LEIA TAMBÉM:"ARQUIVO" e "PÁGINAS"

Dificuldades para comentar? Envie para o email : marcotlin@gmail.com
****************************************************

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A FESTA DE BARÃO DO TRIUNFO

(foto: Marco)


Armandinho (85); Eloá(81); Lourdes (82)


Os mais experientes da familia Tassinari, presentes a festa.


Ao contemplar o modesto clube do Barão do Triunfo, onde se realizaria a 10ª Festa da família Tassinari, pensei que por mais difícil a programação, o evento deve sempre acontecer. Com qualquer número de presentes. As gerações que estão crescendo merecem conhecer a cidade, os parentes e a história de origem. Até suas vidas. Muitas vezes temos impulsos desbravadores e desconhecemos o temperamento. Apreciar a história da família ajuda a se conhecer melhor. Os imigrantes italianos iniciaram a conquista do solo através do trabalho duro, num desapego indescritível das coisas na terra natal. Muitos de nós, fizemos isto também. E as gerações mais modernas o fazem. Resolvi escrever este texto pensando nisto. Quem sabe em 2012, as novas gerações comecem a entender que conhecer os antepassados, é uma forma de se conhecer.
A Décima Festa da família Tassinari aconteceu no dia 15 de maio de 2011. Conforme foi votado no ano anterior, os familiares se reuniram no Município de Barão do Triunfo, há 100 quilômetros de Porto Alegre, terra onde houve a saga dos familiares que iniciaram a conquista das terras gaúchas. Este ano, a frequência do pessoal foi baixa. Na primeira festa acontecida no ano de 2001, os participantes chegaram há mais de 400. Desta vez, o evento reuniu cerca de 54 pessoas. Mas há explicações para isto. O primeiro foi a chuva que na véspera se abateu sobre a capital gaúcha, onde moram a maioria dos familiares, fazendo-os temer pelo acesso a cidade. E realmente enlameou muito e para quem vinha de Arroio dos Ratos, o lamaçal era um entrave na estrada de mais de 50 quilômetros de terra. Outro fato foi o frio intenso que com a chuva espantou os que pretendiam passar um domingo no interior. No caso, serra com montanhas. Mas calculo que o motivo de maior contribuição para o enfraquecimento do comparecimento foi o Grenal. Velho embate de futebol entre Grêmio e Internacional, que decidiria o campeão. O jogo, que começou as quatro da tarde, envolve todo o povo gaúcho e aí se inclui a família Tassinari, que se divide nestas horas, em torcedores do azulão ou do colorado. Os que foram a festa estavam indóceis para saber notícias, jogadores escalados, como estava o jogo e assim por diante. Mas a festa com toda modéstia, aconteceu linda como sempre. No cardápio o velho e saboroso churrasco, saladas e arroz. A sobremesa, cobrada a parte, foi saborosa. A organização pelas incansáveis Maria Augusta e Leoci, foi impecável. Se desdobraram para tudo acontecer sem sobressaltos. E foi o que ocorreu sem problemas. Sucesso como sempre.
Pelos registros oficiais os italianos, incluídos os da família Tassinari, chegaram ao Barão do Triunfo em 1889, onde receberam terras e materiais para trabalhar. A cidade em si, fala sua história. No nome das ruas, nos casarões antigos e até nas árvores centenárias que derrubam suas sombras pela pequena cidade. Em cada esquina uma história, uma recordação, alguém para contar algo. E é isto que a festa de família, que se realiza todo terceiro domingo do mês de maio de cada ano tenta manter viva: a chama destes imigrantes desbravadores. Ali chegaram, acreditando numa melhoria das condições de vida.
Barão do Triunfo é uma cidade cujo desenvolvimento me parece estar dentro de uma programação política que passa pela manutenção da primitividade. Localizada numa serra, com ruas e lombas que sobem e descem por toda cidade, não necessita de maiores desenvolvimentos. Não há problemas de engarrafamento, vagas no centro da cidade, nem assaltos a residência. Muito menos sequestros relâmpagos. A população vive confortavelmente, sem sobressaltos. O acesso, por qualquer lado, sempre passa por pelo menos 50 quilômetros de estrada de terra: Arroio dos Ratos, Sertão Santana ou Mariana Pimental. E isto contribui para um dos pontos pitorescos da viagem. Quem não curte estrada de terra, aluga vaga em ônibus fretado, saindo de Mariana Pimentel.
Entre os presentes os três membros mais idosos da família, Armando, o Armandinho com 85 anos, sua irmã Eloá, com 81 anos e Maria de Lourdes, de 82 anos. Os dois primeiros filhos de Helena Tassinari e Lourdes, filha de Dante Tassinari. Como Helena e Dante são irmãos, os dois primeiros e Lourdes, são primos irmãos.
Armandinho, cuja foto está estampada no texto, mantém o bom humor. Chama Lourdes de Baronesa, a representante mulher presente a festa, de mais idade. A alusão a Baronesa é pelo fato dela haver nascido na cidade.
Armandinho e Lourdes moram sozinhos, cada um num bairro d a capital do Estado, ambos viúvos, prova de vitalidade da família Tassinari. São independentes na labuta diária. Exemplo de vida para os jovens.
Armandinho recorda de muitos acontecimentos dos tempos de menino. Morou no Barão do Triunfo dos 2 aos 8 anos. Exibe uma bigorna em miniatura que tem mais de cem anos. O primeiro ofício foi o de ferreiro, aprendido com Dante Tassinari, pai da prima Lourdes. O pai de Armando era fabricante de explosivos e quase se rebentou quando a fábrica, que na época tinha segurança precária, voou pelos ares, enterrando o sonho do negócio e o sustento da família.
As 4h da tarde, todos começaram a sair. Os afoitos saíram mais cedo para pegar o segundo tempo do Grenal. Chovia muito e cheguei a temer pelas condições da estrada. Com receio peguei a que julguei mais segura, Sertão Santana. Doce ilusão. O prefeito havia mandado passar máquinas na pista e o barreiro fez o carro dar boas deslizadas perto da cidade.
Ao chegar a capital, o sol predominava e soube que o Grêmio havia perdido o jogo. Certamente se não houvesse viajado, o resultado permaneceria igual. Perderia a festa e meu time derrotado de qualquer jeito.
E viva as festas da família Tassinari! No ano que vem, Augusta e Leoci, conto com a garra de vocês para a realização da Décima Primeira. Se houver Grenal, proponho que se faça um abaixo assinado para a Federação Gaúcha adiar, caso contrário será um fracasso, do Grenal, claro.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

