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segunda-feira, 11 de abril de 2016

VITÓRIO

(Google Imagens)
Ao receber o oficio de apresentação para assumir uma paróquia no Brasil, Vitório fraquejou, os olhos marejaram. Monsenhor Giuseppe Baggio, chefe da Missão Sacerdotal da Santa Sé para o Brasil, entregou o documento e o mirou firme, “você foi avisado que após os estudos sacerdotais, serviria em terra distante com missão de dedicar sua vida a comunidade, fortalecendo os dogmas da santa madre igreja”. Vitório baixou a cabeça, fez reverência dobrando o joelho esquerdo e retirou-se sem dar as costas. Olhou demoradamente o mapa-múndi da entrada do seminário São Francisco de Assis, onde estudara por seis anos. Cravou um alfinete em Palmas no interior do Paraná outro em Roma. Com um barbante avaliou a distância. Mais tarde recolhido ao quarto, ajoelhado em frente a imagem de Santo Agostinho, alternou orações e lágrimas.
O navio sairia em três dias. Seriam quarenta de viagem por mares tormentosos, segundo relatos de viajantes. Mirou o céu. Um pássaro voava nas alturas. Imaginou um meio de transporte rápido e seguro, que voe como as aves, que faça a travessia em menos tempo.
Arrumou duas malas grandes com roupas. Livros e exemplares da Bíblia destinadas aos párocos novatos armazenou em caixa de madeira e lacrou. Despediu demoradamente dos pais, cientes das dificuldades da missão do filho único na terra distante.
O apito forte e triste desperta Vitório de pensamentos profundos. O navio se afasta do porto lentamente. Abana aos pais até se tornarem um ponto minúsculo no horizonte. A viagem, diferente das previsões do tempo, começou melancólica, mas logo no segundo dia, enfrentou tormentas fortíssimas quando chegou em alto mar. Ora eram dias turbulentos e noites calmas, ora ao contrário. Uma febre, proveniente de alimentos mal conservados, dizimou metade dos tripulantes e passageiros. Vitório pode assim iniciar a missão sacerdotal encomendando as almas dos mortos, o que causava profundo pesar. Após quarenta dias, o navio chega ao porto do Rio de Janeiro. Dez quilos mais magro, Vitório é levado a um hospital, onde passa três semanas se tratando e após alta, cumpre estágio no seminário São José. Assim, reinicia a segunda e última parte da odisseia. Quinze dias até Palmas, vilarejo com cerca de três mil habitantes a 1.300 metros acima do nível do mar.
Depois de se apresentar ao diácono local e ao prefeito, é encaminhado a paróquia, onde esperava Maria dos Anjos. Morena da cor de canela, cabelos e olhos negros, era descendente de índios caingangues. O rapaz ficou impressionado pela cor da pele da pequena índia. Olharam-se longamente, percebido pelo diácono que tossiu com força e os tirou do transe. Mas o destino já se definia. Os olhos azuis da cor do mediterrâneo do bonito sacerdote de vinte e cinco anos, ao pousarem na moça, irradiaram o calafrio dos apaixonados. Naquela noite nenhum dos dois dormiu. Cada um em seus aposentos, passaram por intensos suores e sonhos. O padre acordava seguidamente em pensamentos que teimavam afastá-lo da missão sacerdotal.
Amanheceu com fortes dores no ventre. Mal ouviu a batida na porta. Abotoou a roupa de dormir, abriu o alojamento e foi dominado por uma alegria indisfarçada. Era Maria adornada pelos raios amarelos do sol. O homem, que passara a noite acordado pensando na indiazinha, foi ofuscado pelo auge dos dezoito anos da moça, viçosa e pura. O desejo que dominou o rapaz se definia mais forte que a resistência. Pegou-a suavemente pela cintura e puxou-a para dentro do quarto. Naquele instante, pressentiu que a cidade continuaria sem vigário. Amaram-se com a paixão de quem pouco conhece do sentimento, mas com a certeza que tudo mudaria em suas vidas.
Nos dias seguintes, Vitório tentou seguir a missão paroquial, organizando as missas, mas sucumbiu. Mudou para os fundos da  casa do diácono e levou Maria. O restante foi uma sucessão de acontecimentos que culminaram no pedido de licença ao Vaticano. O quase vigário entregou a missão a outro.
Mas a situação para os jovens estava longe de ser fácil. Maria logo ficaria grávida e Vitório teve que colocar em prática toda sua criatividade para sustentar  a família.
Procurou exercitar os ofícios que aprendera em seus tempos na Itália. Lembrou-se do avô, ator de teatro. Com a participação da prefeitura, montou o primeiro teatro da cidade, atividade aprendida com o avô materno. Passou a Escrever as peças, encenar e treinar os artistas. Como sobrava tempo e ainda faltavam recursos, montou o cinema de Palmas, onde exibia filmes de produtora europeia. Mas as películas mudas o inquietavam e um dia, após viagem a terra natal para apresentar a mulher aos pais, teve a ideia de importar um piano. Incumbiu Maria de aprender a tocar e em pouco tempo, auxiliada pela mulher do diácono, se tornou expert e ficou conhecida como a primeira executora de trilhas sonoras de filmes mudos exibidos no interior paranaense.  Maria ajudava muito Vitorio nas iniciativas. Treinava piano por horas e ainda teve tempo de criar os onze filhos do casal.  Vitório morreu antes de ver o terceiro sonho realizado, um hotel de três andares. Só acompanhou até a construção do segundo. Um dia amanheceu com dores nas costas e febre. Removido as pressas a um hospital de Curitiba, faleceu de pneumonia. Deixou Maria com onze filhos e as lembranças de uma união de vinte anos.
Do legado de Vicente, nada vingou. A viúva pouco sabia de negócios e foi perdendo os bens. Dois filhos de Vicente foram viver na Itália, aproveitando a dupla nacionalidade. Os demais se dividiram entre a capital do estado e a cidade natal, onde vive Maria e as recordações.