufruir de comodidades e passeios. “A saúde é nosso maior bem. Tem muita gente que não dá valor, mas quem tem deve aproveitar a dádiva de Deus”.
Católicos fervorosos, quando estão em Brasília assistem a missa diariamente pela televisão. Em casa, possuem uma espécie de altar em que depositam oferendas e prestam homenagem ao Sagrado Coração de Jesus, que “é a imagem de nossa devoção”.
Eles tem dois filhos. A Lúcia e o Carlinhos. Ela com 54 anos e ele com 53. Ela mora em Brasília, ele em Manaus. Nesta viagem, o transatlântico adentrará o Brasil pela ilha de Marajó e navegará o rio Amazonas até a capital do estado. Ficarão o bastante para rever além do filho, a nora, os dois netos e o bisneto, motivo de orgulho do vovô e da vovó.
Mas as viagens nem sempre ocorreram às mil maravilhas. Certa vez com tudo pronto, o agente ligou de véspera dizendo haver um problema e que as duas cabines, reservadas e pagas, seriam condensadas em uma, sem direito a reembolso. “Logo desta vez, que a Lucinha vai junto e que reservamos uma cabine só para ela, acontece isto”. Dona Marina ficou revoltada. Mas resolveriam isto na volta. Um acontecimento destes não iria abortar os planos. Mal sabiam que os problemas estavam recém começando. Ao chegar ao aeroporto de Brasília para tomar o avião para São Paulo, foram informados que o vôo estava atrasado e os aconselharam a tomar outra aeronave, com escala em Goiânia. Ao decolar para São Paulo, após esta escala, Dona Marina, sente-se mal e sofre um AVC em pleno ar. Procuram não perder o controle e o vôo segue. Ao chegar em Sampa, uma ambulância requisitada pelo comandante os espera e a leva ao hospital do Exército. Até pensaram em cancelar o cruzeiro. Mas dona Marina, para espanto dos médicos e da familia, demonstrou uma energia incomum e pediu que lhe dessem alta. “Eu quero embarcar nesta viagem”. Os médicos a atenderam. Deram-lhe a alta solicitada, pois o AVC foi diagnosticado como de intensidade leve. Apenas recomendaram a Welfare e a filha que ficassem alertas para qualquer anormalidade. Graças a persistência de dona Marina, a viagem transcorreu normal e se divertiram muito.
E qual seria a viagem que mais gostaram? “Claaaaaaaaaro que foi aquela que minha filha e as minhas netas estavam. Foi tudo de bom. Quer coisa melhor do que viajar com quem se ama?” Apesar de ter curtido as netas, a avó confessa que houve momentos de certa preocupação. No cruzeiro com elas, o trajeto iniciou no Rio de Janeiro indo para Ilhéus, depois Salvador, Búzios e finalmente retornaram ao Rio de Janeiro. Pois foi justamente em Búzios que aconteceu a preocupação com a neta Aline. Neste ponto do cruzeiro, todos desceram em botes salva-vidas para dar um passeio turístico na cidade. O transatlântico permaneceu ao largo, em alto-mar. Na volta, a neta atrasou-se para o reembarque, e eles resolveram ir primeiro e aguardá-la no navio. Em Búzios não há cais que comporte transatlântico. O retorno deles foi efetuado com alguma dificuldade, principalmente na hora do translado do bote para o navio, pois o mar estava revolto. Aline atrasou-se e no momento da travessia, o mar se encontrava agitadíssimo, com ondas invadindo o bote. A avó, do alto do convés, nada disse ao avô, mas ficou a rezar para que tudo saísse bem. “Deus atendeu minha reza e a netinha subiu de volta para o navio, com sobressaltos é verdade, até ela ficou assustada, mas foi tudo bem, graças a Deus”. Disse e benzeu-se.
