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domingo, 12 de agosto de 2012

NEM DEPOIS DA MORTE

(Google Imagens)

Às dezessete horas chega Nicanor ao enterro do amigo. Ainda fora da capela, pede licença e abre caminho entre alguns conhecidos. Entra na sala mortuária e procura o corpo como se conhecer o dito cujo garantisse salvo conduto de permanência. Rodeavam o falecido coberto com flores, os filhos e alguns amigos comuns que o cumprimentaram com sorrisos breves e acenos de cabeça. Os de pé olhavam para o esquife. Os sentados conversavam animadamente sobre o julgamento das ações do mensalão pelo STF. Ao fundo, com cara de quem chorou a noite toda a viúva que, reconhecendo o recém-chegado, se aproxima cordial e afetuosa.
– Olá, há quanto tempo – falou a mulher estendendo a mão. – Já chorei muito, mas não de pena, de raiva mesmo – ciente do rosto inchado e sem maquiagem.
– Olá. – respondeu o recém-chegado perplexo pelo comentário – Cerca de trinta anos que não nos vemos. – E referindo-se ao morto – Agora descansará em paz, a doença o pegou em cheio. Fiquei sabendo.
– É mesmo, ficou com braços e pernas muito finos, só pele e osso. Soube que voltou para casa há uns seis meses? – Fez uma pausa para ver a reação. – Foi para morrer e tratei-o da melhor forma. Na verdade nem merecia este cachorro. – e olhou firme para o defunto, como querendo que ouvisse o comentário raivoso. – A gente tem que relevar, mortos são indefesos – Resignou-se.
            Nicanor espantou com a sinceridade da mulher e preferiu não alimentar a discussão. A amizade de quarenta anos andava meio apartada ultimamente e percebeu que pouco sabia da vida do amigo. Tentou aproximar quando soube da doença, mas recebeu de Mateus um esfriamento cheio de desculpas esfarrapadas. O amigo vivia recluso e sem amigos.
Certa vez foi visitá-lo no sítio na região rural onde vivia há seis anos, localizado a cerca de 50 kilômetros da cidade. Encontrou-o depressivo, cabisbaixo e embriagado. Percebeu o livro aberto de Platão, o cd Nova Era e a garrafa de uísque vazia sobre a pequena mesa com o tampo rachado. Passou a mão e sentiu-a grossa de poeira.  Naquele dia entendeu que algo andava errado, pois Mateus desconsiderou a presença. Nicanor, que foi visitar o amigo, saiu da casa da mesma forma que entrou, sem ser percebido. Um ano depois, cá estava, testemunha do sepultamento.
            Os filhos se aproximaram com pálpebras inchadas.
            – Quem é mãe? – pergunta o rapaz.
            – O Nicanor, amigo de longa data de seu pai.
            Cumprimentam Nicanor com aperto de mão e voltam para junto ao defunto. A menina rearranja as flores que cobrem o pai.
            – Você que foi grande amigo, pode responder algo íntimo sobre Mateus? – A mulher olha firme para o rosto do amigo e espreita a qualidade da resposta. Nicanor percebe o forte interesse e fala com a maior sinceridade que pode demonstrar.
            – Claro, nada tenho a esconder, pelo menos de quando éramos chegados. Quantos churrascos fizemos juntos, lembra? – Referia-se Nicanor há mais de quarenta anos, quando recém-formados, faziam piqueniques em cachoeiras nos arredores da cidade.
            – Então, – começa a mulher, baixando mais ainda o tom de voz, para garantir não ser ouvida – você acha que Mateus pode ter sido homossexual? Já li sobre isto e é mais comum do que se imagina.
            Nicanor se apruma, pigarreia e percebe de soslaio a mulher muito séria, demonstrando claramente a curiosidade feminina. Certifica-se que ninguém escuta e fica desconfortável ao rever o rosto indiferente no caixão.
Ao perceber o desconforto, a viúva insiste com revelações íntimas.
            – Pergunto isto, pois sempre falou que detestava sexo e além disso nunca deixou pistas sobre amantes.       
Amigo de Mateus de outra época, nunca percebeu Mateus em situação que pudesse afirmar tal coisa. Achou foi estranha a pergunta. Até que se fosse outro dia, quem sabe pudesse soar diferente, no entanto na hora do enterro foi pego de surpresa. Lembrava que em algumas ocasiões viajaram juntos, mas não recordava atitudes que definissem a preferência. É bem verdade que nunca o vira em farra com mulheres, como o próprio Nicanor costumava fazer, mas daí a defini-lo como gostando disto ou daquilo a distância era grande.
A viúva continuava martelando sem folga.
            – Eu sou de carne e osso e tive minhas necessidades na juventude sempre fui  chegada nas coisas sexuais e ele detestava, definia como coisa suja – continuava – Certa vez propôs que arranjasse amante, desde que de bom nível, para mim. Olha que coisa nojenta. Não sou destas bandalheiras.
            Alguém de preto se aproxima e salva o embaraço.
            – Senhora, posso fechar o caixão para levar o falecido? Temos horário a cumprir.
            A mulher faz que sim com a cabeça e é envolvida pela tensão. Os presentes se perfilam numa oração de encomenda guiados por sacerdote devidamente paramentado.
            Nicanor aproveita o momento de distração e se afasta em princípio devagar e depois apressado sai da sala e ganha a rua. Entra no carro e fica satisfeito de ter colocado película escura nos vidros, escondendo-se convenientemente da situação.
            – Foi bom ter permanecido aqui, a mulher desconfia há muito tempo. Chega a pensar que Mateus era homossexual. – Comenta com a pessoa que o esperou dentro do carro.
            – Nossa relação morreu com sua morte. – oferece bala de café a Nicanor.
Os dois esperam em silêncio dentro do carro com os vidros fechados. Um rapaz se aproxima, abre a porta e senta no banco de trás.
– Papai descansou mãe. Estava com aspecto sereno. – fala com carinho – Me acharam parecido com ele. – Sorri.
– Meu filho, ninguém deve saber que era seu pai. Ao se referir a Mateus trate de mencionar como amigo. – E virando-se – Nicanor vamos para casa. Quero preparar a janta e, para acompanhar, aquele vinho que ganhamos no Natal.

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