ENDEREÇO INCERTO







(fotos : Marco)
























Ana chega à janela do apartamento e espia o homem da bicicleta. Está lendo embaixo da árvore de ramagem espessa, protegido do sol por sombra densa. Lê diariamente desde o amanhecer. De um lado, a bicicleta equipada com vários compartimentos, do outro, a caixa do tamanho de um container, guarda bens preciosos. Quem seria o misterioso que há cerca de três anos mora na rua, em frente a janela? Evitava se aproximar e falava a filha ser perigoso. Mas um dia, movida pela curiosidade desceu aos pilotis do bloco e aproximou receosa. De perto, verificou que o receio era sem fundamento. Deparou-se com um homem de pele morena, altura média, idade indefinida, sem dentes, meigo e sorridente. Roupas surradas, mas limpas. O queixo proeminente vez por outra apontava para cima e indicava arrogância, mas logo se escondia atrás do sorriso franco e olhar fugidio.
Francisco Kaefer, em primeiro de setembro de 2011, faz 37 anos. Estudou até a sétima série. "Acredito em Deus mas não tenho religião”, fala sorrindo quando perguntado. É natural de Cascavel no Paraná. Possui seis irmãos e três irmãs. Um dos irmãos, o mais querido, morador de Cuiabá, morreu atropelado. O restante não os considera e faz questão de manter distância. “Sou o irmão mais novo e tenho vinte anos de diferença da irmã mais velha. Quando meu pai morreu, em 1978, os mais velhos se acharam no direito de dar ordens. Não aceitei a imposição e sumi da vida deles. Quero-os longe.” Revolta-se. “Só sabem discutir comigo”. Quando em 1994, a mãe faleceu, não o avisaram. Soube da morte duas semanas depois. Sem tempo de providenciar a viagem para dar adeus a mulher que o colocou no mundo, resignou-se.
O morador de rua raramente o é por vontade própria. Algo forte ocorreu que o afasta do convívio, colocando em posição social contrária.
Existem estudos para descobrir os motivos que levam as ruas. O desemprego, a falta de estrutura familiar, problemas com a justiça, vícios (drogas ilícitas e lícitas, como o álcool) ou problemas mentais, são os comuns. Francisco em nenhum se enquadra.
Nem mendigo, nem pedinte, Francisco é artesão e desenhista. A bicicleta além de meio de transporte mostra sua arte. É decorada com desenhos geométricos, nas cores amarela e vermelha. No inicio, fazia e vendia artesanato na torre de TV. Interrompeu este comércio após ser delatado pelos comerciantes aos fiscais. Hoje, faz parceria com os artesãos que revendem suas obras.
A outra ocupação é com reciclagem. Cata latinhas e materiais plásticos e revende numa recicladora da Asa Norte. Isto permite vida folgada, mas de conforto duvidoso. É um poupador e defende a poupança. Principalmente porque a vida na bicicleta, num trânsito praticamente exclusivo para quatro rodas, é perigosa. Francisco ganha cerca de R$ 1 400 mensais com as atividades de artesanato e reciclagem o que garante a conta na Caixa Econômica Federal. Além do gasto com a pensão, gasta cerca de R$ 400, sendo R$ 280 para comprar comida e R$ 120 para livros e revistas.
O paranaense afirma que está nas ruas porque quer, gosta. Não paga contas de luz, de água, condomínio ou aluguel. Mesmo com ganho mensal razoável, prefere a rua, sem endereço, anônimo. Sente solidão, mas quem está livre dela? Não quer mulher para dividir o espaço que é grande, mas que dividido por dois, será a metade. Para se aliviar usa os serviços das prostitutas. “Faço, pago e elas vão embora, sem compromisso. A convivência só incomoda”. Fala firme, deve ter conhecimento.
Há mulheres, catadoras de latinhas que querem dividir espaço. Mas resisti. Moradora de rua, jamais. A última que tentou colocar rédeas, morava com três filhos adolescentes fumadores de maconha numa invasão. “Para evitar riscos, sai fora.”