A travessia do Atlântico é demorada. E para garantir a diversão permanente dos passageiros, a rotina diária do transatlântico é acrescida de muitas atividades. Normalmente o casal faz suas programações e participa das que os tripulantes promovem. O café da manhã, por exemplo, se prolonga até 10h30. Na mesa onde é servido, conversam com outros conterrâneos do cruzeiro. Piadas e histórias histórias divertidas não faltam. “Há velhinhas que jogam dia e noite nas máquinas caça-niqueis, veja que perda de tempo. Hanriot detesta jogo de qualquer espécie, não sabe jogar e nem quer aprender”. Diariamente assistem a missa das 11h, ministrada pelo capelão. A tarde fazem a sesta. Após, vestem-se para o jantar, que sempre é muito farto. Quando anoitece, escolhem um local agradável e conversam sobre suas vidas. Relembram os anos duros, os parentes difíceis, as contrariedades enfrentadas por ambos. “Minha vida de casada foi muito melhor, quando solteira, passei muito trabalho”. Ambos são unânimes em achar que os jovens devem estudar sempre. “Eu parei porque casei” diz dona Marina. Várias atividades ela empreendeu bem mais tarde, com os filhos já adolescentes, como a conquista da carteira de motorista, o curso superior de pedagogia e a participação na ADESG - da Escola Superior de Guerra. “Aprendi muito com as pessoas. Um dos ensinamentos, foi que o egoísmo não é um sentimento bom. Querer tudo para si é ruim. Aprendi também que todos devemos ter um projeto de vida”. Para Welfare, o “estudo servirá para o jovem conseguir boa colocação, bom emprego”. Aprendeu lições valiosas com os pais. “Me deram bons exemplos que repassei para meus filhos, conduta exemplar, moral, ética e responsabilidade que é o que está faltando em muita gente”.
Vez por outra o tempo fecha, o mar fica encarpelado. Mas eles já estão acostumados, nada os atemoriza. Não enjoam. Há pessoas que vomitam, que se sentem solitárias na viagem, não é o caso deles. Estão sempre abertos à comunicação. “O elogio é uma forma de se relacionar. “Como você está bonita”, dito na hora certa, levanta o astral de qualquer um e abre o leque de um relacionamento saudável ou um papo agradável”, dona Marina usa sua experiência como professora nestas horas..
Lúcia, a filha que mora em Brasília, não se preocupa com as viagens de seus pais. Considera-os bem independentes. No ano passado, 2008, viajaram sozinhos para o Rio de Janeiro com a finalidade de visitar uma irmã de Welfare que estava de aniversário. O pai foi dirigindo o carro sozinho, desde Brasília. Voltaram para casa duas semanas depois. Para Caldas Novas, onde possuem um apartamento, rumam pelo menos uma vez por mês. “Como me preocupar se eles nem me consultam sobre as viagens. E nem precisam. Só participam que estão de partida.” Lúcia relembra. “Viajar pelo Amazonas, num transatlântico, sempre foi o sonho de meus pais, ouço isto desde menina. Esta viagem é a realização de um sonho dos dois”. Acredita que a procura pelos cruzeiros de navio se deve a dificuldades de locomoção, principalmente da mãe. Ela sofre de um desgaste da cabeça do fêmur com o quadril, o que ocasiona cansaço e muita dor quando se movimenta em demasia. “As excursões em ônibus são muito cansativas, exigem longas caminhadas e visitas a monumentos e prédios históricos”. Num destes cruzeiros marítimos, a filha foi com eles. E ainda bem que foi pois aconteceu o AVC da mãe. “Veja que esta viagem, provou o grau de persistência dela. Mesmo com o que ocorreu, participou de eventos e nunca optou por se recolher na cabine em detrimento de shows, almoços ou jantares. Sem reclamar, caminhou normalmente pelo convés, onde olhava o mar e o horizonte, como querendo viver os momentos como estavam acontecendo, sem forçar nada”.
Na casa existe um quarto só para as malas. Nem as desfazem. Ficam semiprontas esperando a próxima viagem, que pode ser um cruzeiro, uma visita a parentes no Rio de Janeiro ou Manaus, ou ainda uma aventura mais curta para Caldas Novas.
O navio agora passa pelo rio Amazonas e eles se encantam pelas cores marcantes das águas escuras do rio Negro e amarelas do rio Solimões. É o encontro das águas. Duas manchas paralelas que não se misturam por quilômetros.
Adoraram as ilhas do Caribe, principalmente a de Consumel, na qual Welfare mesmo perdendo o aparelho de audição, não se furtou em excursionar para assistir a dança dos golfinhos.
