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terça-feira, 22 de maio de 2018

O DESLIZE

<Foto do Google>
A jovem confere o endereço com a placa da esquina. Rua Bonifácio Andrade, 525. A descrição confirma. Casa de madeira azul, janelas e portas marrons, pequena varanda com duas cadeiras de vime. Percebe o papagaio no poleiro da parede lateral. Um vaso com rosas vermelhas fora colocado ao pé da escada de cimento.
Deposita a mala ao chão, com a mochila em cima e toca a campainha. Após pequena demora, pensa em apertar novamente. O leve movimento da cortina da janela, deixa a  mostra, mesmo que rapidamente, um rosto de mulher. Finge não perceber e imagina que a casa abriga pessoas amáveis, de fácil relacionamento. O papagaio grita algo imperceptível e a porta abre, por onde surge uma sorridente mulher de meia idade com cabelos presos num rabo de cavalo.
As duas se analisam. A dona da casa aproxima com a chave do portão. A visitante se desconcerta frente a dona de casa e esvanece o que havia pensado em dizer. Treinara meticulosamente mas esquecera tudo.
— Boa tarde — A mulher nota o embaraço e estende a mão à recém-chegada — meu nome é Izabel. O que deseja? Entre!
A jovem pensa em dizer que a conhecia de nome mas fica calada. Coloca a mochila nas costas e pega a mala. A dona da casa afasta-se e a moça segue o curto caminho de pedras irregulares. Sobe os três degraus e entra. A sala pequena, de mobília antiga, arrumada com esmero exalava leve perfume de odorizador ambiental.
— Meu nome é Alice. Posso sentar? — Pergunta.
— Sim, claro. Procura por alguém? — Insiste.
— Nem sei por onde começar — A pausa espanta a anfitriã. — Sou de Nonoai. Cheguei a Porto Alegre ontem e procurei por uma tia, irmã de minha mãe, mas mudou de endereço, disse distraída, coçando o pelo do gato preto que deitara em seu colo.
— Entendi. Vou fazer um café, fique com a Salomé, fará sala a você. — Isabel retira-se para a cozinha, deixando-a com a gata no colo.
O silêncio é quebrado, quando o portão da garagem abre com estardalhaço. A moça assusta e pensa em sair porta afora e terminar com aquilo. Diferentemente, decide levar o caso até o fim. O motor do carro é desligado e o silêncio volta a dominar o ambiente, cortado pelo sussurro da mulher que  conta algo imperceptível a alguém. Como resposta, o sussurro masculino. Mais alguns instantes, a mulher retorna com bandeja de café e biscoitos. Atrás, um homem franzino, se movimenta silenciosamente. A mulher senta, ele se posiciona ao lado.
A jovem procura na memória a descrição feita pela mãe. Teve certeza. Era ele.
— Essa moça procura a tia. Você é taxista, pode ajudá-la — e dirigindo-se a moça — Esse é Francisco, meu marido. A levará de volta a rodoviária. A passagem, pagaremos.  Estou fazendo o almoço, você irá após alimentar. Dá licença. — E sai deixando a moça com a xícara na mão e o homem em pé ao lado da poltrona vazia. A gata segue a mulher.
— Como encontrou o endereço? — pergunta o homem com voz baixa.
— Mamãe deu antes de entrar na sala de cirurgia. — responde também sussurrando — Disse que se acontecesse algo, era para procurar você. Ela morreu.
O homem desmonta sentado no sofá. Os cotovelos apoiados nos joelhos, os olhos cravados no chão. Ao levantar a cabeça, visualiza Izabel a sua frente. Na mão, o cabo de vassoura desce sobre sua testa e provoca um filete de sangue.
— Eu sabia que essa menina tinha história para contar. Cretino. Salafrário. Não tem vergonha? — vocifera e baixa o cabo de vassoura sobre o marido. Franzino, se defende como pode.
— Desembucha infeliz, quem é você? — grita para Alice que se encolhe num canto da sala. — qual tua idade?
— Tenho 20 anos. — grita a moça e baixa a cabeça. Espera que o ambiente fique mais calmo e, olhando para o chão, começa com voz trêmula — Mamãe conheceu Francisco durante a lua de mel de vocês. Ela era camareira no hotel. — levanta firmemente o olhar e vê a fotografia de casamento na estante, em frente ao hotel em Nonoai.
— Não é bem assim, Izabel... — Francisco tentou se explicar.
— Cala a boca, safado — grita a mulher. — Você não tem vez. Ouça a menina.
  — Nasci nove meses depois — Continua Alice — Papai ajudava financeiramente e aparecia todo mês para visitar mamãe  — tomou um gole de café e continuou — Nos ajuda para meus estudos e alimentação.
— Então essa é a explicação para o cliente que levava a Nonoai toda semana? — Izabel chispa os olhos em Francisco.
Quantos sacrifícios haviam passado com o dinheiro escasso. O marido a convencera a evitar filhos, alegava como motivo seus ganhos apertados como motorista. Eram casados há 21 anos, fizera dois abortos e agora essa historia. Alcança um pano para o marido enxugar o sangue. Compara pai e filha e constata que ambos têm nariz e olhos semelhantes. Izabel percebe que a moça estava decidida. Veio para ficar e conclui que a vida se transformará.
— Vamos lá, Alice, irei preparar seu quartinho nos fundos. Preciso mesmo de alguém para fazer serviços de casa. Traga a bandeja de café para  a cozinha — e complementa decidida — aqui não há espaço para ficar sem fazer nada. É estudar a noite e trabalhar de dia. Outra coisa importante — olha furtivamente para os lados, como para ninguém ouvir e baixa o tom de voz — ninguém saberá que Francisco é seu pai. Terá que tratá-lo com cerimônia de empregador.
Alice encara o pai que baixa a cabeça.

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