O bem mais valioso, depois da vida e da liberdade, é a bicicleta. Conheceu o Brasil inteiro em duas rodas, incluindo Manaus com a dificuldade da floresta amazônica. Antes de Brasília, morou nas ruas de Cascavel, Araguari, Uberlândia e Cuiabá. Quando ainda morava na cidade natal, arriscou-se a ir ao exterior. Foi parar no Paraguai e depois no Uruguai.
A bicicleta tem radio, iluminação de tipos e cores diversas, compartimentos visíveis e invisíveis que guardam segredos e é toda reforçada para rebocar o pequeno container. As pilhas retiradas dos lixos do Plano Piloto alimentam as lâmpadas “o pessoal as joga fora ainda com carga e me servem por bom tempo”.
Francisco tem filho de 12 anos que vive com a mãe em Cuiabá, e paga pensão de R$ 350,00 estipulada por juiz. “Pago direito a pensão. Desconta direto de minha conta bancária. Atraso no pagamento dá cadeia e não quero nem pensar nisto”, fala com medo. “Respeito o ladrão, mas também respeito a Policia, na verdade tenho medo dos dois.” Vez por outra, vai a capital do Mato Grosso visitar o menino.
Ana acredita que existem muitos ganhos secundários em morar na rua. A liberdade, a preservação do direito de ir e vir e do desapego, os mais importantes. Francisco coça a cabeça sem jeito e discorda, “O custo disto é alto, não tenho a mínima segurança nas ruas. O maior inimigo de quem mora nas ruas é o próprio morador das ruas.” E acrescentou que vivem oferecendo droga. “Minha liberdade não compro, nem vendo por droga nenhuma”. Aproveitou para contar que quase morreu há três anos. Estava de bicicleta à noite, passando pelo Setor Comercial Sul quando, ao aproximar de um grupo de dois homens e uma mulher que cheiravam droga, um deles o empurrou, derrubando-o. Ainda no chão, recebeu três golpes com barra de ferro e só está vivo porque um soldado chegou na hora e o levou ao Hospital de Base. Permaneceu dois dias em coma e sete no hospital. Ao ter alta, procurou o Policial Militar que o salvou e foi aconselhado a fazer um Boletim de Ocorrência. Os agressores foram condenados a oito anos de prisão por tentativa de homicídio.
Francisco é um ávido leitor de revistas. Na caixa construída para guardar os pertences, podem ser vistos exemplares do Universo Marvel, novos, que adquiriu nas bancas. Os livros compra nas livrarias ou ganha dos moradores da quadra onde mora, admiradas pelo interesse na leitura. Orgulhosamente, apresenta a coletânea completa de livros de Seleções de Rider Digest composta de 11 livros de contos, com fina encadernação em capa dura vermelha.
Ana desacredita na felicidade dele. Questiona até se haveria algo por trás da aparente calma e segurança. Estes dias passou mais de oito horas lendo, não fez nada o dia inteiro. Apenas leu. Onde quererá chegar. Na verdade, precisamos chegar a algum lugar? Explodirá em stress se nada fizer?
Em abril, tirou férias de tudo. Não catou latinha, nem trabalhos de artesanato, ficou lendo, descansando na sombra. Pode se dar a este luxo, afinal, a poupança da Caixa Econômica Federal, lhe dá lastro. “Tiro férias quando quero, sem pedir a ninguém nem dar satisfação de minha vida. Qualquer dia, quando cansar daqui, pego minhas coisas e vou para outro lugar, afinal, o que faço posso fazer em qualquer lugar”.
Francisco é um morador de rua, mas ilustra a eterna busca do homem procurando algo que talvez nunca encontre.
A letra abaixo possui um link para quem desejar ouvir a música e representa a vida de um morador de rua. Não é o caso, mas define com poesia realista, as pessoas das quais Francisco quer distância.