Em Manaus o filho os espera com festa. Ficam por pouco tempo, logo se recolhem ao navio para reiniciarem a navegação do rio e o retorno às águas do Oceano Atlântico, rumo ao Rio de Janeiro, onde termina mais este cruzeiro. Permanecem mais cinco dias na capital fluminense visitando os parentes e só após retornam à Brasília.
Foram vinte e nove dias desde a partida para a Itália. Recolhem as malas na esteira e cumprimentam a filha que foi buscá-los no aeroporto. No trajeto até a casa, falam muito, gesticulam, perguntam sobre os acontecimentos da casa, da cidade.
Após descarregarem as bagagens no quarto das malas, sem desfazê-las, sentam na espaçosa sala da residência.
“Sabe Marina, precisamos ir a Caldas Novas depois de amanhã. Preciso fazer a revisão do carro que comprei na concessionária de lá e quero aproveitar para cortar o cabelo.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O BOTECO


Na infância, a Mario Totta era nosso parque de diversões de todas as tardes. Pela manhã estudávamos. Jorge, Renan, Lota e eu no Três de Outubro, em frente a praça da Tristeza. Arturzinho, Chicão e Judeuzinho em colégios do centro de Porto Alegre. Após o almoço e o dever de casa, iniciávamos as atividades. “Na Tristeza que é bom morar”, admitia Arturzinho, morador de Petrópolis, assíduo frequentador da Zona Sul.
Nadávamos no Guaíba, explorávamos as matas do clube Inapiários e éramos o terror dos vizinhos com barulhentos carrinhos de rolimã nas calçadas.
Durante a adolescência, aos finais de semana, dançávamos com as gurias no clube Comercial ou Tristezense. Vez por outra, um de nós pegava o carro do pai e nos aventurávamos mais longe, íamos ao Grêmio União, Grêmio Gaúcho ou Gondoleiros. Quando não havia dinheiro no bolso, escalávamos reuniões dançantes na casa de aniversariantes.
Em matéria de festas, as garotas eram campeãs na programação. Pelo menos até aparecer um namorado ciumento e mau dançarino que obrigava a reprogramação em outro local.
Num final de outono, Arturzinho e Chicão, os mais velhos do grupo, decidiram trabalhar. A partir daí, Jorge, Renan, Lota e eu, enfrentamos dificuldades para montar time de futebol e jogar no campinho da Landell de Moura.
Alguns meses depois, mudei-me para perto do antigo Dinossul, hoje Nacional, onde morei até concluir o curso de Engenharia. Formado, transferi-me para Brasília, onde moro atualmente.
Lota, após um curso na Varig, tornou-se comandante da Companhia. Mas queria vôos mais altos e montou uma escola de pilotos na distante China.
Hoje os cinamomos estão solitários. Em visita a Zona Sul, não encontrei ninhos de sabiás ou guris colhendo sementinhas verdes para guerrear com fundas caseiras.
Passaram-se quarenta anos e há uns cinco, recebi um recado no Orkut. “Marcão, aqui é o Jorge, lembra que fomos vizinhos na Mario Totta?” Reiniciamos contatos por e-mails e, como tenho parentes em Porto Alegre, na primeira oportunidade, procurei-o.
Jorge atualizou a agenda, “nosso grupo continua encontrando, agora nas segundas-feiras no Boteco do Natalício, no centro.” E continuou, “temos uma mesa com nosso nome gravado no tampo.”
Na segunda-feira seguinte, liguei para o Jorge e fomos. O bar não tem cinamomos, nem fica a beira do Guaíba. Mas nem precisa, pois não temos mais a energia de outrora. Na mesa a esquerda da entrada, lá estavam, Chicão, Arturzinho e Judeuzinho. A partir daí, sempre que vou a Porto Alegre, programo na viagem o encontro com os amigos no Boteco.
Tiago, o garçom que nos atende não perde a oportunidade de piruar as histórias da Zona Sul.
Caso a Zero Hora seja distribuída na China, envio um recado ao Lota. Quando cansar do Mandarim e voltar aos pagos, haverá uma cadeira a espera no Boteco do Natalício.