(Google Imagens) |
Às
dezessete horas chega Nicanor ao enterro do amigo. Ainda fora da capela, pede licença
e abre caminho entre alguns conhecidos. Entra na sala mortuária e procura o
corpo como se conhecer o dito cujo garantisse salvo conduto de permanência. Rodeavam
o falecido coberto com flores, os filhos e alguns amigos comuns que o
cumprimentaram com sorrisos breves e acenos de cabeça. Os de pé olhavam para o esquife.
Os sentados conversavam animadamente sobre o julgamento das ações do mensalão
pelo STF. Ao fundo, com cara de quem chorou a noite toda a viúva que, reconhecendo
o recém-chegado, se aproxima cordial e afetuosa.
–
Olá, há quanto tempo – falou a mulher estendendo a mão. – Já chorei muito, mas
não de pena, de raiva mesmo – ciente do rosto inchado e sem maquiagem.
–
Olá. – respondeu o recém-chegado perplexo pelo comentário – Cerca de trinta anos
que não nos vemos. – E referindo-se ao morto – Agora descansará em paz, a
doença o pegou em cheio. Fiquei sabendo.
–
É mesmo, ficou com braços e pernas muito finos, só pele e osso. Soube que
voltou para casa há uns seis meses? – Fez uma pausa para ver a reação. – Foi
para morrer e tratei-o da melhor forma. Na verdade nem merecia este cachorro. –
e olhou firme para o defunto, como querendo que ouvisse o comentário raivoso. –
A gente tem que relevar, mortos são indefesos – Resignou-se.
Nicanor espantou com a sinceridade da mulher e preferiu
não alimentar a discussão. A amizade de quarenta anos andava meio apartada
ultimamente e percebeu que pouco sabia da vida do amigo. Tentou aproximar
quando soube da doença, mas recebeu de Mateus um esfriamento cheio de desculpas
esfarrapadas. O amigo vivia recluso e sem amigos.
Certa
vez foi visitá-lo no sítio na região rural onde vivia há seis anos, localizado a
cerca de 50 kilômetros da cidade. Encontrou-o depressivo, cabisbaixo e
embriagado. Percebeu o livro aberto de Platão, o cd Nova Era e a garrafa de
uísque vazia sobre a pequena mesa com o tampo rachado. Passou a mão e sentiu-a
grossa de poeira. Naquele dia entendeu que
algo andava errado, pois Mateus desconsiderou a presença. Nicanor, que foi
visitar o amigo, saiu da casa da mesma forma que entrou, sem ser percebido. Um
ano depois, cá estava, testemunha do sepultamento.
Os filhos se aproximaram com pálpebras inchadas.
– Quem é mãe? – pergunta o rapaz.
– O Nicanor, amigo de longa data de seu pai.
Cumprimentam Nicanor com aperto de mão e voltam para
junto ao defunto. A menina rearranja as flores que cobrem o pai.
– Você que foi grande amigo, pode responder algo íntimo
sobre Mateus? – A mulher olha firme para o rosto do amigo e espreita a
qualidade da resposta. Nicanor percebe o forte interesse e fala com a maior
sinceridade que pode demonstrar.
– Claro, nada tenho a esconder, pelo menos de quando
éramos chegados. Quantos churrascos fizemos juntos, lembra? – Referia-se
Nicanor há mais de quarenta anos, quando recém-formados, faziam piqueniques em
cachoeiras nos arredores da cidade.
– Então, – começa a mulher, baixando mais ainda o tom de
voz, para garantir não ser ouvida – você acha que Mateus pode ter sido
homossexual? Já li sobre isto e é mais comum do que se imagina.
Nicanor se apruma, pigarreia e percebe de soslaio a
mulher muito séria, demonstrando claramente a curiosidade feminina. Certifica-se
que ninguém escuta e fica desconfortável ao rever o rosto indiferente no
caixão.
Ao
perceber o desconforto, a viúva insiste com revelações íntimas.
– Pergunto isto, pois sempre falou que detestava sexo e
além disso nunca deixou pistas sobre amantes.
Amigo
de Mateus de outra época, nunca percebeu Mateus em situação que pudesse afirmar
tal coisa. Achou foi estranha a pergunta. Até que se fosse outro dia, quem sabe
pudesse soar diferente, no entanto na hora do enterro foi pego de surpresa.
Lembrava que em algumas ocasiões viajaram juntos, mas não recordava atitudes
que definissem a preferência. É bem verdade que nunca o vira em farra com
mulheres, como o próprio Nicanor costumava fazer, mas daí a defini-lo como
gostando disto ou daquilo a distância era grande.
A
viúva continuava martelando sem folga.
– Eu sou de carne e osso e tive minhas necessidades na
juventude sempre fui chegada nas coisas
sexuais e ele detestava, definia como coisa suja – continuava – Certa vez
propôs que arranjasse amante, desde que de bom nível, para mim. Olha que coisa
nojenta. Não sou destas bandalheiras.
Alguém de preto se aproxima e salva o embaraço.
– Senhora, posso fechar o caixão para levar o falecido? Temos
horário a cumprir.
A mulher faz que sim com a cabeça e é envolvida pela tensão.
Os presentes se perfilam numa oração de encomenda guiados por sacerdote
devidamente paramentado.
Nicanor aproveita o momento de distração e se afasta em
princípio devagar e depois apressado sai da sala e ganha a rua. Entra no carro
e fica satisfeito de ter colocado película escura nos vidros, escondendo-se
convenientemente da situação.
– Foi bom ter permanecido aqui, a mulher desconfia há
muito tempo. Chega a pensar que Mateus era homossexual. – Comenta com a pessoa
que o esperou dentro do carro.
– Nossa relação morreu com sua morte. – oferece bala de
café a Nicanor.
Os
dois esperam em silêncio dentro do carro com os vidros fechados. Um rapaz se aproxima,
abre a porta e senta no banco de trás.
–
Papai descansou mãe. Estava com aspecto sereno. – fala com carinho – Me acharam
parecido com ele. – Sorri.
– Meu
filho, ninguém deve saber que era seu pai. Ao se referir a Mateus trate de mencionar
como amigo. – E virando-se – Nicanor vamos para casa. Quero preparar a janta e,
para acompanhar, aquele vinho que ganhamos no Natal.
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