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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A DESPEDIDA

Arquivo pessoal
 Estava linda. Tão linda que mais parecia uma boneca de porcelana. A pele branca exibia coloração avermelhada pelo frio intenso na ponte de madeira sobre o pequeno córrego. Esticou a gola do casaco para proteger o pescoço. O sítio era refúgio para finais de semana do intenso trabalho na cidade. Ali montei ateliê de pintura, meu hobby predileto e a miniatura da biblioteca que tinha no escritório.
Sara permanecia imóvel debruçada sobre o parapeito. Olhava a água que corria forte. Vez por outra jogava uma folha ou filtro de cigarro. Nas águas turvas, as últimas chuvas arrastavam objetos pelo riacho e os levavam ao rio. Em alta velocidade, passavam caixas de papelão, latas de cerveja e refrigerante. Peguei suas mãos geladas e as protegi entre as minhas. Olhou-me sem emoção e as retirou.
Havíamos discutido. Eu pedira o divórcio. Há algum tempo percebia que sua cumplicidade pairava com outra pessoa. Ela negava com veemência. Chorara para permanecermos juntos. Ao mesmo tempo, reconhecia pelos movimentos dos últimos dias, que eu sabia mais do que demonstrava. A convivência alcançara limites inaceitáveis. Anos mais tarde, concluí que, se naquele momento, ela tivesse assumido nosso casamento e se declarado disposta a sacrificar a relação para ficarmos juntos, teria cedido. O intolerável era manter a mentira, declarando ser tudo fruto da imaginação.
Sara parecia menina com olhos encharcados e vermelhos. Era a personificação da inocência, o que a deixava mais desamparada. Detesto admitir esse sentimento, mas, naquele momento, estava com pena dela.
Peguei-a pelo braço e a levei ao carro. Ao abrir a porta, livrou-se de minha mão, sentou no banco e bateu a porta, balançando o veículo. Nossa amizade, temia, estava por um fio. Saímos a rodar pela cidade e peguei um retorno para a rodovia federal. Sem destino, liguei o aquecedor e tiramos os casacos. Propus almoçarmos em uma pequena cidade turística do interior. Aceitou dando de ombros. Se pouco conversamos durante o trajeto de ida, na volta, após o almoço, nenhuma palavra.
Assumi que não havia mais nada a tratar. Deixei Sara em casa. Desceu sem se despedir, com o carro em movimento. Saí disposto a não voltar. Considerava terminada a relação. Eram dez horas da noite, quando entrei na loja de conveniência do posto de gasolina. Pedi um uísque duplo e a partir daí só lembro de perceber onde estava ao desligar o carro e ser recebido por meu cachorro no sitio. Abri a porta, fui à cozinha tomar água e desabei na cama.
No dia seguinte, despertei com forte dor de cabeça. Exagerara na bebida. A buzina da moto do carteiro levantou-me da cama mais cedo do que pretendia. Abri o portão ainda com a roupa amassada do dia anterior. Era carta registrada. Remetente, Sara. Dei um troco ao rapaz, agradeci e entrei abrindo o envelope amassado.
Folheei as páginas antes de ler. A escrita começa firme, mas a partir da metade ficava tremida e borrada. Percebi leve perfume conhecido.
Contei vinte duas páginas, o que me fez acreditar ter sido escrita antes da conversa sobre divórcio. Talvez tenha sido a leitura mais difícil que fiz na vida. Fazia um retrospecto de nossa vida em comum. Falava do namoro, seguia pelo período de noivado, casamento, férias anuais, nascimento dos filhos. Descrevia como eu adivinhava seus pensamentos, os desejos mais íntimos. Pressentia nas entrelinhas certa melancolia. Final dolorido de algo importante. Imaginei como fora desconfortável escrever. Na última página, a escrita fraquejou. Parecia difícil seguir as linhas. Após desfiar nossa história, confessou que apesar de me amar, eu tinha razão, envolvera-se com outra pessoa. Minhas constantes viagens para melhorar os ganhos financeiros, só contribuíram para sedimentar a relação entre eles. Um colega de trabalho casado, divorciado, cuja mulher, indignada deixara os filhos menores para que criasse. Sara deveria assumir os pequenos enteados. Demonstrou receio por assumir incumbência pesada com tão pouca idade.
Despediu-se declarando amor por toda vida, independente de onde estivesse.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

FERIADÃO NO RIO DE JANEIRO

(Esculturas em Copacabana-Fotos de arquivo)
O feriadão seguia seu rumo e minha programação incerta e livre me levou a orla de Copacabana onde um mar de gente caminhava. Alguns preguiçosos que nem eu, outros rápidos, talvez treinando para alguma maratona. Era uma noite agradável, com brisa deliciosa. O dia ensolarado passara nas sombras dos jardins do Museu da República no Flamengo lendo lições de vida de Sigmund Freud. Só interrompi a leitura para um lanche na excelente e alegre lanchonete local.
Paro em frente a escultura de areia. Uma obra perfeita de engenharia feita com miniaturas de monumentos da Cidade Maravilhosa e das Olimpíadas 2016. O Rio respira festas, o povo alegre curte cada canto da cidade. Idosos passeiam calmamente, até porque a velocidade das caminhadas pararam de ser objetivo da melhor idade.
O escultor da areia assiste fazer fotos. Aproxima. Euclides, mora há três anos no Rio de Janeiro. É gaúcho da longínqua Erexim, no Rio Grande do Sul. Saiu de casa aos 15 anos brigado com o pai para ganhar o mundo. Conhece vários países da Europa e, a cada local onde será a copa do mundo de futebol ou as olimpíadas, lá está a preparar sua arte. Fala que é contratado pelos Comitês Olímpicos ou pela Fifa, para esculpir imagens onde ocorrerão os eventos.
A escultura, feita com esmero, representa atrações cariocas, como o Cristo Redentor, o Pão de açúcar, os Arcos da Lapa, o Maracanã e várias outras dentro do plano de trabalho do artista serão feitas. Confessa que dispensa o projeto no papel. Memoriza a obra completa e executa tudo com “o dom que Deus me deu”. No total o projeto conterá monumentos cariocas com mais de 50 anos de construído.
Tem dois filhos. O mais velho com a moradora de favela do Rio de Janeiro, já falecida e o segundo, da qual ganhou um apartamento para viver, de uma americana de Nova York.
Euclides tem saudade de Erexim, onde nasceu, mas vê a cidade com limitações, com a ótica de alguém que já ganhou o mundo. Mulheres? Euclides teve muitas. Uma ou mais a cada cidade que passou. Lugar que mais gostou? “ Indonésia onde vivi sete anos”. E quer voltar para rever “uma loirinha estupenda com quem convivi por dois anos”.
É assim. Enquanto tem no peito o coração pulsando pela motivação do mais sagrado para viver: o amor. Atualmente, tem três paixões apenas, “minha neta, Deus e a minha obra.” Mas por pouco tempo. Sonha em ganhar o mundo e pensa nas próximas cidades sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas onde poderá realizar novos projetos em sua vida errante, repleta de aventuras. Projeto a curto prazo? “Ao final das Olimpíadas 2016, passarei uma temporada na Indonésia.”

