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terça-feira, 22 de março de 2016

A PASSAGEM

(Crematório J. Metropolitano - Foto Google Imagens)
Eram cinco horas da manhã quando o telefone toca e a voz metálica informa que Hilton acabara de falecer. Com setenta e oito anos, expirou profundamente ouvido apenas pela enfermeira que, com sono leve, dormia na cama ao lado. Hilton estava exausto de resistir a quem lhe queria levar desde o início de janeiro. A resistência ao chamado só é explicada porque “...ninguém morre antes da hora”. Acabava assim a vida de imprevistos e caminhos inesperados, trilhados sem questionamentos.
Quando solteiro, fora alegre folião que, com sua fantasia colorida, brincava o carnaval em conhecido bloco carioca. Após o uso, guardava as alegorias cuidadosamente para o próximo ano. Hábito abandonado ao conhecer Cris. Com ela, viúva, quatro filhos de casamento anterior, iniciou a vida responsável, assumindo-os como seus. A nova família teve inúmeras dificuldades, o que não impediu de serem felizes por cinquenta anos.
Teve dedicação exemplar ao trabalho, mesmo em missões espinhosas. Trabalhos que renderam condecorações e medalhas, mas que custaram pesados prejuízos emocionais. Todas cumpridas com afinco até o fim, mesmo que conflitantes com sua índole. Em casa era pacato, rígido apenas na educação aos enteados que assumira como filhos.
Sete meses antes de sua morte, ficara viúvo inesperadamente. A morte de Cris desmontou o guerreiro e os planos de envelhecimento em companhia um do outro. Permanecera com os quatro filhos de Cris. A única enteada, cuidadosa com o padrasto, preparou o apartamento vizinho ao dela, para dar conforto. Mas Hilton tinha outros planos. Não queria incomodar os filhos da falecida Cris e, impulsionado pelo inexplicável e uma paixão recente, fora morar com a irmã e o marido, dez anos mais velhos que ele, em outra cidade, onde tinha planos de fixar residência com a nova companheira. Hilton trocou de cidade para morrer três meses depois, sem concretizar esse plano.
Foram sessenta dias hospitalizado, transferido duas vezes a UTI para tratamentos dolorosos.
Hilton perdeu a batalha. Na véspera, recebera a visita da irmã, do cunhado e do enteado mais jovem. Passaram assim momentos de despedidas, adivinhando o desfecho dali a poucas horas. Hilton os ignorava. Nada mais era importante. Na última semana estava reflexivo, solitário. Encapsulado. A função renal substituída pela hemodiálise.  A qualidade de vida o abandonara. A única recompensa foi o esticar do tempo de preparo a viagem final.
A enfermidade abortou os planos de casar e ter nova vida. Ao filho mais jovem, confidenciou no leito de morte: “gosto muito de minha namorada, mas quero mesmo é morrer e reencontrar tua mãe, minha Cris, meu grande amor”.

Os momentos finais da existência são dedicados aos resgates das relações. Hilton e os enteados perderam esse compasso no momento que ele trocou o Rio de Janeiro por Brasília. Ceifou-se a oportunidade de aparar arestas criadas ao longo das relações. Os enteados perderam a chance de cuidar do padrasto. Nas despedidas, na antessala do crematório, Carlos, um dos enteados, agradeceu ao falecido tudo que fez por ele e desejou “que vá com Deus”. O filho mais jovem, que o acompanhou aos últimos momentos, ainda em vida, fraquejou. Emocionado, manteve-se fora da sala, “sou fraco nesses momentos, no velório de mamãe foi a mesma coisa.” Seguiu o cortejo ao local de incineração, após o caixão fechado. Vilmondes, o terceiro filho que havia visitado o padrasto uma semana antes da morte, permaneceu na cidade onde mora. Estava abalado pelas cenas que assistiu no leito do hospital. Maria, a enteada, profundamente emocionada pelos acontecimentos viajou ao Templo de Nossa Senhora Aparecida em São Paulo de onde canalizou orações aos pais, “recém perdi mamãe e agora o papai, não tenho forças para viajar”, informou aos parentes. Ela, que contava apenas seis anos quando Cris e Hilton casaram, foi quem mais sofreu quando o pai resolveu trocar o Rio por Brasília. No final da vida, não poderia dar assistência ao homem que a mãe escolheu para ser seu padrasto.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

AMIZADE TEM LIMITES

(Google Imagens)

- Eram três da tarde quando cheguei ao apartamento de Zoraia.- conta Roberto enquanto senta na poltrona em frente ao amigo..
- Como a conheceu? – Pergunta Marinho. 
- Você não prestou atenção, mas tudo bem repito. Ainda casado e morando em São Paulo, diariamente Zoraia e eu corríamos no Ibirapuera pela manhã. Pura amizade. Um dia foi transferida para o Rio e montou apartamento no Leblon. Recebi o endereço por um torpedo e o convite para quando fosse ao Rio, visita-la. A chance apareceu quando separei da Maria. Precisava espairecer e aceitei a oferta. Agora entendeu? – perguntou Roberto.
- Claro, prossiga.
Se conheciam há mais de vinte anos e nada acontecia com um que o outro ignorasse.
- Pois bem, Zoraia abriu a porta vestida apenas com camisola vermelha e convidou a entrar. O apartamento era de quarto e sala, decorado com imitação de cabine de navio com janelas tipo escotilha de gesso branco.  A um canto, um timão de barco e luminária dourada completavam a decoração. Parecia incomodada ao me perceber medindo o apartamento e  ressaltou que avisara sobre o tamanho. Tive de dormir no sofá na sala. 
- Pensei que dormiriam na mesma cama, afinal, divorciados, nada os impediria. – Marinho sabia que o amigo não desperdiçaria a chance, principalmente se tratando de Zoraia, morena linda e disponível no mesmo teto.
- Já te falei que nunca tivemos nada, apenas aceitei o convite para hospedar. Precisava espairecer durante o período crítico da separação. Fazer o luto da convivência com Maria. Enquanto Zoraia trabalhava, eu caminhava na praia. 
- Ora, eu mereço, conta outra. Durante o dia, Zoraia trabalhava e você curtia praia. Ela chegava, deitava e dormia. Faça-me o favor – Marinho abriu uma ceveja e dividiu em dois copos.
Roberto prosseguiu.
- No sábado ao acordar, observei um pacote de baseados na mesa. Algo mais seria servido no apartamento naquele dia, além da cerveja na geladeira.  Arrumei minhas coisas e saí sem despedir. No caminho, encontrei um policial com cão farejador que me cheirou dos pés a cabeça e só me liberaram após o bicho interessar pelo cheiro do apartamento de Zoraia. De mansinho, ganhei a rua. Tomei o metrô e cá estou. Amanhã quero praia e até lá, abrigar na tua casa. 
Marinho percebeu a intensão do amigo de terminar as férias em sua casa e o encaminhou para o quarto vago. Ao passar pela cozinha, percebeu o olho comprido do amigo para a irmã e avisou:
- Se der em cima de Alice, te boto porta afora.