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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A DESPEDIDA

Arquivo pessoal
 Estava linda. Tão linda que mais parecia uma boneca de porcelana. A pele branca exibia coloração avermelhada pelo frio intenso na ponte de madeira sobre o pequeno córrego. Esticou a gola do casaco para proteger o pescoço. O sítio era refúgio para finais de semana do intenso trabalho na cidade. Ali montei ateliê de pintura, meu hobby predileto e a miniatura da biblioteca que tinha no escritório.
Sara permanecia imóvel debruçada sobre o parapeito. Olhava a água que corria forte. Vez por outra jogava uma folha ou filtro de cigarro. Nas águas turvas, as últimas chuvas arrastavam objetos pelo riacho e os levavam ao rio. Em alta velocidade, passavam caixas de papelão, latas de cerveja e refrigerante. Peguei suas mãos geladas e as protegi entre as minhas. Olhou-me sem emoção e as retirou.
Havíamos discutido. Eu pedira o divórcio. Há algum tempo percebia que sua cumplicidade pairava com outra pessoa. Ela negava com veemência. Chorara para permanecermos juntos. Ao mesmo tempo, reconhecia pelos movimentos dos últimos dias, que eu sabia mais do que demonstrava. A convivência alcançara limites inaceitáveis. Anos mais tarde, concluí que, se naquele momento, ela tivesse assumido nosso casamento e se declarado disposta a sacrificar a relação para ficarmos juntos, teria cedido. O intolerável era manter a mentira, declarando ser tudo fruto da imaginação.
Sara parecia menina com olhos encharcados e vermelhos. Era a personificação da inocência, o que a deixava mais desamparada. Detesto admitir esse sentimento, mas, naquele momento, estava com pena dela.
Peguei-a pelo braço e a levei ao carro. Ao abrir a porta, livrou-se de minha mão, sentou no banco e bateu a porta, balançando o veículo. Nossa amizade, temia, estava por um fio. Saímos a rodar pela cidade e peguei um retorno para a rodovia federal. Sem destino, liguei o aquecedor e tiramos os casacos. Propus almoçarmos em uma pequena cidade turística do interior. Aceitou dando de ombros. Se pouco conversamos durante o trajeto de ida, na volta, após o almoço, nenhuma palavra.
Assumi que não havia mais nada a tratar. Deixei Sara em casa. Desceu sem se despedir, com o carro em movimento. Saí disposto a não voltar. Considerava terminada a relação. Eram dez horas da noite, quando entrei na loja de conveniência do posto de gasolina. Pedi um uísque duplo e a partir daí só lembro de perceber onde estava ao desligar o carro e ser recebido por meu cachorro no sitio. Abri a porta, fui à cozinha tomar água e desabei na cama.
No dia seguinte, despertei com forte dor de cabeça. Exagerara na bebida. A buzina da moto do carteiro levantou-me da cama mais cedo do que pretendia. Abri o portão ainda com a roupa amassada do dia anterior. Era carta registrada. Remetente, Sara. Dei um troco ao rapaz, agradeci e entrei abrindo o envelope amassado.
Folheei as páginas antes de ler. A escrita começa firme, mas a partir da metade ficava tremida e borrada. Percebi leve perfume conhecido.
Contei vinte duas páginas, o que me fez acreditar ter sido escrita antes da conversa sobre divórcio. Talvez tenha sido a leitura mais difícil que fiz na vida. Fazia um retrospecto de nossa vida em comum. Falava do namoro, seguia pelo período de noivado, casamento, férias anuais, nascimento dos filhos. Descrevia como eu adivinhava seus pensamentos, os desejos mais íntimos. Pressentia nas entrelinhas certa melancolia. Final dolorido de algo importante. Imaginei como fora desconfortável escrever. Na última página, a escrita fraquejou. Parecia difícil seguir as linhas. Após desfiar nossa história, confessou que apesar de me amar, eu tinha razão, envolvera-se com outra pessoa. Minhas constantes viagens para melhorar os ganhos financeiros, só contribuíram para sedimentar a relação entre eles. Um colega de trabalho casado, divorciado, cuja mulher, indignada deixara os filhos menores para que criasse. Sara deveria assumir os pequenos enteados. Demonstrou receio por assumir incumbência pesada com tão pouca idade.
Despediu-se declarando amor por toda vida, independente de onde estivesse.