sábado, 3 de outubro de 2015

PACIENTE REBELDE

(Google Imagens)
Tenho um grupo de amigos cujo início da amizade vem do período 1974 a 1983, quando as instalações de computadores engatinhavam. Formávamos, no órgão onde trabalhávamos,  a equipe responsável pela implantação de sistemas de informática pelo Brasil.
Os anos passaram, trocamos de emprego, envelhecemos e perdemos contato. Há três anos montei um grupo Whatzap e resgatei um a um. Hoje conta com vinte pessoas e vez por outra reúne. O encanto desses encontros é o autoconhecimento. Ouvir comentário sobre si possibilita saber quem somos, pela visão do outro. Entre os colegas, cabe destaque ao Hélio, com seu permanente bom humor. Agora mais gordo, de bem com a vida, brinda a mesa com natureza aguçada e presença assídua.
A cada reunião muitas novidades. Nem sempre boas. As vezes se pergunta por alguém e é anunciada a temida partida. Mas Hélio trata esses percalços com brincadeiras e, na maioria das vezes o assunto vira conversa agradável, ao recordar cenas pitorescas do falecido. Aliás, a memória do Hélio é prodigiosa, chega a ser perigosa, quando se fala de relembrar fatos.
Hélio tem a capacidade de transformar acontecimento difícil em agradável, como a seguir descrevo, com sua permissão, claro.
Certa feita, Hélio amanheceu com fortes dores no peito. Cabe esclarecer que andava acima do peso, fumava quatro carteiras de cigarro por dia e tomava generosas doses de pingas e cervejas. “São hábitos saudáveis em qualquer idade.” E a comida? “Torresmo e churrasco de carne gorda, que carne magra é dura”. Tirando o cigarro, todo o resto pratica com assiduidade até hoje.
A família espera dois dias e como as dores só pioravam, a dedicada escudeira, Bela, a esposa, chama a emergência. Já no hospital, o médico consulta os exames e constata enfarto. “Sala de cirurgia já”. É submetido a intervenção e após a  UTI. Todos os dias, no horário de visitas, a filha dá plantão ao lado do pai e só sai quando a segurança mostra o relógio na parede. No terceiro dia, ao chegar, nota o pai triste. Pergunta como está.
— Péssimo — responde. Pergunta por quê.
— Fome — responde mal humorado. —Um buraco aqui ó... — e coloca a mão na barriga. — Preciso urgente comer algo sólido, senão morrerei de inanição —  A nutricionista que passa no corredor, ouve a conversa e fala que prescreverá canja magra, sem sal, para aquela noite. Desanimado com o alimento insosso, o relógio marcando as horas sem fim e a leveza da filha pegando sua mão, adormece.
Acorda sobressaltado, mas decidido. Sussurra instruções ao ouvido da moça, que ainda tenta  argumentar. Como conhece o pai, acaba cedendo.
—  Tá bom, vou buscar!
Pouco depois, volta com pacote na bolsa, fecha as cortinas do box da UTI, abre o embrulho e dá o conteúdo ao pai, que devora rapidamente.
Passaram-se alguns minutos e abrem-se as cortinas. Era a atendente. Instala a mesa portátil, coloca a canja sob supervisão da nutricionista. Ele olha o prato com desdém.
— Como está se sentindo agora, senhor Hélio?” — pergunta.
— Maravilha. Agora estou ótimo — responde.
— Tá vendo? Aos poucos irei introduzir alimentos sólidos com tempero. Amanhã deverá ter alta da UTI e irá para o quarto.— fala sorridente
— A senhora não entendeu. Nem provei essa água turva porque isso não é alimento. Comi três coxinhas fritas com suco de laranja. Deliciosas —  e bate na barriga satisfeito.
A moça arregala os olhos e sai a procura do médico. Atrás dela Hélio acrescenta com voz forte:
— Catupiry, recheadas com queijo catupiry. Uma delícia.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O CHEIRO QUE DÓI

Google Imagens
Para garantir que poucas pessoas sintam seu odor, Severino levanta antes do sol nascer. Toma um gole da cachaça em cima da mesa, come um sanduiche de mortadela e segue para mais um dia de trabalho. Acena para Manoelzinho, marido de Lindaura, sua ex-mulher.
— Vá lá pra trás — grita o motorista do ônibus, enquanto os passageiros  afastam para ele passar. Senta no último banco. Na falta do que fazer, pega a revista do chão e a folheia. O sacolejar do ônibus, parece querer jogá-lo para fora. Os passageiros evitam aproximar. Deveria ter ido a pé.
Talvez no lugar deles, fizesse o mesmo. Sente-se estranho. Dá sinal de descida e caminha até a porta. As pessoas se afastam tapando o nariz. Salta do ônibus em movimento. Inicia a caminhada de uma hora até o trabalho do dia. O homem que o contratou espera no portão.
— Sou Severino — apresenta-se. O homem rejeita a mão estendida e o encaminha ao fundo do quintal.
— Aqui — aponta o buraco fétido, cheio até o topo.
— É fundo? — pergunta colocando a mão aberta abaixo do peito.
— Mais ou menos — fala o proprietário, apontando o barraco onde pode trocar de roupa.
Severino coloca o calção amassado, tira o chinelo, a camisa e toma um gole de aguardente. O fedor que sai do buraco deixa de incomodar. Há trinta anos limpa latrinas. Entorna meia garrafa de cachaça, para dar coragem e enfia o pé no buraco onde a pasta fétida fermenta soltando bolhas. Inicia a descida.
Desce lentamente e o líquido toma conta do corpo. Alcançando os genitais, a cintura, o peito, finalmente o pescoço antes do pé apoiar  em terreno firme.
— Pensei que tinha menos profundidade — comenta Severino.
— Isso aí tem conteúdo de uns cinco anos — exclama o contratante com uma gargalhada.
Com a chegada do ajudante, Severino enche o primeiro balde. Levará o dia inteiro a retirar o produto.
As tres da tarde, após completar duas garrafas de aguardente, retira o último balde e entrega ao ajudante, que o coloca na caixa da carroça contratada. O cavalo desajeitado sai reclamando. Severino agarra a borda do buraco e pula para fora escorrendo lama marrom, viscosa. Quando ajeita o corpo, perde o equilíbrio e, na tentativa de se manter em pé, segura no braço proprietário que grita e afasta. Rapidamente o auxiliar toma Severino pelo braço e o senta no chão. Com a mangueira do jardim dá jatos nas costas, pés,  peitos, braços. A água limpa e gelada reanima Severino. Pede que dê um jato em seu rosto. O proprietário, traz-lhe sabão em pó e escova e o ajudante  esfrega o patrão com rigidez.
Quando o filho chega para busca-lo termina a lavação e seguem para casa lado a lado. Apesar de cansado, pai e filho seguem a pé, os ônibus não param pegar Severino.
— Pai, porque o senhor saiu da casa da frente? — Severino espanta-se com a pergunta e demora a responder.
— Sua mãe pediu e mudei para o barraco dos fundos — fez breve silêncio — Acho que enojou com meu cheiro. Logo depois tio Manoelzinho tomou conta da casa.
O resto do caminho foi em silêncio. Ao chegarem, ouviu o resmungo do homem que ocupara seu lugar ao lado da mulher.
— Já, já levarei a janta — Lindaura sorri da janela com o perfume de leite de rosas que o conquistou na juventude.
— Boa noite Severino, deposita o dindinho aqui ó, na mão do gerente do banco — esticou o braço rindo, Manoelzinho. Com a outra mão, apertava o nariz trancando a respiração.
O filho entrou na casa, ele seguiu pelo portãozinho lateral até os fundos. Desabou no banco de madeira. Perto das oito da noite, a ex-mulher chegou com o prato de arroz, feijão e carne assada. Depositou-o na mesa, junto com o boleto do IPTU e deu as costas com a respiração suspensa.
Severino raspa o prato com miolo de pão. Olha o boleto e percebe que vencimento seria no dia seguinte. Passa a mão na garrafa de cachaça, deita na cama e mira o teto de zinco.  No dia seguinte teria duas fossas para limpar. Fecha os olhos e adormece ao som do violão vindo da casa da mulher. Manoelzinho toca e canta Nelson Gonçalves todos os dias para sua amada antes de dormir..