Morador Das Ruas Dorsal Atlântica


Bebendo sem parar, as horas não passam
E respirando o ar gelado entre prostitutas,
Travestis, desocupados,
Cheiro de luxúria e cerveja me entorpecem
Chuva bate forte no chão quente, o cheiro de asfalto
Entre você e eu só existe a noite
E a vontade de nos encontrar
Essa estranha sensação de abandono fica solta no ar

Encontro sem hora marcada
Esse ruído insistente de silêncio
Ligados pelo mesmo sentimento final

Esquinas, ruas mudas, espreitando em silêncio
Ouvindo-nos andar e arfar

Morador das Ruas

Precisa ser livre, não se sentir preso a nada e ficar
Apenas o mundo sem obrigações
O próprio reinado do morador das ruas
Só, viver, livre, agora

Se essas ruas pudessem ser minhas
Eu poderia abraça-las
Senti-las vivas pulsando
Sugando a vida de quem passa nelas
Ou se quisesse destruir tudo como um crime passional
Para que isso? Por que não ir embora e esquecer?
Estou aqui sei que vou ficar, porque aqui é meu lugar

COPIE E COLE EM SEU NAVEGADOR PARA OUVIR A MÚSICA

http://www.vagalume.com.br/dorsal-atlantica/morador-das-ruas.html#ixzz1LEI5t2Qg

domingo, 1 de maio de 2011

LIMITES DA PAIXÃO

(IMAGEM DO GOOGLE)


