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terça-feira, 4 de agosto de 2015

AMOR MAIOR

(Google Imagens)
Os primeiros tempos após a morte dele foram estranhos. Transformaram-me em uma pessoa com um vazio no peito impossível de suprir. Sentimento inexplicável que me assolou por anos, com a dubiedade entre recordar os tempos que vivemos juntos e a dor de aceitar o imponderável.
Minha criação foi rígida, diluída entre cinco irmãos a obedecerem cegamente à mãe autoritária que surrava ao menor sinal de insubordinação. Meu pai era alcoólatra inofensivo. Costumava chegar alegre em casa e acordava todos com gritos de “hora de levantar preguiçosos”. Católica fervorosa, para a mãe tudo era pecado. Na idade adulta, continuei casta, nervosa e sonhadora.
Meus estudos de primeiro e segundo graus aconteceram no semi-internato em colégio de freiras. Passava os finais de semana triste em casa. O trabalho duro me esperava como recompensa ao estudo dedicado. A escola representava o oásis de uma vida plena de limitações emocionais. Era a melhor aluna, a responsável pela oração antes do almoço.
Anos mais tarde senti falta disso. Minha mãe alegou que estava sobrecarregada e me tirou da escola. Fiquei confinada, ajudando na criação dos irmãos. Preparava as refeições, fazia faxina, lavava louça e era responsável pela irmã mais nova, pronta a ampará-la nas crises de bronquite.
No ano em que completei vinte e oito anos, mãe me mandou acompanhar meus irmãos á quermesse da igreja; que me lembre a única festa que frequentei. Aquele evento representou muito, pois nele nos conhecemos. Conversamos pouco, menos de dez minutos, porém, o suficiente para provocar esquentamento tão avassalador que nunca mais fui a mesma. O encontro com aquele homem deu outro sentido em minha vida. Naquela noite e nas seguintes, ao deitar, custava a adormecer. Sentia um calor intenso no ventre sem entender o que era. Os pensamentos voavam pelos telhados, só repousavam ao encontrá-lo. Houve noites que acordava com a sensação da barba dele espetando. Nos afazeres domésticos, quebrava pratos ao lavar louça, esquecia alimentos torrando no fogo, errava o tempero.
Nossa relação iniciou rápida como exige o amor, graças a uma atitude intempestiva de minha mãe. Ao me surpreender com a boca torneada de batom, obrigou-me a tirar a roupa e surrou-me sem dó. Nesse dia, corri a ele. Sem perceber o estado de embriaguez, deixei-me amparar pelo homem amável e atencioso. Fiquei tão a vontade que entreguei a ele a virgindade.
Do momento em que nos conhecemos, até morarmos juntos, o tempo foi curto. Primeiro passei a frequentar sua casa todas as tardes, nos horários da missa. Confesso que junto ao homem alegre ao me receber, havia forte odor de bebida, o mesmo cheiro de meu pai. Nada mais importava. A casa era simples. Em vez de fogão, um fogareiro, e as cortinas eram surradas, de chitão vermelho de mesmo tecido da toalha de mesa. Morava só, vivia em meio à desorganização. Tudo era novidade para mim, transformava dores em felicidade. Dei minha arrumação geral, organizei tudo e mudei. Mãe tentou argumentar, mas estava surda para as argumentações. Rancorosa, rogou praga, balançou a cabeça, por fim, me expulsou de casa. Peguei sacola de roupas e corri para morar com o homem da minha vida. Com a felicidade que sentia nem suas constantes bebedeiras esmoreciam meu amor.
Com ele conheci outro lado da vida, aprendi que finalmente entrava, mesmo que tardiamente, no compasso certo. Nossa vida era uma poesia da qual tirávamos estrofes de todos os acontecimentos. Seu costume de chegar tarde embriagado, não afetava nossa relação. Trazia sempre um papel de pão com versos apaixonados para recitar. O amor que sentia era infinito. E ele me fazia sentir uma deusa. Vivia totalmente dedicada à casa.
Foram os melhores anos de minha vida. Ele me respeitava e conheci seus amigos seresteiros com os quais amanhecia a cantar e tocar violão. Após sete anos nessa vida de sonho, falei que estava em suas mãos a decisão de termos um filho. A reação foi inesperada, pela primeira vez discutimos muito. Dias depois, acordei só. Meu amor desaparecera.
Continuei a receber noticias esparsas dos amigos. Que casara, tivera quatro filhos. E hoje pela manhã, que morrera.
Tentei ir ao enterro, mas cadê coragem. Andei sem rumo até acalmar e chegar em casa. Meu marido, monge budista, medita na sala com ruído gutural. Espero terminar, nos beijamos no rosto. Como nunca bebeu nem fumou, percebe o hálito de aguardente. Nada comenta. Falo uma desculpa qualquer e vou para o quarto. Olho meu semblante no espelho da penteadeira. Ao ouvir passos no corredor, deito e finjo dormir.
Pensava no rosto de meu amado com semblante sereno deitado ao meu lado. Que enorme tristeza. Acabou-se. Nunca mais tornarei a vê-lo, em pouco tempo seu rosto se apagará de minha memória.
Ele nunca se apagou.

3 comentários:

  1. Nossa, que texto! Li, quase perdendo o fôlego...hehe. "Nossa vida era uma poesia da qual tirávamos estrofes de todos os acontecimentos...", como sempre poético e surpreendente. Parabéns, querido! ;)

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    1. Obrigado Amanda. A vida nos apresenta novidades todos os dias e o que parecia imutável, ganha contornos cinematográficos. Sempre vale a pena.

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    2. Obrigado Amanda. A vida nos apresenta novidades todos os dias e o que parecia imutável, ganha contornos cinematográficos. Sempre vale a pena.

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