(Foto Google Imagens) |
Anualmente faço exames para verificar como está
a saúde. Desta vez relaxei e passaram
três anos. Tudo está bem. Andava receoso, afinal há quem afirme que “frequentar
médicos é procurar doença, quem procura acha”. Comentário mais danoso,
impossível. É importante que monitore, tive câncer de intestino. A partir daí,
mudei radicalmente o pensar, o agir e a forma de relacionar com o mundo e as
pessoas. Pouca gente entendeu a mudança. Vou descrever os acontecimentos de forma
agradável, pois me considero sobrevivente.
Na vida as coisas me aconteceram por muito tempo
de forma previsível, às vezes como coadjuvante e outras, protagonista. Quando coadjuvante
dava prioridade exagerada aos que me cercavam e, protagonista, priorizava a
felicidade alheia. Em resumo acreditava que todos ao redor mereciam mais
que eu. Deveriam acontecer várias coisas para dedicar-me a projetos pessoais. Para sair deste pêndulo, foi preciso o destino armar das suas.
Assim, numa tarde de sexta feira do mês de abril,
dois mil e três tomei consciência da minha mortalidade e iniciou-se o novo
caminho, completamente inesperado. Até então consumia energia no trabalho e churrascos
de finais de semana regados a cerveja. Adiava prioridades e entregava as rédeas
da vida para os outros. Admito que não vivia, existia.
Naquele dia entendi que os sinais que
apresentava deveriam ser levados a sério. Há meses apresentava cólicas intestinais
constantes com idas dolorosas ao banheiro. Trabalhava numa rotina alucinante,
entre a empresa de consultoria e vendas no Liberty Mall e o emprego público de
meio expediente. Eram doze horas diárias entre vendas de mercadorias,
acompanhamento de instalações e execução de obras.
Escolhi o médico no catálogo do plano de saúde e
consegui consulta no mesmo dia, final de
tarde, num consultório esvaziado pelo inicio do fim de semana. O proctologista,
impaciente, olhava o relógio, certamente imaginando que atrasaria seu descanso.
Cheguei encharcado de suor e, preocupado, iniciei a narração do histórico de
cólicas, sangramentos e dores abdominais. Atentamente, ele ouvia o relato dos
sintomas, acompanhado de meu autodiagnóstico prematuro. Quando parei de falar, perdera
a pressa, “certamente não é só isto”. Apontou a maca e apalpou demoradamente o
abdômen que, dependendo do lugar, doía como se perfurado por punhal. Nada
comentou. Marcou exame completo para segunda-feira, após jejum de doze horas e
lavagem intestinal. Foi um fim de semana tenso e apreensivo. Pensava em
desembaraçar daquilo rapidamente para iniciar a semana com as atividades
normais, afinal, tarefas inadiáveis esperavam e a rotina de manutenção do
prédio público deveria ser cumprida. Queria solução imediata, um comprimido ou
mesmo injeção para ficar livre.
Meu humor despencara e desdenhava das piadas que
pipocavam ao redor. Estava bloqueado. Erguera uma blindagem na qual permaneci protegido
durante final de semana. Isolar-me era o que minha situação pedia.
Na segunda feira cheguei ao consultório atordoado
pela brusca perda da tranquilidade. Olhava a todo instante o relógio,
preocupado em chegar atrasado ao escritório. Urgia voltar à rotina, pois
garantia o retorno à normalidade.
Deitei na maca em frente a um monitor de vídeo e
mangueira com microcâmera na ponta. “Como passou o final de semana?” Perguntou
a enfermeira. “Cheio de gás”, respondi sem convicção. Pela seriedade da reação,
desconfiei. Diferentemente da sexta anterior, havia na sala, além do procto, um
anestesista e a enfermeira que aproximou, pegou meu braço esquerdo e perfurou a
veia do antebraço, onde colocou a mangueira de soro. O anestesista aproveitou e
espetou a seringa e, enquanto acionava o êmbolo, perguntou-me sobre o time de
futebol predileto. Respondi que era o Grêmio de Porto Alegre e a frase que se
completaria com o comentário do jogo da quarta-feira seguinte pela Copa Brasil
ficou pela metade. Apaguei sob efeito de poderoso sonífero.
Acordei grogue e percebi que o exame terminara.
Estava em outra sala, num sofá reclinável e ouvi o médico conversando com alguém.
Por mais que esforçasse para entender, a anestesia bloqueava e desisti. Dormi
aquela noite ignorando o resultado.
No outro dia, compareci ao consultório cedo e
folheei displicente a revista Caras de quatro meses atrás. Com cerca de trinta
minutos de espera, o médico me recebe na ante-sala com uma pasta branca na mão.
Mandou-me entrar e sentei na cadeira com braços de ferro tão frios como o
diagnóstico que receberia a seguir. Respirou fundo. “O senhor deve imaginar o
que tem”. Não respondi, mas pelo ar solene, conclui. “Câncer de intestino e a
única solução é cirurgia. Enviei o material para biópsia, mas é só para
certificar, não há dúvida.” Enquanto escrevia a relação de exames para o
pré-operatório, repassei minha vida pela primeira vez, algo que se tornaria
rotina. Vendo-me de cabeça baixa, explicou os procedimentos cirúrgicos e por
fim, fechou a conversa com um comentário que me martelou por muito tempo. “Toda
pessoa que passa por um processo destes sofre profunda mudança,” e acrescentou,“prepare-se.”
Peguei os papéis que me alcançava, levantei da
cadeira e olhei o relógio. Eram dez horas da manhã. Reclamei que tinha rotina
dura a enfrentar, que os trabalhos parariam sem mim. Ele ouvia atento. Quando
terminei as lamúrias, falou compassadamente, “penso que não entendeu, o senhor
está sob cuidados médicos. Estou lhe dando atestado de um mês para iniciar
exames pré cirúrgicos. Fará cirurgia, sessões de quimioterapia, talvez radioterapia.
É hora de cuidar de suas coisas e do bem maior, a saúde.” O final da frase ouvi
de costas. Um zumbido apitou no ouvido, o chão faltou sob os pés e sentei
novamente.
Ficar doente soa como um sinal de fraqueza, o
estigma da vergonha que se identifica com o sentimento de dó de quem vive a
volta do adoecido.
Se falou mais alguma coisa,
desconsiderei. O tempo parou, a pressa acabou, a vida desabou. O que aconteceu
comigo? O que fiz de errado? Eu merecia? Porque? A que mudanças o médico se
referiu?
As respostas viriam devagar,
a conta gotas. Foi como mergulhar na realidade sombria, num mundo desconhecido.
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