terça-feira, 25 de agosto de 2015

A VIÚVA

(Google Imagens)
Acorda cedo. É dia de faxina, dia de separar as roupas para a máquina de lavar. Coloca a água para ferver. Adora passar café fresco, principalmente o da manhã. Em pouco tempo o cheiro forte invade a cozinha e a faz recordar o amante da juventude. Na época, era uma jovem viúva com quatro filhos. Tinha trinta e dois anos. Ele dezoito, estudante universitário. Encontravam-se furtivamente em sua casa, onde conversavam e transavam a tarde inteira. Antes dele partir  para a universidade, preparava um bom lanche para alimentar o jovem.
É interrompida pela campainha. Abre a porta. É Bené, a faxineira barulhenta, que dá bom dia e se encaminha ao quarto de serviço.
Gostaria de ter o amante ao lado, pelo menos mais uma vez. Balançou a cabeça para espantar os pensamentos, foi à cozinha e tomou o remédio da pressão. Seria o odor de café que acordara sua memória? Ao ver o calendário, identificou o motivo. Faziam vinte anos da morte do filho, melhor amigo do jovem amante. A lembrança provocou a lágrima que rolou pela face lisa e branca. Teve grandes perdas, sendo a primeira o marido que perdera jovem para uma doença terminal, deixando-a com quatro filhos.
O amante também foi perda difícil de enfrentar, mesmo sabendo ser amor impossível. Logo depois da formatura, o jovem casou com a namorada e mudou de cidade, deixando pais e parentes para trás. Sentiu vontade de confessar os sentimentos a alguém. Falar sobre esse amor que nascera com data de validade. Foi até a área de serviço, mas descartou conversar com Bené, que cantava um funk nada atrativo. Voltou à cozinha. O jovem havia sido o segundo homem, quando recém completara três anos de viuvez. Até a morte do marido, recordava-se em detalhes de como fora feliz. Uma relação sem espaço para brigas que terminou inesperada. Uma manhã de domingo, o companheiro sentiu fortes dores, foi ao hospital e lá ficou.
Enquanto toma café, consulta o Faceboock. Entra no perfil do amor da juventude. O que estaria fazendo? Com quem viveria? Estaria casado? Teria filhos? Que mais? Não lembra. Foi ao quarto, abriu a gaveta do criado mudo e pegou, com cuidado exagerado, o binóculo de teatro. Recebera de presente do rapaz, no dia que completaram um ano de convívio.
No dia anterior, o avistara chegar para a visita mensal aos pais, seus vizinhos. Ficou tão nervosa que não encontrou o aparelho de aproximação. Agora o deixaria no móvel da sala. Toda vez que vinha, ele passava a pé pela frente da casa dela. Desconfia que estacione o carro propositalmente de forma a ser visto. Será que se lembra das tardes passadas juntos? Agora de binóculo, iria aproximá-lo para junto dela.
Da cozinha, a empregada pergunta qual sua idade. Ouve, olha com impaciência para o teto e pensa: “...tenho oitenta, mas...”
— Tenho trinta, Bené, trinta e dois anos — responde com sorriso.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

AMOR MAIOR

(Google Imagens)
Os primeiros tempos após a morte dele foram estranhos. Transformaram-me em uma pessoa com um vazio no peito impossível de suprir. Sentimento inexplicável que me assolou por anos, com a dubiedade entre recordar os tempos que vivemos juntos e a dor de aceitar o imponderável.
Minha criação foi rígida, diluída entre cinco irmãos a obedecerem cegamente à mãe autoritária que surrava ao menor sinal de insubordinação. Meu pai era alcoólatra inofensivo. Costumava chegar alegre em casa e acordava todos com gritos de “hora de levantar preguiçosos”. Católica fervorosa, para a mãe tudo era pecado. Na idade adulta, continuei casta, nervosa e sonhadora.
Meus estudos de primeiro e segundo graus aconteceram no semi-internato em colégio de freiras. Passava os finais de semana triste em casa. O trabalho duro me esperava como recompensa ao estudo dedicado. A escola representava o oásis de uma vida plena de limitações emocionais. Era a melhor aluna, a responsável pela oração antes do almoço.
Anos mais tarde senti falta disso. Minha mãe alegou que estava sobrecarregada e me tirou da escola. Fiquei confinada, ajudando na criação dos irmãos. Preparava as refeições, fazia faxina, lavava louça e era responsável pela irmã mais nova, pronta a ampará-la nas crises de bronquite.
No ano em que completei vinte e oito anos, mãe me mandou acompanhar meus irmãos á quermesse da igreja; que me lembre a única festa que frequentei. Aquele evento representou muito, pois nele nos conhecemos. Conversamos pouco, menos de dez minutos, porém, o suficiente para provocar esquentamento tão avassalador que nunca mais fui a mesma. O encontro com aquele homem deu outro sentido em minha vida. Naquela noite e nas seguintes, ao deitar, custava a adormecer. Sentia um calor intenso no ventre sem entender o que era. Os pensamentos voavam pelos telhados, só repousavam ao encontrá-lo. Houve noites que acordava com a sensação da barba dele espetando. Nos afazeres domésticos, quebrava pratos ao lavar louça, esquecia alimentos torrando no fogo, errava o tempero.
Nossa relação iniciou rápida como exige o amor, graças a uma atitude intempestiva de minha mãe. Ao me surpreender com a boca torneada de batom, obrigou-me a tirar a roupa e surrou-me sem dó. Nesse dia, corri a ele. Sem perceber o estado de embriaguez, deixei-me amparar pelo homem amável e atencioso. Fiquei tão a vontade que entreguei a ele a virgindade.
Do momento em que nos conhecemos, até morarmos juntos, o tempo foi curto. Primeiro passei a frequentar sua casa todas as tardes, nos horários da missa. Confesso que junto ao homem alegre ao me receber, havia forte odor de bebida, o mesmo cheiro de meu pai. Nada mais importava. A casa era simples. Em vez de fogão, um fogareiro, e as cortinas eram surradas, de chitão vermelho de mesmo tecido da toalha de mesa. Morava só, vivia em meio à desorganização. Tudo era novidade para mim, transformava dores em felicidade. Dei minha arrumação geral, organizei tudo e mudei. Mãe tentou argumentar, mas estava surda para as argumentações. Rancorosa, rogou praga, balançou a cabeça, por fim, me expulsou de casa. Peguei sacola de roupas e corri para morar com o homem da minha vida. Com a felicidade que sentia nem suas constantes bebedeiras esmoreciam meu amor.
Com ele conheci outro lado da vida, aprendi que finalmente entrava, mesmo que tardiamente, no compasso certo. Nossa vida era uma poesia da qual tirávamos estrofes de todos os acontecimentos. Seu costume de chegar tarde embriagado, não afetava nossa relação. Trazia sempre um papel de pão com versos apaixonados para recitar. O amor que sentia era infinito. E ele me fazia sentir uma deusa. Vivia totalmente dedicada à casa.
Foram os melhores anos de minha vida. Ele me respeitava e conheci seus amigos seresteiros com os quais amanhecia a cantar e tocar violão. Após sete anos nessa vida de sonho, falei que estava em suas mãos a decisão de termos um filho. A reação foi inesperada, pela primeira vez discutimos muito. Dias depois, acordei só. Meu amor desaparecera.
Continuei a receber noticias esparsas dos amigos. Que casara, tivera quatro filhos. E hoje pela manhã, que morrera.
Tentei ir ao enterro, mas cadê coragem. Andei sem rumo até acalmar e chegar em casa. Meu marido, monge budista, medita na sala com ruído gutural. Espero terminar, nos beijamos no rosto. Como nunca bebeu nem fumou, percebe o hálito de aguardente. Nada comenta. Falo uma desculpa qualquer e vou para o quarto. Olho meu semblante no espelho da penteadeira. Ao ouvir passos no corredor, deito e finjo dormir.
Pensava no rosto de meu amado com semblante sereno deitado ao meu lado. Que enorme tristeza. Acabou-se. Nunca mais tornarei a vê-lo, em pouco tempo seu rosto se apagará de minha memória.
Ele nunca se apagou.