Carlos costumava reunir amigos para manter viva a amizade forjada nos tempos de faculdade. A cada ano, o grupo ficava maior e exatamente por isso, a participação de Alcino passou como fato corriqueiro.
No dia marcado, além de Carlos, Alcino encontrou Jorge, Paulo, Casemiro, Agenor, Palhares e Miranda.
Carlos encheu a cuia do chimarrão e a deu ao recém-chegado quando acabou de cumprimentar os amigos.
As reuniões eram periódicas, a convite do dono da casa. Normalmente falavam sobre fatos acontecidos. Haviam trabalhado juntos durante a construção de Brasília, sócios de empresa de projeto.
O dono da casa era o mais falante.
– Vocês recordam que Alcino nunca chegava cedo às obras? Desistimos até do transporte solidário. Quando era a vez dele nos levar de carona, sempre atrasávamos. – Carlos falava alto e os amigos curiosos em ouvir detalhes, fizeram silêncio.
– As mulheres da empresa, principalmente as solteiras suspiravam pelos corredores “Ah! se o Al me olhasse com aqueles olhos azuis!” Diziam. Ele as despistava. Era soberbo! – A gargalhada foi geral ao comentário de Casemiro.
Alcino prestava atenção ao grupo, tentando descobrir aonde chegariam.
Carlos encheu a cuia e entregou a Palhares, que aproveitou a deixa e contou uma de suas piadas.
Quando Alcino parecia esquecido, o dono da casa retornou mais afiado.
– A soberbia só não alcançou Jurema, a secretária do major Ataliba. – Os olhares se voltaram a Alcino, que pigarreou. – Uma negra bonitona e sapeca. – e desenhou no ar com as mãos, modelando imaginariamente uma mulher com largos quadris.
– Ei Carlos, vá com calma, hein? Aceitei o convite, mas para divertir, respeita meus cabelos brancos. – Alcino falou em tom de brincadeira, tentando parecer indiferente as brincadeiras.
Mas Carlos estava disposto a levar o assunto adiante.
– Pois um dia invoquei com o conquistador. Levantara cedo para terminar um projeto e vi Alcino acompanhado de Jurema, chegando no Opala vermelho. Sem perceberem, segui-os até o segundo andar. Detrás de uma divisória percebi-os aos beijos. Permaneceram ali por trinta minutos e saíram. Quem se arrisca a adivinhar onde foram? Alguém se habilita?
Ouvindo isto, Alcino tentou sair de fininho, mas foi parado por João que o pegou pela cinta e o trouxe novamente a roda.
– Alcino e Jurema, foram ao gabinete do presidente da empresa. Acredito que para realizar alguma fantasia. – Carlos não perdoava mesmo. O injuriado encrencado pelas declarações do amigo abria e fechava a boca sem entender. João tirou uma foto do bolso e mostrou aos colegas. Na foto, Alcino correndo atrás de Jurema em volta da mesa do chefe.
Alcino ficou atordoado com as revelações. Pensou o que poderia ter feito a Carlos para agir assim.
Jorge se levantou e falou claro e firme.
– Alcino, todos aqui passaram pelo mesmo constrangimento. De todos nós apresentou algo nas últimas vezes que aqui comparecemos.
E virando-se para Carlos, intimou-o.
– Fala fanfarrão, o que quer? Porque estas revelações?
– Quero pouco. Mas é importante. Que testemunhem em meu favor no processo de divórcio que moverei contra Solange.
Os amigos se entreolharam. Amigos do casal sabiam que o amigo não era santo.
O objetivo de Carlos clareava aos poucos.
– Alcino sabe o que quero dizer. E virou-se ao amigo, com um sorriso maroto. – O alemão branquelo, ficou vermelho como pimentão – Na semana passada eu viajei e a Solange permaneceu só aqui em casa. Como Alcino entende de hidráulica, liguei e pedi que olhasse o vazamento da pia da cozinha na terça-feira ao meio dia. Expliquei que a chave da área de serviço estava embaixo do vaso da samambaia. Depois, liguei a Solange e falei que chegaria antes do almoço, de terça e que esperasse de camisola vermelha. Cheguei mais cedo e peguei-os conversando na cozinha. Que vergonha, Al, continuas o mesmo de sempre. Nem respeitou a mulher do amigo de camisola. Olha isto!
– Carlos mostrou fotos tiradas naquele dia, por trás das cortinas.
– Sabe que nada houve entre Solange e eu. Acabou de confessar a armação! – Alcino ficou indignado.
– Não confesso nada. Alguém de vocês ouviu algo sobre armação? O principal é que casarei logo após o divórcio. – Falou próximo a Alcino, olhando a mulher que se aproximava.
– Com a Jurema, certo querida? Sempre fui apaixonado por ela e quem a conquistou foi Alcino, seu safado – e deu um safanão na cabeça do amigo.
A mulher entrou triunfante, atravessando a porta dos fundos em direção a churrasqueira. Alcino até gaguejou, mas as palavras entalaram.
Jurema tirou o roupão e, de maiô vermelho cavado, saltou na piscina.
Sentia-se dona da casa.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

CAFÉ COM EMPADAS

( Foto do google imagens)






