Loja do Eduardo - O Entalhador (arquivo pessoal) |
Amanhece
e uma chuva fina paira sobre Pirenópolis. Que fazer na cidade cuja atração principal
é visitar doze cachoeiras? A pergunta foi a primeira coisa que ocorreu, mas no decorrer
do dia, obtive as respostas. E foi surpreendente! Deixei o carro estacionado em
frente ao Pouso do Frade, na Rua do Bonfim onde fiquei hospedado e só lembrei
no dia da saída.
Anteriormente,
ao visitar a cidade transitava motorizado o tempo todo e rumava para as
cachoeiras. Confesso que perdia detalhes e contatos com a hospitaleira gente da
cidade, empenhada em interagir com o turista, talvez a principal fonte de renda.
Desta vez decidi aproveitar o contratempo da chuva e frio e, munido de casaco,
chapéu e guarda-chuva, apelei para criatividade e caminhei muito.
Logo
ao sair da pousada a esquerda, subindo a Rua do Bonfim, no sentido da igreja, encontrei
Eduardo, o Entalhador. O artesão de
cerca de quarenta anos trabalhava em uma placa de madeira entalhando nome de restaurante da cidade. Natural de Bonito, Mato
Grosso - muita gente do comércio de Pirenópolis é de fora - solteiro e com notável
talento manual, esculpia letra a letra com paciência e perícia. Malu e eu paramos
e decidimos acompanhar o trabalho por instantes. A cada fincada do formão, uma
lasca e letras surgiam como num passe de mágica e na rapidez de dar nó na visão.
De acordo com a avaliação do Entalhador, exerce o trabalho a contragosto,
encara como “rotineira forma de ganhar o pão de cada dia” e, por incrível que
possa parecer, julga melancólica sua labuta diária. Explica que por prazer,
tudo bem, mas por obrigação é maçante e isto que, segundo ele, é responsável
pela maioria das placas em madeira do comércio municipal. São mais de mil em
quinze anos de trabalho. “E muitos comerciantes que fecham seus comércios,
devolvem a placa e as guardo de recordação”, na fachada da casa onde mora e
trabalha, exibe com orgulho inúmeras inscrições comerciais. Armazéns, pousadas,
butiques, bares, restaurantes, lojas, etc.Igreja do Bonfim (arquivo pessoal) |
Mas
o dia recém havia começado e seguimos pela rua do Bonfim em direção a igreja de
mesmo nome. Estava em
restauração. Procurei o responsável pelo processo e fui
atendido por Adriano, o Restaurador,
jovem alto, usando óculos da moda, de aro grosso, bem falante, paulista morador
de Uberlândia. Percebi o refinado gosto pelo trabalho quando uma senhora se
aproxima e exibe a pequena mão da estátua que restaurava meticulosamente e fala
eufórica “olha, Adriano, achei a mãozinha da santa”. Ele a abraça e pula de
alegria. “Você é demais, achou algo valioso, muito importante no nosso
trabalho”. Abraça a mulher e a beija carinhosamente no rosto. Custei a identificar
a pequena mão de no máximo um centímetro na palma do restaurador. E não apenas
eu, os demais brincavam “ei Adriano, pensei que você procurava um braço em
tamanho natural e não uma miniatura”. A igreja do Bonfim, uma das mais antigas
do estado de Goiás, foi construída entre 1750 e 1754 para abrigar a imagem do
Senhor do Bonfim, o Cristo crucificado em madeira, de tamanho natural, encomendada
a arquidiocese de Salvador. A viagem de lá até Pirenópolis demorou quatro meses,
dada a dificuldade de transporte e a falta de estradas entre os estados da
Bahia e Goiás. A estátua foi desmontada, alojada em lombo de burro e
acompanhada por duzentos escravos posteriormente aproveitados nas fazendas
locais. Adriano apresentou efusivamente a descoberta feita na parede da nave
principal do altar. “Ao preparar as paredes para a restauração, visualizei três camadas de restaurações em épocas diferentes”. Algo espantoso de
imaginar, pois as modernas técnicas datam de anos recentes. Manifestou-se
indignado com o desrespeito pela arte do século dezoito, com a falta de
preservação de época numa acintosa remarcação, modernizando aquilo que deveria
ser preservado a qualquer custo, para mostrar as novas gerações, a beleza
original da obra sacra.
Pouso, Café e Cultura (arquivo pessoal) |
Continuando
a peregrinação, resolvi ir mais longe a procura de café espresso. O desejo me impulsionou
por caminhos e confrontou com situações inesperadas. Quando contornava a praça
Santa Cruz, no Centro Histórico, fui agarrado pelo braço por um cidadão
pirenopolino que nos convidou para provar um café que, segundo ele, seria o
mais gostoso da cidade. Com direito a slogan
escrito no cartão de visita entregue com orgulho: DESCUBRA O MELHOR DE PIRENÓPOLIS... VENHA TOMAR UM CAFÉ CONOSCO! Fomos.
Assim
conheci Isócrates, o Inesperado. Acima
da porta, que abria e gentilmente convidava para entrada, a placa POUSO, CAFÉ E CULTURA. E em letras
menores, Uma Reverência a Pirenopolinidade. Em duas salas, uma exposição de objetos raros e antiguidades acumuladas
pelo pai, diplomata Isócrates de Oliveira, que serviu em diferentes lugares do mundo.
“Meu pai serviu a dois Joãos, do Goulart ao Figueiredo”. A pousada instalada
num terreno de cerca de 1 500 metros
quadrados , coloca a disposição dos hóspedes, amplo
jardim, muito verde e árvores centenárias. As instalações sofisticadas e confortáveis são administradas pessoalmente
por Isócrates, que incansável, explica a história ali guardada. Emocionado, em
certo momento durante a leitura sobre o avô Francisco de Sá, nascido em
vinte e nove de janeiro de mil oitocentos e sessenta e um, pedi que lesse
devagar para facilitar o entendimento. O pirenopolino enxugou as
lágrimas com as costas das mãos e afirmou que a história o engasgava. Ao fundo
do pátio, exibe seu orgulho, o veleiro Vento Leste que segundo falou, o levará
até Buenos Ayres pela bacia hidrográfica sul ou a Belém, pela norte. Espero ser convidado para comprovar a saída
do navegador, que desbravará esta bacia hidrográfica.
E
assim, por intermédio destes personagens, conheci outro lado de Pirenópolis. Em
comum entre eles a adoração pela arte, pela criação, a conservação e a
exposição a nós, aficcionados por história das cidades e pessoas.
Pô, legal... hitórias bem curiosas. Não conhecia a fundo esse seu lado intelectual.
ResponderExcluirVeja que não só os filhos surpreendem os pais. As vezes eles são surpreendidos pelos pais. Abração.
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