terça-feira, 14 de julho de 2015

GRANADINO CENTENÁRIO

(Google Imagens - Plaza Bib-Rambla-Granada Espanha)
A.C. está sentado no banco de pedra da Praça Bib Rambla em Granada. Sem encosto para escorar, descansa as mãos em cima da bengala preta com cabo dourado, apoiada no chão. “Com licença” sento ao lado. Comento sobre a pomba que come pipoca na mão do garotinho com a babá. A resposta é bem humorada, “esses animaizinhos arriscam tudo por um petisco”. A ironia é sutil e fico na dúvida a quem se refere. Resolvo praticar espanhol. Entendo tudo que fala. Tem 92 anos, viúvo. Até se aposentar , trabalhou com fabricação e venda de móveis em sociedade com quatro irmãos. O negócio os sustentou até a idade avançada afastá-los. Esperavam ser substituídos pelos filhos.
Como não se tem controle sobre as gerações, seus três filhos abriram mão do negócio. Os primos então assumiram a incumbência de administrar a empresa. Inicialmente, a fizeram prosperar, porém, após algum tempo, a fábrica passou a encolher. Seguiram-se aportes financeiros dos patriarcas até estabilizar em tamanho e lucro bem menor do que quando assumiram.
Cada um dos irmãos de A.C tratou de cuidar da própria independência financeira. Alguns compraram ações na bolsa, outros investiram em negócios pequenos, mas sem exceção, assistiram minguar as economias em sucessivos empréstimos para suprir a baixa lucratividade da empresa moveleira.
Na contramão dos sócios, meu amigo da praça investiu boa parte do capital poupado na construção de um prédio. Um conjunto de lojas e quitinetes para alugar. Ao ouvir que era brasileiro, pediu desculpas, depois falou da sua experiência há vinte anos com um conterrâneo meu. “Minha mulher ainda era viva e esse homem chegou muito simpático, falando em espanhol sem sotaque. Conquistou minha família”. A. C. vivia do aluguel das lojas e apartamentos que estavam mais da metade fechados por falta de inquilinos. “A situação econômica do país estava difícil e ninguém queria arriscar”.
O brasileiro convenceu A.C. a alugar o imóvel inteiro a ele. Garantiu que havia investidores na Espanha interessados em aplicar. Ele acreditou no estranho de aparência tranquila. Visualizou a oportunidade de obter ganhos com apenas um inquilino. “Até então, era necessário cobrar o aluguel de várias pessoas e isto era desgastante para mim”. Desocupou o imóvel e o entregou ao estranho sem imaginar que ali se iniciava a maior dor de cabeça da sua idade madura. O homem permaneceu cinco anos com o prédio. Deixou de ocupar e de pagar o aluguel do edifício desde o primeiro dia após pegar as chaves. Após anos de luta na justiça, ganhou a sentença em seu favor para receber os aluguéis, com o direito de reaver o prédio. De nada adiantou, pois o brasileiro desapareceu. “Coisas da vida” desabafa o granadino. “Um dia se perde outro se ganha. Nada contra seu povo, adoro os brasileiros, este foi exceção que poderia ser de qualquer lugar”, completa resignado. Ao final do relato, levanta ágil. “Vou embora, hoje é dia de faxina e a moça me expulsou de casa porque sou alérgico”, fala jovialmente, sai a passos rápidos com a bengala em cadência de causar inveja a muito sessentão.