No café lendo o Correio Brasiliense percebi Márcia saindo do banco com a habitual melancolia. Sofria de depressão há anos e a cura andava distante. Cumprimentamo-nos efusivamente, de minha parte é verdade, ela parecia infeliz como sempre. Havíamos trabalhado juntos em um Ministério e na época falara das mazelas, incluindo a eterna luta contra a doença.
Perguntei se fazia psicoterapia. Negou. “Não há mais necessidade, fechei o ciclo de dez anos”. Precisava retomar o mais cedo possível, pensei. Convidei para um café. Primeiro justificou estar apressada, depois aceitou. “Somente três minutos, a filha me espera.” Perguntei sobre o casamento. Suspirou demonstrando cansaço, sentiu apoio e desenrolou a história. Apenas no inicio da relação sentira-se feliz. Rodrigo, o marido, era amável, tranqüilo. Casamento perfeito que se completava financeiramente com bons salários do casal. Tiveram três filhos. Moravam no Lago Sul numa bela casa sempre cheia de gente. “Duas empregadas, jardineiro, piscineiro e caseiro se desdobravam a organizar tudo.” Conseguiam manter conforto e ganho financeiro com rotinas simples. Pela manhã saiam antes das oito com os três filhos e os deixavam no Colégio Marista, um dos melhores da capital. Retornavam cerca das oito da noite. “Hoje reconheço que não tínhamos diálogo”.
Contou-me que mesmo com a depressão desde os tempos de solteira não reclamava. “Ao sentir-me deprimida, tomava a dose do remédio indicada pela psiquiatra e pronto. Ficava satisfeita e a vida seguia.”
Como o casal trabalhava muito, Márcia foi orientada pelo psicoterapeuta a programar viagens para colocar a relação em dia. “O psicólogo explicou que agitação comprometia nossa estabilidade.” Procurou a agência de turismo do Gilberto Salomão e informou-se sobre viagens ao exterior. Com a proposta de excursão pela Europa em mãos, tentou convencer o marido. “Rodrigo alegou falta de tempo e não pensei duas vezes. Comprei o pacote e rumei a Europa em férias de 20 dias. Hospedei-me nos melhores hotéis do velho continente e me diverti demais”, confidenciou-me quase sussurrando. Parabenizei-a, mas não identifiquei um gesto seu que traduzisse satisfação. Pedi duas empadas, ao pressentir que o almoço sairia tarde.
“A viagem significou a realização de um sonho, mesmo estando só.” Continuei sem perceber entusiasmo em Márcia. “Na saída de Brasília, Rodrigo desejou-me que curtisse a viagem para podermos visitar juntos os quatro cantos europeus.” Visitou os principais monumentos e pontos turísticos da França, Portugal, Itália e Espanha. No total, tirou mais de mil fotos. Prometera montar uma apresentação a família, o que não ocorreu.
Enquanto cumpria o roteiro o marido ficou sozinho em Brasília na companhia dos filhos.
A mãe de Rodrigo tivera três filhos homens e sua irmã mais nova, três filhas. Desde crianças, mãe e tia programaram o casamento entre os filhos. “Na família dele é normal. Tanto que acontecera com os dois irmãos dele e as primas. “Rodrigo foi o único dos irmãos a escapar.” Percebi amargura em Márcia. “Ao saberem de meu passeio, promoveram uma viagem ao pantanal. Chamaram os primos casados, Rodrigo de Brasília e a prima solteira, que morava com a mãe numa cidade do interior mineiro.
A viagem deles pelo pantanal durou uma semana. Alegando problemas de cabines, as mães acomodaram o casal de primos no mesmo compartimento. “Esqueceram que a moça contava 18 anos e Rodrigo era um cinqüentão
Márcia foi recebida no aeroporto pela sogra, cheia de cerimônias. “No caminho até a casa, a mulher desenrolou a paixão do filho pela prima e sobre a excursão ao pantanal. Arrematou dizendo que Rodrigo montara casa com a menina e a tia”.
Na primeira oportunidade, Márcia questionou o marido. Ele confirmou. Na divisão dos bens, a parte de Márcia foi a casa.
Os filhos cresceram. Os dois homens casaram e lhe deram dois netos a filha se prepara para casar.
“Construí quitinete para mim nos fundos e deixei a casa para minha filha e o namorado”.
O celular de Márcia interrompe a conversa. Ouve com os olhos arregalados, desliga e levanta agitada. “Vou levar a comida da filha e do genro que esperam em casa”.
No total, ficamos conversando duas horas. Despediu-se de cabeça baixa e sem tomar café. Sentia culpa por falhar nas obrigações e conversar preguiçosamente na cafeteria.

