No dia do casamento de Laurinda, na volta da igreja, o pai comentou ao ouvido da mulher, “tudo que nossa filha desejava na vida era casar e realizou”. E iniciou comentários irônicos e risadas até chegarem ao portão de casa. Ao descer do taxi, a mãe indignada falou já brava, “cala a boca, Carlos, nossa filha é santa, Fred foi o primeiro namorado.” O taxista assustou com o gargalhar frenético do pai.
Os noivos alugaram um apartamento de quarto e sala em um bairro longe do centro da cidade e o rapaz, chaveiro num quiosque no centro da cidade, a partir da mudança passou a chegar a casa diariamente com a cara cheia de cachaça surrando a mulher que, passivamente, aceitava o fardo por entender que se o marido a ajudara a realizar o sonho do casamento, deveria suportar calada as mazelas impostas. Enfrentava o bafo de bebida na hora do amor e os tapas provenientes dos ciúmes exagerados do marido com a benevolência dos mártires. Enquanto isto, remoía as palavras do pai às vésperas do casamento, que advertia “ filha, está cega ao comportamento do rapaz, é um beberrão”.
A rotina diária pesou para a professora. Além de afazeres domésticos, preparo da comida, lavação de roupas e arrumação da casa, trabalhava quarenta horas em escola pública da periferia. A noite se desmanchava de amores ao marido que chegava insatisfeito, bêbado.
Planejou o primeiro filho a partir do aniversário de um ano de casados, com esperança do marido amainar a irreverência.
A barriga crescia e a moça constatou que o marido detestava crianças, passando a gestação inteira ameaçada de abortar. Com a proximidade do nascimento, o dinheiro ficou escasso e mudaram para a casa dos pais onde o marido entendeu ser desaforo morar no quarto nos fundos do quintal e exigiu que os sogros mudassem para lá, liberando a casa ao casal.
A gravidez adiou a rotina de sofrimentos e o marido parou de beber por obra e graça do pastor Bené, amigo de uma vizinha, que diariamente os visitava e rezava por bom parto e felicidade do casal.
Laurinda deu a luz uma menina loira como a mãe, mas no décimo mês de nascida, apresentou retardo no desenvolvimento. Uma vizinha que a acompanhava desde o nascimento, aconselhou a família a consultar um médico o quanto antes o qual, após exames, indicou cirurgia cerebral urgente. Após a terceira operação na cabeça da criança, com intervalos de seis meses, o médico desalentado adiantou que não via solução. Diagnosticou paralisia cerebral e previu que viveria somente até adolescência. Naquela noite Laurinda trancou-se no quarto e chorou copiosamente. Não tinha como dividir a tristeza e refletir sobre o que passara e ainda viria pela frente com o marido beberrão e a filha naquele estado.
A menina crescia dependente da mãe e da avó que agora ajudava com afinco nos cuidados com a neta, que as requisitava dia e noite a medida que o peso aumentava e apareciam sinais da adolescência como a menstruação.
Desgostoso com a situação, quando soube que a mulher ficara grávida pela segunda vez, arrumou as malas, aplicou a última surra nela, deu as costas e desapareceu. No meio de um inverno rigoroso, nasceu a criança e, com a ajuda do pastor Bené e de doações da comunidade, teve fôlego para seguir sua vida.
O parto da segunda filha foi esperado com apreensão, logo tranqüilizado pelo pediatra que diagnosticou uma criança saudável. Esta criança aliviou a rotina da casa e a alegria voltou. Passaram a ouvir novamente o radinho de pilhas que a moça ganhara quando solteira e as mulheres dançavam durante a faxina na velha casa de madeira, toda carcomida pelos cupins.
Quando a pequenina estava com sete anos, as vésperas de Natal correu a acordar o avô que descansava da preparação dos enfeites da noite anterior, e o encontrou mole e gelado. O velho faleceu dormindo de ataque cardíaco fulminante. Seis meses depois, a avó, deprimida após a morte do marido, amanheceu com falta de ar e acabou morrendo de pneumonia, deixando Laurinda a cuidar sozinha das meninas.
O prognóstico do médico com relação à filha doente demonstrou ser completamente errado e ela sobreviveu até a vida adulta, quando em uma gelada manhã, a menina parou de respirar devido a deformação no tórax que apertou o pulmão até asfixiá-la.
Com a morte da filha deficiente, Laurinda passou a ver o mundo de outra forma e procurou a filha mais nova para conversar. Receava que a idade com suas mazelas a impossibilitassem de contar detalhes da vida. No primeiro dia de conversas, fez a moça sentar no sofá rasgado da sala de jantar e iniciou o relato dizendo que o verdadeiro pai dela não era o constado no registro de nascimento. “Fred após o nascimento de tua irmã retornou a beber e, em represália, parei de manter relações sexuais com ele e assim permanecemos até ele sair de casa.
A moça ouvia a mãe atentamente. Laurinda queixou-se da rotina, acrescentando que isto a fazia alimentar fantasias e permissões, única forma de suportar a situação. Acendeu-se nela um fogo interno que minou a resistência ao pastor Bené que os visitava para orações as sextas feiras. No início, Fred participava, mas passou a desprezar e, como chegava bêbado, caía na cama e os deixava a sós. “Aos poucos, ganhamos confiança nas bebedeiras e passamos a namorar no sofá da sala, este mesmo que você está sentada”. A mãe suspirou fundo “confesso que aos poucos fomos nos descuidando”. Foi a cozinha buscar água para as duas e continuou o relato. Em uma noite tempestuosa, que o marido desmaiara na cama e ela e o pastor amaram-se esquecidos após a oração, Fred levantou no meio da noite e surpreendeu-os nus e abraçados.
Na verdade, Laurinda pensava em separar, mas as coisas a partir daí tomaram outro rumo e o marido saiu de casa. Na surra de despedida quase perdeu a criança. “Bené e eu continuamos a encontrar semanalmente e, quando você nasceu, não pode te registrar por ser casado. Procurei um cartório no interior e expliquei que seu pai desaparecera logo que engravidei e queria te registrar. Consegui com facilidade, desembolsando certa quantia ao escrivão. É por isso que na certidão consta o nome de Fred.
“Atualmente, teu pai, é pároco na igreja da Quintino Bocaiúva, mas não quero que o procure”.
A filha nem ouviu o último comentário da mãe. Saiu porta afora disposta a conhecer o pastor. Ao chegar à igreja, mal disfarçava a inquietude e perguntou pelo pai ao pastor que molhava as plantas.
“Bené faleceu há dois meses, moça, teve um mal súbito ao discutir com um bêbado que o procurou durante o culto”.
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