sábado, 13 de junho de 2015

AS JARDINEIRAS DE CARMEM

(Rua das Jardineiras-Sitges-Arq Pessoal)
 Voltar da Espanha sem experimentar a temperatura do Mar Mediterrâneo é pior do que deixar de visitar Alhambra. E queria algo mais original do que enfiar os pés nas águas da Barceloneta, praia central dos catalães. Indicaram-me uma cidade a quarenta minutos de trem a partir de Barcelona: Sitges. Consultei o Google. É tomar o metro até a estação de Gracia e seguir de trem da Renfe. A cidade realmente é linda. Tem cerca de vinte e seis mil habitantes e casas que parecem feitas em miniatura, com pequenas varandas e jardineiras floridas. A praça central onde desembarquei, harmoniza um pequeno comércio, o ponto de taxi e a casa de informações turísticas, tudo muito limpo. A partir daí, ruas estreitas acessam a orla. Algumas trafegam somente motos. Outras mais largas com mão única. Vive do turismo e é conhecida como Ibiza espanhola.
Em uma das ruas, rumando ao Mediterrâneo, conheci Carmem. Caminhava distraído clicando fotos por todos os lados, encantado com flores bem cuidadas e a limpeza da cidade, quando percebi a mulher que, do alpendre da casa olhava desconfiada. Baixei a máquina de fotos para deixa-la a vontade e ela me recebe com sorriso amistoso. Tem pouco mais de metro e meio, magra e veste chambre azul claro, meias brancas com pantufas azuis da cor do roupão. O cabelo branco preso ao lado da cabeça com pequeno grampo dourado, contrasta com o rosto alvo e os olhos verdes calmos e risonhos. Puxo assunto no melhor sotaque espanhol que consigo, “minha mãe tem oitenta e seis anos e mora sozinha”. “De onde vocês são?” Pergunta curiosa se referindo a Malu e eu. “Do Brasil”. Acena com a mão indicando que entendeu a distância. Olha para cima. “Muitas horas de avião. Tenho muito medo.” Após meia dúzia de comentários, vencida a desconfiança, a espanhola cria coragem e fala do que é inofensivo segredar a um viajante.
“Tenho oitenta e quatro e vivo com meu filho, que voltou a morar comigo após a separação da mulher. Me chamo Carmem e nasci em Córdoba. Aos dezesseis anos mudei para Sitges, a fim de cuidar dos filhos de minha irmã que mora aqui. Em um baile conheci Ramirez, dez anos mais velho, o único homem de minha vida, com quem casei e tive dois filhos. A vida era difícil naquela época”. Olhou fixamente um ponto qualquer no arquivo da memória, certamente se referia a Revolução Civil Espanhola. “Meu marido tinha negócios em Madri e para lá seguia de motocicleta toda semana. Condução barata que preocupa. Um dia quando meu filho menor completava seis meses, foi e não voltou mais. Ele e o amigo com quem dividia despesas de viagem encontraram o carro na contramão que os matou”. Se já era difícil, piorou e Carmem passou a trabalhar incansavelmente para criar os filhos.
Orla de Sitges-Arq. Pessoal)
Diz não gostar de Sitges. Ama a cidade natal. Talvez pelas grandes dificuldades que a vida lhe apresentou. Os filhos lhe deram netos e estes, bisnetos, motivos suficientes para permanecer na cidade. Sobre casamento, “é para somente uma vez. Não casei e não casarei nunca mais”. Vive na mesma casa que nasceu o marido, filho único. Carmem a recebeu de herança. “Ficará para os filhos. Façam o que quiserem, quando eu morrer”. A casa é um sobradinho com o térreo alugado a um comércio. Mora no andar de cima. Aponta para a escada “subo e desço trinta e cinco degraus todos os dias. Limpo, varro e tiro a poeira. Detesto sujeira”. Distraio com as varandinhas com jardineiras floridas e bem cuidadas do andar de cima. “Essas plantinhas são meus mimos. Cuido-as como cuidei de meus filhos e netos. Dos bisnetos não cuido. Eles têm mãe”! Dá uma risada marota como se fosse uma confidência.
Carmem abaixa e pega agilmente o papel de bala perto de meu pé. “Isso não é meu,” esclarece “mesmo assim, recolho e o colocarei na lixeira lá de casa”. Despeço-me com abraço e beijo nas faces. Ao fechar a porta, acrescenta: “Um beijo em sua mãe”. Faço sinal positivo com o polegar e chamo Malu para continuarmos pela rua até o Mediterrâneo.


sábado, 16 de maio de 2015

ESPANHA – PREPARATIVOS

Espanha - arq. pessoal
“Andar por terras distantes e conversar com diversas pessoas torna os homens ponderados.” Miguel de Cervantes.
Os preparativos para conhecer a Espanha começaram em fevereiro de 2015. Era uma tarde chuvosa do verão brasiliense e tomava uma taça de vinho, quando cliquei o mapa do país na tela do computador. A partir daí, aos poucos, desencadeou o que parecia um sonho no primeiro  momento..
Mesclar o projeto particular com companhia de turismo me pareceu o melhor para viabilizar e conhecer em detalhes a cultura, a história e pontos pitorescos. Preparar o roteiro por cidades próximas distanciadas entre si no máximo em 300 quilômetros, foi consenso interessante, pois tornaria a viagem  atraente e menos cansativa. A empresa deveria ter boa estrutura, preferentemente ter porte médio a grande e, o principal, oferecer preços atrativos e formas de pagamento.
Definida a empresa de apoio, restava a escolha das cidades. A agente de turismo apresentou um roteiro bem semelhante ao que tinha planejado e, com poucas adaptações fechou o início a partir de Madri, ponto de partida de um grupo brasileiro. E assim foi programado. De Madri a MÉRIDA, 340 quilômetros. De Mérida a SEVILHA, 189.  Sevilha a CÓRDOBA, 143, daí a MÁLAGA, 159 e até GRANADA, 134. A ALICANTE, o maior trecho, 350. De Alicante a VALÊNCIA, 179 e por fim, BARCELONA, distante 350 quilômetros, última cidade da excursão. As hospedagens aconteceriam em Madri, Sevilha, Málaga, Granada, Valência e Barcelona. A cada cidade, forneceria um roteiro a ser seguido para as visitas, o transporte e um guia local, para informar sobre os pontos. A língua do guia seria o português para compreensão de todos.
Como queria liberdade de horários e de compromissos, permaneci três noites em Barcelona e visitei pontos turísticos interessantes: o Parque Guell, entregue para execução em 1914 ao amigo e arquiteto mais famoso da Espanha, Gaudí; o mosteiro de Montserrat, fortaleza com acesso alternativo via teleférico e o pequeno balneário de Sitges, apelidado de Ibiza espanhola.
Enquanto preparo a viagem, leio sobre as cidades e pontos turísticos, outras pessoas, desconhecidas entre si, também o fazem. Em Passo Fundo, na dúvida se levavam roupas suficientes, as irmãs Anamaria e Suraia  e os maridos João Batista e Senair, fechavam suas malas abarrotadas de roupas para todos os  tipos de estação e eventos. De Dom Pedrito, Solange telefona ao filho Gustavo e confirma o horário do vôo de São Paulo para Madrid. De Goiânia, Sílvio, sua mulher e Fabricio, o filho zeloso, tentam fechar as malas, enquanto o pai reclama da quantidade de roupa que a mulher carrega. Na Vila Mariana, São Paulo, os primos Célia e Rubens, escolhem para o fechamento do passeio, Paris, a cidade luz que lhes resgata o amor da juventude. Em Belo Horizonte, Armon alerta Sílvia, a esposa, para ligar a Marisa, mãe dele a fim de combinarem o horário de saída de casa, pois o aeroporto é distante da capital.
Malu e eu, fechamos as malas e fomos dormir cedo. Descanso antecipado para as dez horas de vôo a partir de Sampa a Madri.
No primeiro encontro entre todos, no hotel, a guia Ana faz as apresentações e assim os destinos se cruzam por dez dias, gerando uma série de acontecimentos e aprendizados.