sábado, 16 de abril de 2011

DIFÍCIL DECISÃO

Fonte: imagens do Google Quando a porta da frente abriu, Izabel olhou o relógio. Cinco horas da manhã. Celso entrou cambaleante e incerto, tropeçando na mesa de centro. Deixou atrás de si rastro de barro, cheiro de bebida e mau humor. Desabou no sofá. A mulher aprendera a identificar o momento péssimo para discussões. Repetia o horário de chegada pela terceira vez na semana. E certamente não seria a última. A camisa em desalinho, a calça amarrotada, a gravata torta, não deixavam dúvidas. Dormira acompanhado em algum lugar. No quarto, Cristina e Mônica dormiam inocentes. Izabel aproximou-se carinhosamente, beijou-as e saiu fechando a porta. Protegia as filhas de verem o pai naquele estado. Na sala reencontrou o marido emborcado no sofá, com uma baba que o unia a uma poça de vômito no tapete. Uma ânsia na boca do estômago, a fez virar o rosto. Procurou na agenda a página da advogada. Há dois anos o casal trocara a cama por duas de solteiro. Mulher fogosa, plena de energia, no início do casamento sentia-se preenchida. Mas a vida os distanciara. As filhas exigindo atenção, os compromissos de trabalho, o descontrole da bebida e por fim o verdadeiro motivo do desgosto. À medida que se distanciavam, colocava a culpa da inapetência na frieza da mulher. Apesar de humilhada nas rodas de amigos e em reuniões de família, nunca o desmentira. Esperava que tirassem as conclusões. O caldo entornou ao descobrir o caso amoroso com uma colega de trabalho. Descuidado ao beber, deixara cair um bilhete apaixonado de Sônia. Com as bebedeiras Izabel estava até acostumada, mas traição era insuportável. Precisava, no entanto ter certeza. Certo dia acompanhou-o a um jogo do Flamengo na casa do Ranulfo, colega de trabalho do marido. Lá notara Celso e uma mulher trocando olhares cúmplices e conversando ao pé do ouvido. Ambos bebiam e brindavam a todo instante. Izabel procurou a dona da casa e disfarçadamente informou-se sobre aquela mulher. “É a Sônia, irmã do Ranulfo e trabalha na empresa no setor de Celso. Com a decisão tomada, preparou o café da manhã para os filhos e deixou o lugar do marido vazio. Explicou à empregada que o almoço também o excluiria. Benedita entendeu. Foi à área de serviço, pegou balde, água, sabão e pano e iniciou a limpeza do tapete. No sofá, Celso roncava displicente. Faltaria ao trabalho, pois Izabel não o acordaria como das outras vezes. No meio da manhã, procurou o escritório de advocacia para solicitar o encaminhamento dos papéis da separação. Marcou uma consulta ao cardiologista. Entraria com atestado de afastamento do trabalho para enfrentar a tormenta. As filhas, mesmo sabendo do pai alcoólatra e da descoberta da outra, não admitiam a separação. Nem a ameaça de Celso excluí-la do plano de saúde fez Izabel desistir. Separaram-se em meio a um divórcio conturbado, pleno de acusações. Izabel entrou em profunda depressão. Não que sentisse falta do marido, mas pelas cobranças das filhas. Percebera que vida de mulher descasada era cheia de desafios e a liberdade conquistada agora a sufocava. Era dona de seu nariz, mas crenças adquiridas ao longo da vida, a paralisavam. Os pais deixaram marcas profundas. Mãe resignada e pai ausente foram os principais juízes. Acreditavam que por pior que seja um casamento, deve ser levado como carma, até o fim da vida. Ao fazer psicoterapia mudanças foram inevitáveis. Não somente pela descoberta de si mesma, mas porque numa das idas ao consultório, trocou olhares com Bragança. Ele frequentava o mesmo consultório para administrar conflitos conjugais. Marcaram um jantar e, à saída, foram ao apartamento dela, onde tiveram momentos de ternura e intimidades. A cada encontro, raros pela situação de Bragança, aumentavam as descobertas. Izabel experimentava momentos únicos. Celso foi o primeiro namorado numa época de proibições para o mundo feminino. Agora, graças a psicoterapia, sentia-se livre para experimentar novos horizontes. O fato de o parceiro ser casado, não a incomodava. A relação durou seis meses e a mulher saiu fortalecida e feliz. Com feridas cicatrizadas e aberta a novas relações, partiria a procura de alguém que compartilhasse a vida com a nova Izabel. Passou a entender que o passado não pode ser modificado e o futuro depende do hoje. Sendo assim viveria o presente, sem expectativas e frustrações, focada em plantar relacionamentos maduros, livre dos males do ressentimento e da culpa

