(Crematório J. Metropolitano - Foto Google Imagens) |
Eram cinco horas da
manhã quando o telefone toca e a voz metálica informa que Hilton acabara de
falecer. Com setenta e oito anos, expirou profundamente ouvido apenas pela enfermeira
que, com sono leve, dormia na cama ao lado. Hilton estava exausto de resistir a
quem lhe queria levar desde o início de janeiro. A resistência ao chamado só é
explicada porque “...ninguém morre antes da hora”. Acabava assim a vida de
imprevistos e caminhos inesperados, trilhados sem questionamentos.
Quando
solteiro, fora alegre folião que, com sua fantasia colorida, brincava o carnaval
em conhecido bloco carioca. Após o uso, guardava as alegorias cuidadosamente para
o próximo ano. Hábito abandonado ao conhecer Cris. Com ela, viúva, quatro
filhos de casamento anterior, iniciou a vida responsável, assumindo-os como
seus. A nova família teve inúmeras dificuldades, o que não impediu de serem felizes
por cinquenta anos.
Teve
dedicação exemplar ao trabalho, mesmo em missões espinhosas. Trabalhos que
renderam condecorações e medalhas, mas que custaram pesados prejuízos emocionais.
Todas cumpridas com afinco até o fim, mesmo que conflitantes com sua índole. Em
casa era pacato, rígido apenas na educação aos enteados que assumira como
filhos.
Sete
meses antes de sua morte, ficara viúvo inesperadamente. A morte de Cris
desmontou o guerreiro e os planos de envelhecimento em companhia um do outro.
Permanecera com os quatro filhos de Cris. A única enteada, cuidadosa com o
padrasto, preparou o apartamento vizinho ao dela, para dar conforto. Mas Hilton
tinha outros planos. Não queria incomodar os filhos da falecida Cris e,
impulsionado pelo inexplicável e uma paixão recente, fora morar com a irmã e o
marido, dez anos mais velhos que ele, em outra cidade, onde tinha planos de
fixar residência com a nova companheira. Hilton trocou de cidade para morrer
três meses depois, sem concretizar esse plano.
Foram
sessenta dias hospitalizado, transferido duas vezes a UTI para tratamentos dolorosos.
Hilton
perdeu a batalha. Na véspera, recebera a visita da irmã, do cunhado e do enteado
mais jovem. Passaram assim momentos de despedidas, adivinhando o desfecho dali
a poucas horas. Hilton os ignorava. Nada mais era importante. Na última semana
estava reflexivo, solitário. Encapsulado. A função renal substituída pela
hemodiálise. A qualidade de vida o
abandonara. A única recompensa foi o esticar do tempo de preparo a viagem final.
A
enfermidade abortou os planos de casar e ter nova vida. Ao filho mais jovem, confidenciou
no leito de morte: “gosto muito de minha namorada, mas quero mesmo é morrer e
reencontrar tua mãe, minha Cris, meu grande amor”.
Os
momentos finais da existência são dedicados aos resgates das relações. Hilton e
os enteados perderam esse compasso no momento que ele trocou o Rio de Janeiro por
Brasília. Ceifou-se a oportunidade de aparar arestas criadas ao longo das
relações. Os enteados perderam a chance de cuidar do padrasto. Nas despedidas,
na antessala do crematório, Carlos, um dos enteados, agradeceu ao falecido tudo
que fez por ele e desejou “que vá com Deus”. O filho mais jovem, que o acompanhou
aos últimos momentos, ainda em vida, fraquejou. Emocionado, manteve-se fora da
sala, “sou fraco nesses momentos, no velório de mamãe foi a mesma coisa.”
Seguiu o cortejo ao local de incineração, após o caixão fechado. Vilmondes, o
terceiro filho que havia visitado o padrasto uma semana antes da morte, permaneceu
na cidade onde mora. Estava abalado pelas cenas que assistiu no leito do
hospital. Maria, a enteada, profundamente emocionada pelos acontecimentos viajou
ao Templo de Nossa Senhora Aparecida em São Paulo de onde canalizou orações aos
pais, “recém perdi mamãe e agora o papai, não tenho forças para viajar”, informou
aos parentes. Ela, que contava apenas seis anos quando Cris e Hilton casaram,
foi quem mais sofreu quando o pai resolveu trocar o Rio por Brasília. No final
da vida, não poderia dar assistência ao homem que a mãe escolheu para ser seu
padrasto.
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