terça-feira, 21 de abril de 2015

BRASILIA, 55 ANOS

(Autódromo Nelson Piquet-1974- Arq. Google)
Janeiro de 1974. Data que cheguei a Brasília, contratado para compor a equipe do projeto Radiobrás. Três meses depois, o governo trocou e fiquei desempregado. Mesmo assim nunca pensei em voltar. A fama da cidade era injusta. Diziam que apresentava poucos atrativos e oferecia aos moradores, três sentimentos com a letra D: deslumbramento, desencanto e desespero. Em Porto Alegre, de onde vim, ao me referir a capital federal, ouvia comentários de que era cidade fria, sem diversões. Composta por população triste que trocara a cidade natal para viver no meio do cerrado.
Mas a realidade era outra. A beleza exuberante do dia extremamente claro e da noite estrelada contagiava. A população estava sempre disposta a aproximar, pois carente de convívio, se unia para a diversão sadia. Isto colaborou para a adaptação. As poucas casas noturnas eram bem frequentadas, as espaçosas ruas contribuíam para um trânsito excelente. Brasília oferecia pouca diversão mas muito espaço para reunir. Cachoeiras com águas límpidas em localizações privilegiadas, onde a natureza, pródiga em beleza, deslumbrava visitantes.
Em finais de semana amigos do trabalho procuravam lugares para gostosas conversas ao ar livre. Para isso, o tempo de Brasília é perfeito e previsível, alterna seis meses de chuva e seis de seca. Além disso, que outra cidade oferece possibilidade de dividir espaço para degustar churrasco com chimarrão entre cariocas, goianos, mineiros, gaúchos?
Em Brasília, casei três vezes, gerei cinco filhos e hoje curto três netas. Sinto orgulho de ter feito a vida pessoal e profissional na cidade. Aposentado, continuo a morar na capital acolhedora e a faço porto seguro, base das excursões de viajar pelo mundo.
Nesse vinte e um de abril completa cinquenta e cinco anos. Para cidade, é pouco tempo de vida, mas sou testemunha do quanto cresceu. Sinto a obrigação de a homenagear, pois oferece uma das melhores qualidades de vida a sua população a qual é afagada pelo clima ameno que acolhe.
O que aprendi nestes anos? Perder e reconquistar emprego sem desesperar. Fazer concurso para melhorar de vida. Encarar a derrota e a vitória. Amar e desamar, ganhar e perder. Viver. E ter a certeza de que em qualquer outro lugar, deixaria de aprender o que Brasília ensinou.
Os políticos? Propositalmente, deixo de tocar no assunto. Por aqui chegam e na mesma velocidade, vão embora. Mais um motivo para parabenizar ao brasiliense que aprendeu a conviver com essa população nômade, sem se envolver.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

TROCA DE DESTINO

(Google Imagens)
Paulo contorna o balão de descida à ponte JK e telefona à secretária avisando estar a caminho. Na longa descida rumo ao Plano Piloto, o carro serpenteia pela pista sinuosa. Liga o aparelho de som e escolhe o CD de Nora Jones, que ganhou de Martha. O inicio da música e a linda paisagem o convidam a desacelerar. Distrai-se com o morro gramado geometricamente e o amanhecer do Plano Piloto, emoldurado pela névoa seca que paira sobre a cidade.
A melodia suave o remete a Martha. Há cinco dias se amaram no sofá da sala, no tapete de pele de carneiro que tanto os acolhe nesses momentos. O tempo com Martha parece infinito. Mais do que amantes, uma relação de cumplicidade. Cheira a roupa e o aroma do amor paira em cada costura e botões do paletó que a mulher manuseou para abriga-la do frio. Martha usa pouco perfume. Conhece e respeita a condição do amante, mas seu corpo exala delicioso odor de fêmea no cio. Quando juntos, gosta de pegar nas suas coxas grossas enquanto a beija, algumas vezes ternamente, outras com ardente. Incendiar desejo no  corpo maduro de Martha é o passatempo favorito.
A ponte JK aparece ao fundo da paisagem. Acima do lago crispado pela brisa gélida, pairam os arcos geométricos costurados ao espelho do lago Paranoá.
Lembra-se do último encontro e excita ao recordar os beijos apaixonados de Martha. Tem certeza que a deseja tanto quanto ela. Olha o relógio. No Congresso, seu destino, a secretária recepciona os participantes brasileiros da reunião. Aos executivos americanos, inventa desculpas em inglês doméstico.
Paulo continua suas fantasias e a voz suave da cantora o transporta à presença da amante provocando desejo de vê-la. A sua volta, apenas o trânsito silencioso dos carros que o ultrapassam rumo à travessia da ponte. Liga para Martha. O telefone toca uma, duas, três vezes. "Alô?” atende voz suave, dengosa, preguiçosa, recém-desperta. "Oi, tudo bem?" Ela reconhece a voz. "Como vai, meu amante?" É assim que o trata, carinhosa e acolhedora. "Tudo bem. Te acordei? Sinto sua falta". Diminui a velocidade ainda mais. "Também estou com saudade" fala a mulher. "Como está nossa filha"? Pergunta Paulo com carinho. "Dormiu fora de casa, irá direto ao trabalho. Vamos nos ver hoje?" Propôs a mulher. “Claro, quando quiser, estou louco de tesão por você". “Vem agora”, provoca a mulher. “Estou indo", Paulo é sensível a seus convites.  A mulher desliga e vai ao banho. São assim os encontros. Imprevisíveis, acalorados e nas horas mais inesperadas.
Paulo liga ao escritório e transfere, sob protestos, a reunião para a tarde.
Entra no viaduto do CCBB, faz a tesourinha de retorno e parte ao encontro de Martha. Passarão a manhã juntos. O amor os espera embaixo das cobertas.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

MACHU PICCHU - PERU

(Machu Picchu - arquivo pessoal)
Para facilitar ao turista, os hotéis de Cusco guardam a bagagem sem custo adicional, pois visitar Machu Picchu requer pouso de uma noite no simpático vilarejo de Águas Calientes. Preparei a mochila com apenas uma muda de roupas, dei saída no hotel e entreguei a mala na portaria.
Eram 5h30 da manhã quando o ônibus chegou para iniciar a aventura. Neste ponto do passeio fomos agregados a um grupo com cerca de dezesseis pessoas, maioria brasileiros. O percurso é subida de serra e, após 1h 40 minutos, avisto a estação de trem de Ollantaytambo, onde se localiza uma feira incrível que comercializa tudo. As 8 h da manhã o trem parte, com longo apito e a partir daí paisagens se alternam entre montanhas e planícies. Em praticamente todo trajeto, a ferrovia segue paralela ao caudaloso rio Urubamba, o mesmo que quando chega a época das chuvas, causa inúmeros estragos as rotas turísticas de Machu Pichu. A composição oferece bom conforto, com poltronas almofadadas e farto lanche incluindo frutas tropicais. Após o término da viagem de trem, mais uma etapa de ônibus, agora subindo a Cordilheira dos Andes em zigue-zague. De um lado ribanceira e do outro, íngreme morro. Quando encontram dois veículos em sentido contrário há necessidade de buscar local seguro onde possam cruzar. Isso aconteceu por três vezes. Um dos veículos dá marcha ré até encontrar o local certo para atravessar.
Tudo é esquecido quando se avista a estrutura de pedras da cidade Inca. Única cidade preservada dos ataques espanhóis, quando invadiram a América. A civilização Inca mostra por meio das ruínas de Machu Pichu todo o esplendor como obra de um povo tecnicamente bem preparado. Um verdadeiro mistério de como formações rochosas esculpidas em enormes quadrados e retângulos foram elevados ao cume das montanhas. Mesmo que se diga que foram por meio de roldanas, fica difícil imaginar o deslocamento. A tardinha, voltamos ao povoado de Àguas Calientes. O ônibus cuidadosamente desce rodeando o morro da Cordilheira, ora a esquerda, ora a direita. Algumas vezes precisou manobrar para passagem de outro que subia. À chegada ao pé da montanha lia-se o alívio nos rostos tensos.
A noite em Águas Calientes, cidade ao pé das montanhas do sítio arqueológico, foi fria e chuvosa, mas não prendeu ninguém no hotel. Passear e tirar fotos na Praça das Armas, onde um monumento aos Incas se destacava majestoso, foi programa obrigatório. Ao lado do hotel, durante a noite, o caudaloso rio Urubamba teimava em sair do leito mas, contido pelas pedras, apenas assustou com barulho ensurdecedor a turistas insones que recordaram o noticiário de 2010 quando a inundação atingiu a cidade.
O retorno de trem teve até desfile de modas. Amostra de um tipo de lã denominada alpaca bebê, que, além de divertir e encurtar a viagem, rendeu bons lucros em soles, moeda peruana. Os assovios de brasileiros para as modelos, provocou estranhamento em turistas americanos e alemães, desacostumados a espontaneidade tupiniquim. No fim todos riram e participaram. Da estação de Ollantaytambo, de ônibus, teve início o percurso de cerca de uma hora e meia para Cusco. No caminho, os olhos curiosos dos turistas brasileiros avistaram camadas de neve no topo das montanhas da Cordilheira. No nosso nível de altitude, a leve brisa que entrava pela janela de alguém que fazia fotos, indicava que a temperatura estava baixa.
Machu Picchu e seus segredos ficaram para trás e o “soroche” aos poucos retornou, o que forçou o grupo a repetir mais uma dose de chá de coca ao chegar ao hotel em Cusco.

