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sábado, 2 de julho de 2011

AVÔ PATERNO

(foto: Marco)


A última imagem de meu avô Alcino com saúde, contava quatorze anos. Ele estava de pijama na varanda da casa em frente ao Colégio Infante Don Henrique em Porto Alegre onde eu estudava. Diariamente, no recreio, deixava os colegas brincando no pátio e corria a visitá-lo. Nunca vira adultos de pijamas na rua. Ele os usava. Reconheço que faltava intimidade entre nós. Pudera, quando meus avós separaram era menino e perdemos nosso convívio.
Não recordo como descobri que morava em frente a escola. A partir daí passei a freqüentar a casa, ou melhor, a escada da varanda. Nunca entrei na residência.
Tinha um porte altivo, austero e sério. Profundas rugas marcavam a testa e o queixo proeminente, era rígido. Ao sorrir era franco e doce. A voz mansa, serena e rouca pelo uso de cigarro sem filtro.
Sentia-me orgulhoso de ter avô perto da escola. Dava-me vantagens em relação aos amigos. Uma delas é que a mulher com a qual vivia fazia biscoitinhos e bolos para eu provar.
Meu avô foi um homem inteligente. Militar reformado prematuramente por problemas de coração, certa vez mostrou-me um álbum com fotos antigas da carreira e poemas que escrevia. Extremamente sensível, escrevia poesias a companheira. Deixava-a mimada e amorosa. Antes dela, teve cinco amores. A todas amou e curtiu no devido tempo. A todas paparicou, rimou, dançou, musicou e cantou em prosa e verso. Apaixonado pela vida, permanecia na relação enquanto o amor aquecido. Quando insatisfeito primeiro adquiria um ar distante e depois arrumava a mala de couro e saia atrás de novos rumos.
Era inexperiente para entender meu avô. Crianças custam a entender os velhos. Guardava apenas o que dele diziam e o conhecia por imagens e descrições nem sempre fiéis.
Quando morava na rua Cristóvão Colombo no centro de Porto Alegre com minha avó, costumava chegar do quartel fardado com o pão embaixo do braço. Ao entrar, fingia tropeçar e jogava o pão para o alto. Minha avó, sabedora da brincadeira, pegava-o no ar e fingia zangar. Custei a acreditar que as brincadeiras eram sob efeito de álcool consumido antes de chegar em casa. Um dia arrumou as roupas na pequena mala e mudou de residência. Assim tomei conhecimento da primeira separação de casais. Muitas outras testemunharia, mas era cedo para saber.
Após a separação, o pai e meus tios nunca mais o procuraram. Julgavam inadmissível o “abandono” a vó. Filhos não aceitam a separação dos pais. Querem-nos juntos independente de estarem felizes. Não falo de pais que abandonam a mulher e os filhos a própria sorte e sim de homens e mulheres que buscam satisfação em outras relações.
Eu ficava na varanda, meu avô dentro de casa. Nos olhávamos tímidos. Examináva-nos. O velho querendo perguntar, com receio do neto desconhecido. O neto temeroso de ofender o velho circunspecto. Tínhamos receio um do outro. Éramos estranhos, apesar do mesmo sangue. Nosso silêncio falava tudo. Nos fazia cúmplices. Sabíamos quase nada, o que não era importante. Ele silenciava a perscrutar o futuro da descendência. Eu tentava enquadrá-lo na imagem dos relatos. Poucas palavras cheias de significados.
Com o tempo, fomos rareando os encontros. Eu preocupado com a juventude e estudos e ele com a velhice e reflexões. Vez por outra, abanava ao avistá-lo na janela. Com a visão fraca, não me distinguia dos outros.
Algumas ocasiões, a janela permanecia fechada até que não mais abriu.
Passaram alguns anos e certa vez mãe me chamou para o visitarmos no hospital. Arfava buscando ar em cima da cama de lençóis brancos. Ao nos ver impacientou-se, queria falar, a máscara de oxigênio tapava a boca. O fumo fizera o estrago necessário para levá-lo.
Desconheci o avô em cima da cama com lençóis brancos. A mulher o acompanhava. Meu pai fora avisado, mas morava no interior e não pode chegar em tempo. Meus tios eram indiferentes. Alcino jazia na maca, num mundo que rotula, julga e condena. O homem forte, o brincalhão que jogava o pão para o alto, jazia desamparado no leito. Sucumbira a noticia da morte de minha vó. Os filhos não o avisaram. Descobri que desgosto mata.
As gerações se sucedem e hoje entendo a imagem cunhada e deturpada com a ótica da injustiça.
Fiquei com sua herança. Cadernos de poesias, anotações diversas e alguns objetos pessoais. E cartas, muitas. A mala encardida usada pela vida afora carregada de esperanças, descartei.

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