(Foto Google - Imagem) |
Ao receber o diagnóstico, a vontade era sair do
consultório correndo pelas ruas, aproveitando os últimos momentos. Mas ao
contrário, desanimado, prostrei-me em casa. A partir do dia seguinte, iniciei a
romaria de exames e consultas para ouvir segundas e terceiras opiniões.
Alimentava a ilusão da opinião contrária, do engano nos resultados dos exames,
do erro de diagnóstico ou troca de documentos.
Após ouvir outras opiniões médicas, confirmou-se
o diagnóstico e a unanimidade do tratamento. Teria mesmo que fazer cirurgia e
quimioterapia. A ficha caiu. Passar por corte no corpo, me aterrorizava, levara
no máximo, dois pontos ao cair de bicicleta e machucar o joelho aos dez anos.
Abrir a barriga soava como sacrilégio. Sobreviveria? Caso sim, com que qualidade
de vida? Havia chegado minha hora? Com 52 anos, me sentia muito bem. Nadava em
dias alternados. Abolira o cigarro há muito tempo. É verdade que almoçava fora
de casa e aos finais de semana tomava cervejadas com churrasco. Mas milhões
fazem isto.
Crescia o sentimento de
mudança, não somente pelo que o médico dissera. Era um sentimento interno. Um
ciclo se fechava e sabia que desagradaria gente querida. Mas era inevitável.
Precisava de coragem para viver de maneira verdadeira comigo mesmo, descartando
a vida que esperavam de mim. Na verdade queria me impor e viver o meu modelo,
pois entendia que aquele que vivera até então, nada tinha a ver comigo.
Passei a questionar
cada vez menos o porquê de acontecer comigo. Queria conhecer a doença para estimar
minhas chances e a gravidade da situação. Dedicava-me dia e noite a ler tudo
que pudesse. Desvalorizava conversas fúteis. Entendi que os outros seguiam rumos preocupados com formigas enquanto eu
era atacado por leão.
A
apatia que me abateu após o diagnóstico, a partir da decisão de conhecer a
doença, deu lugar a um ímpeto de luta, de oferecer máxima resistência e, na
medida do possível, sair vencedor. Alternava momentos de prostração e euforia.
Era
uma luta de fases. Em uma delas, passei a oferecer trocas. Se conseguir me
safar disto, serei assim. Buscava barganhar a cura. Se sair bem na cirurgia,
prometo ser um ser humano melhor. Passava os dias no balanço das fases.
Enquanto esperava os resultados de exames que
habilitariam a cirurgia, o processo de mudança germinava. Passava a vida como um
filme. Em um determinado dia peguei o carro e, enquanto percorria a estrada
Brasília/Goiânia tentava entender minha solidão perante o problema. As doenças tem
a capacidade de nos demonstrar a verdade inexorável de que estamos sós na
batalha pela vida. Mesmo cercado da família e de amigos, a luta é solitária.
Impossível quem está de fora avaliar isto. Cabia a mim e somente a mim, passar
por aquilo. A solidão é verdadeira e, por maior apoio oferecido, a ajuda é de dentro
para fora. Neste
dia, fui até Goiânia e retornei. Cheguei de madrugada em casa e, cansado de
dirigir e pensar, evitei explicações de onde estava, afinal não podia fraquejar
e adoecer, para mim, ainda era profundamente vergonhoso. Assumir que a saúde
tinha–se ido, no meu entender, me inferiorizava. Deitei insone. Quieto na cama
questionei mais uma vez o porque disto. Sempre fizera tudo tão direitinho. Dois
casamentos, sendo três filhos no primeiro, dois no segundo. Sempre cuidara deles,
trabalhara muito. Dei a todos o máximo conforto, boa casa, comida, educação de
primeira, carinho, boas pensões alimentícias. De repente isto. Com a mudança me
assolando, era necessário dominar a ansiedade e enfrentar com otimismo o que
vinha pela frente. Quando amanheceu, percebi um dia difícil pela frente. Pouco
dormira e, ao perceber-me só em casa, mais uma vez, chorei. Chorei pelo que adiei
fazer, chorei por não ter tempo de fazer e, finalmente, chorei pela
incapacidade de impor meu modelo existencial. Certamente o futuro se avizinhava
incerto.
Devo
deixar claro que tive muito apoio, da família, amigos e amigas que se desdobraram
em palavras de conforto. Muitas pessoas se
afastam é verdade, mas as que ficam realmente ajudam. Nem todos sabem se aproximar
numa situação destas. E mesmo aqueles que ficaram distante, permaneceram
atentos na minha recuperação.
Aproximando
a cirurgia, um dia pela manhã recebi o telefonema de uma amiga propondo
encontrarmos. Tivera um HPV, que quase desenvolveu a câncer de colo uterino e,
após tratamento, levava vida normal. Sugeriu naquele mesmo final de tarde, no
estacionamento ao lado da Igreja São Camilo de Lellis na entrequadra 303/304
sul. Chegamos praticamente juntos e estacionamos lado a lado. Abri a porta, entrei
no carro dela e percebi um leve perfume que me fez bem. O sorriso era largo e
acolhedor. Sentia-me mal emocionalmente o que notou e pegou minha mão. Perguntou,
“Marco, você está pensando que vai morrer?”. Foi a primeira vez que ouvi isto de
outra pessoa e, ouvir assim a queima roupa, estremeci. Na verdade, até pensava
nisto, mas precisava de coragem para encarar. Demorei a assimilar a frase e senti que
choraria novamente. Abraçou-me fraternamente. Seu abraço e a vontade velada de apoiar
solidariamente a um amigo, somou-me forças e segurei a mão entre as minhas. Deixou-me
chorar silencioso e, após cerca de dez minutos, interrompeu, “ainda não
respondeu”. Calmamente, olhando em meus olhos, pois permanecia calado, acrescentou,
“pois você sairá muito bem desta, Marco, eu sei”. A convicção desta frase me
espantou. Olhei-a nos olhos e percebi que falava sério. Mas de onde tirara
aquela afirmação? Conversamos mais um tempo e finalmente articulei a resposta, “não
quero morrer”, afirmei. Beijei seu rosto, abri a porta do carro e segui em direção
a Igreja, onde permaneci até o padre se aproximar e, colocando a mão em meu
ombro, falar no ouvido “o senhor pode voltar amanhã, se quiser”. Eram nove
horas da noite. Aquela conversa foi impressionante e, pela primeira vez desde o
diagnóstico, dormi a noite toda.
Minha condição avalizava muitas coisas e ao entender
isto como ganhos percebi o segundo passo importante da reforma pessoal.
Visualizar o positivo nas pequenas coisas. Precisava estar só e preparar a
estratégia de luta e isto, no fundo, passou a me trazer otimismo. Nadava, lia,
escrevia, ia a cinema, caminhava toda manhã no Jardim Botânico e me preparava
da melhor forma possível para enfrentar a cirurgia que se aproximava..
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