sexta-feira, 13 de março de 2015

UM ANJO PERUANO CHAMADO ADLER

(Menino desaparecido- Arquivo pessoal)
Após breve repouso no hotel, tomei o chá de coca e prontamente restabeleci dos efeitos da altitude. Cusco é cidade pequena, limpa e segura, com polícia preocupada em tranquilizar os visitantes. Vive do comércio dedicado ao turismo arqueológico e de pequenos bares e restaurantes. Na praça central, cortada por ruas estreitas de mão única, a catedral e prédios antigos são atrativos a visitação.
Caminhava displicente pela Avenida El Sol quando a chuva apertou. Comprei uma capa descartável que, impotente para defender do aguaceiro, me fez procurar abrigo no Centro Artesanal, localizado no início da Alameda Pachacutec, perto da Paccha de Pumacchupan. Na porta de entrada, soube do desaparecimento do pequeno Adler no dia anterior. Havia grande movimento  em frente a feira com cartazes e fotos do menino. Uma criança de olhos negros e tristes. Peguei um dos papéis: SE BUSCA – Se suplica información acerca del niño extraviado en el dia de domingo 18 de enero de 2015 edad 1 ano y 8 meses. No rodapé, fones e indicações do centro policial.
Uma senhora com os olhos inchados e vermelhos aproxima e se apresenta como tia. Pede ajuda para auxiliar nas buscas. Segundo ela, os pais da criança estavam em casa, dopados de medicação. A polícia, as redes sociais, as pessoas em geral procuravam por Adler. A comoção era geral. Passei recado ao grupo Whatzap de jornalistas em Brasília e pedi que divulgassem a foto do menino no Brasil, pois poderia ser sequestro internacional. Quem sabe se divulgado no Brasil, alguém poderia dar noticia. Nada mais que isso podia fazer. A chuva amainou e retornei ao hotel onde soube que o pai da criança trabalhava como garçom. Era tarde e no dia seguinte haveria quatro passeios programados. Custei a conciliar o sono. A imagem do menino ficara na mente.
Onde estaria o pequeno Adler? Acordei na manhã seguinte com a pergunta martelando. Mas o compromisso com o grupo da excursão, me fez desejar o êxito da polícia nas buscas e segui a agitação das visitas ao Parque Arqueológico de Sacsayhuaman, ruinas da civilização Inca, plena de mistérios sobre a arte de construir deslocando enormes pedras por distâncias inimagináveis. A tarde, cumpri o roteiro de visitas aos prédios da cidade, as igrejas e ao Mercado Público, pouco higiênico é verdade, mas superado pela hospitalidade dos feirantes. À noite, na Praça das Armas, procurei por lanche leve e entrei em um café.
A praça iluminada pelos postes da rua criava um ar interiorano. A temperatura estava agradavelmente fria. Da janela do segundo andar do restaurante avistava o morro com a favela ornamentada pelas luzes multicoloridas dos barracos. Na praça, pequena e ruidosa procissão com velas trêmulas. Perguntei a garçonete o que seria e a resposta: “alguma manifestação religiosa”, me fez lembrar Adler. Paguei a conta e corri para saber notícias. A polícia se desdobrava. O lamento das mulheres se traduzia em reza triste e gritada, elevada aos céus por mãos suplicantes. Lamentavam a falta de informações e outra noite com o pequeno desaparecido. A cidade chorava solidária com a dor dos pais.
Voltei decepcionado ao hotel. Temi pelo que poderia estar ocorrendo a Adler.
O tempo corria e chegou quarta-feira, dia da esperada excursão a Machu Pichu, onde passei a noite em Águas Calientes, pequeno vilarejo de apoio a turistas. Um passeio especial que relato em outra narrativa.
De volta a Cusco, durante o lanche no hotel conheci o trágico desfecho da história do pequeno Adler. A polícia analisara as imagens do circuito fechado do Centro Artesanal e concluiu como assassinato cruel. Naquela manhã, o inspetor fora à barraca do Centro Artesanal e mostrou as imagens ao principal e único suspeito. Ao assistir, o tio assassino, com a frieza dos psicopatas e a inocência dos doentes mentais confessou o crime hediondo em detalhes e sua motivação. Foi encarcerado. Casado com a irmã da mãe agiu em represália a desavenças familiares. Na mesma noite que roubara a criança, o homem, que segundo a polícia, sofre das faculdades mentais, silenciou o garoto, enforcando-o. Após, colocou o corpinho miúdo em uma valise e depositou na prateleira junto a mercadorias na barraca dos pais. Voltou para casa como se nada tivesse ocorrido, assistiu televisão com a mulher e os filhos e dormiu.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CUSCO - PERU – 3.400 METROS