terça-feira, 5 de abril de 2011

LUTO COMPULSÓRIO

(foto do blog Deus é fiel) Cedo naquela manhã de janeiro, Marlene saiu para buscar o filho Rodrigo. Recebera um telefonema anônimo às cinco horas informando que o viram entre os edifícios Carioca e Jesse Freire, no Setor Comercial Sul. Antes de sair preparou o café para Patrícia e Vitor que ainda dormiam e logo iriam a Universidade. Dirigiu até o local indicado, onde estacionou em frente ao Shopping Pátio Brasil. Ao aproximar-se sentiu um forte cheiro de urina e um enjôo queimou-lhe o estômago. Dos dois lados da rua, entre os edifícios, jovens perambulavam sem rumo como a procurar algo imaginário. Mais a frente, um grupo discutia em altos brados, distante uns dos outros, gritando frases desconexas. Em comum, pés descalços, calças amarrotadas, suor de noite mal dormida e um cheiro acre de carvão queimado. Os sem camisa, pareciam não sentir frio, apesar do vento a fustigar o corredor cinza entre os prédios. Esgueirou-se em meio aos edifícios, desviando de papéis e objetos jogados dos edifícios. Os containeres de lixo, abarrotados, pareciam elefantes paralisados. A cada grupo que aproximava parava e procurava em meio aos rostos desfigurados, o do filho. Eram jovens acocorados aspirando fumaça de cachimbos feitos com latas de cerveja. A lenta caminhada só acabou ao reconhecer a calça que Rodrigo saíra na noite anterior. Uma perna fina e a mão ossuda e não teve dúvida, era ele. Apertou o passo e, de mansinho, como que temendo assustá-lo abraçou-o junto ao peito como quando oferecia o seio na primeira refeição da manhã, ainda bebê. Tirou o casaco e cobriu o dorso nu daquele ser fraco como um moribundo. Na noite anterior, Rodrigo saíra apressado penteando os cabelos negros dentro do carro, agora estavam sujos e desalinhados. Marlene repara nas costelas a mostra do antes musculoso aluno da academia de musculação. Ergueu o filho nos braços, somando as forças que a natureza dá as mães nestas horas e correu para o carro. Reconheceu a necessidade de atendimento médico. Ao retornar entre os edifícios, não encontrou mais ninguém, como se tudo que vira fosse apenas um pesadelo. O dia nublado e as trovoadas eram prenúncios de chuva grossa. O barulho dos automóveis e o burburinho dos trabalhadores abafaram o choro baixo do menino no colo. Na primeira vez que o recolhera das ruas, sentira fraquejar as forças e só colocou no automóvel com ajuda. Agora, o garoto estava extremamente magro e a mulher o transportou com facilidade. Rodrigo usava drogas desde os 15 anos, mas só há pouco fora descoberto. O rapaz está com 25 anos. As sete horas chegou ao Hospital da Asa Norte, gritando por atendimento. Rodrigo continuava desfalecido nos braços da mãe passava por um surto de uso de drogas. Estava em coma. Marlene reconhece que o filho não é único e está disposta a ajudá-lo e a quem mais necessite, neste caminho de busca da sanidade. Só espera que, no caso do filho, se conscientize. As seqüelas são irreversíveis e quanto mais cedo deixar o vício, mais chance terá de recuperar. O trabalho de Marlene para retirar das ruas jovens prisioneiros do vicio é arriscado mas compensador. Ela sabe que não é só o filho a precisar de ajuda. Diz que usa armas que incontestáveis: “amor no coração e afeto ao próximo” e complementa, “com estas ferramentas, nem traficante pode”. Pelo marido, viciado em álcool, diz não ter muito que fazer, “depende dele a vontade de parar (com a bebida) e fazer um tratamento”. “Filho é do meu sangue e devo cuidar”. O homem sabe o caminho, freqüenta os Alcoólatras Anônimos e está consciente da doença, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Marlene assume que para ajudar alguém, seja consangüíneo ou não, há que primeiro se ajudar. E cita o exemplo da Comissária de Bordo, que instrui os passageiros para o caso da despressurização da cabine. “Quando as máscaras de oxigênio caem, coloque primeiro a sua e depois ajude a quem tem dificuldade.” Ela é mais uma na infinidade de mães e pais que acompanham seus filhos na difícil jornada da recuperação das drogas. Freqüenta grupos de apoio e entende que a melhor forma de passar por seus lutos compulsórios é a prestação de serviços a comunidade. Pelo menos duas vezes por semana, dá palestras e participa de grupos de auto-ajuda. A mulher conseguiu uma legião de destemidos guardiães da vida. Nas noites de Brasília podem ser vistos rondando os locais de uso, as cracolândias, armados até os dentes com as armas que dominam: “abraços e beijos, coisa que mais falta ao usuário de drogas.”