(Centro Artesanal de Cusco - arquivo pessoal)
Terminei de arrumar a bagagem e, no horário marcado, a van esperava a porta do hotel. Após uma hora buzinando pelo intrincado trânsito da capital peruana, ainda cansados pela agitação dos dias intensos, a van chega a porta do terminal.
Como o aeroporto de Lima não anuncia as partidas de voos, feito o chekin,  fui direto ao portão de embarque, onde um jovem casal tagarelava em português sobre peripécias em praias peruanas. Eram surfistas. Perguntei de onde eram e a simpática loira aparentando cerca de vinte e cinco anos, responde alegre “eu, de Florianópolis, ele de Curitiba”. Vinham de temporada em Pico Alto, praia conhecida por suas ondas gigantes, especialidade do jovem. “Eu sou marraqueira”, sorri a moça “surfo em ondas pequenas”. “Há muitos brasileiros praticantes de surfe por aqui”, explica o rapaz.
Fomos interrompidos pela funcionária que chamava aos gritos os passageiros dos voos. Despedimos e embarquei no voo lotado por turistas de diferentes nacionalidades. Acomodei-me na poltrona central. Os espaços reduzidos apertaram meus joelhos. Por mímica, um homem sorridente, perguntava a senhora a minha direita, se queria trocar e sentar na janela. Ele oferecia a cadeira na janela e ela explicava, em inglês, que queria permanecer ao lado do marido, sentado do outro lado do corredor. Percebi o que pretendiam e tentei mediar a situação. Só fiz piorar. Minha atitude provocou ira no rapaz que passou a solicitar insistente que levantássemos para deixá-lo entrar. Quando a manobra acabou e retornei, os dois carrancudos fingiam dormir. O voo seguiu tranquilo até a aproximação de Cusco que, localizada entre montanhas, obriga o piloto a manobras apertadas para alinhar a cabeceira da pista.
O tempo em Cusco estava bom, mas a medida que nos movimentávamos, os efeitos da altitude provocavam extremo mal estar. Ainda no aeroporto recepcionistas ofereciam chá de coca para amenizar os efeitos. Por preconceito, agradeci e não tomei.  Já no  hotel, instruído pelo gerente passei a fazer as atividades mais lentamente e provei o chá que a recepcionista oferecia. “Isto é chá de coca. O senhor se sentirá melhor”. Desta vez aceitei. À medida que fazia efeito, o mal-estar dissipava. Nos dias seguintes, pelo menos três vezes ao dia, me servi do chá para combater o mal das altitudes. Um santo remédio.
(Praça das Armas - Cusco - Arquivo pessoal)
O primeiro dia em Cusco foi dedicado a adaptação com a altitude. Os passeios seriam no dia seguinte. Após o almoço, saí pelo comércio para comprar roupas quentes. Ouvi de outros turistas que fazia muito frio em sítios arqueológicos.
Após comprar agasalhos, a chuva fria me fez abrigar no Centro Artesanal de Cusco, uma feira livre de quinquilharias com cobertura. Algo acontecia, o movimento era nervoso. A pequena feira estava visivelmente abalada. Mulheres aos prantos nos receberam com cartazes e a foto de um menino. DEVOLVAM ADLER, dizia o panfleto. Fiquei perplexo ao receber a notícia do desaparecimento do pequeno Adler Esteban, a criança sumira no dia anterior. “Isto nunca aconteceu em Cusco”, dizia a tia da criança fora de si.
A próxima narrativa será dedicada a contar a incrível e trágica história de Adler, um menino de apenas um ano e oito meses, com a qual tive oportunidade de ajudar com o que estava ao meu alcance.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

CONHECENDO A AMÉRICA LATINA – PERU – PARTE 3 – LIMA

(Larcomar - Lima -Peru - arquivo pessoal)
Na primeira parte da manhã do domingo, segundo dia em Lima, providenciamos a troca de hotel. Neste, haveria a concentração do grupo de turistas brasileiros, que fariam o roteiro de visitas a Cusco, aos sítios arqueológicos e a uma das maravilhas do planeta, Machu Pichu. Desta vez, um cinco estrelas. Mas como julgo que tempo para curtir hotel é perdido, após deixar a bagagem, pedi ao porteiro que chamasse um taxi de confiança e rumamos ao Larcomar. Seria a despedida em agradável local turístico.
A corrida foi relativamente pequena até o complexo arquitetônico. Uma enorme e elegante estrutura a beira-mar, com três andares, ao ar livre com confortáveis escadas rolantes, repleta de lojas de marcas famosas. Apoiada nas pedras da orla ao alto de um penhasco, a obra margeia o Oceano Pacífico que, majestoso e intrigante, quebra as ondas ao pé da montanha. Com sorte, consegui mesa em um restaurante de frente ao Oceano Pacífico, onde o almoço foi um precioso lagostin acompanhado de vinho tinto. Para completar, vez por outra um parapente sobrevoava o amplo janelão do restaurante, tirando um fino das montanhas que circundam a estrutura.
Ao contrário do que se possa imaginar, os preços praticados por esse comércio são atraentes. Mas como as compras não eram o objetivo da viagem, resisti bravamente e saí sem sacolas.
O acesso à praia é por enorme escadaria que, após analisar a escalada de volta, desisti antes de começar a descer. Avistar e sentir o odor da maresia do Pacífico me satisfez e ficamos, da amurada, mirando as ondas que levavam e traziam surfistas e kitesurfistas a deslizar suavemente. Por toda orla a perder de vista, a areia cinza me chamou a atenção, visto estar acostumado às areias brancas do litoral brasileiro. As cinco da tarde o shopping transbordava de turistas ávidos que consumiam de tudo. Lanchonetes e restaurantes lotados e filas de espera quilométricas. Era hora de voltar. Negociei o preço da volta igual ao de ida e retornamos com o taxista buzinando freneticamente a qualquer movimento estranho.
(Vista da Orla do O. Pacífico, a partir do Larcomar - Arq pessoal)
No prédio do hotel, com acesso interno, um shopping foi o destino para lanchar antes de dormir.
Tive noite agitada. O movimento de conhecer lugares diferentes, e talvez o fato de estar fora de meu país, provocou um pesadelo noturno, que me deixou acordado por várias horas na madrugada. Vale a pena relatar, para que leitores, analistas de sonhos façam suas interpretações.
Sonhei que dormia em lugar desconhecido e um barulho me despertou. Ainda na madorna, identificava alguém a serrar a grade na janela de acesso ao quarto. Tentava despertar, mas estava difícil. O sono era muito forte e, no sonho meus olhos permaneciam teimosamente fechados. Sem forças para reagir, acordei suado sem resolver o conflito.
Anotei para interpretar com a analista em Brasília, liguei a TV e assisti ao noticiário matutino em espanhol antes de novamente adormecer.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

CONHECENDO A AMÉRICA LATINA – PERU – PARTE 2 – LIMA

(Plaza Mayor - Lima Peru - Arquivo pessoal)
O segundo dia em Lima, sábado, estava nublado o que aliviava o clima quente e favorecia os passeios. Sem programação com a empresa de turismo, recorri a gerente do hotel que indicou visitar a Plaza Mayor, onde haveria grande show em comemoração ao aniversário de 480 anos da capital peruana. Ela chamou o taxi e falou o valor a desembolsar em Sol  Novos, a moeda corrente no país. Sem pressa e buzinando até para cachorro que atravessasse a rua, o condutor percorreu o trajeto em trinta minutos. Mais tarde descobriria que o motorista peruano se divide em cabeça, rodas e buzina.
A Plaza Mayor é um enorme espaço cultural no centro da capital, que abriga vários prédios centenários e onde acontecem festividades e shows ao ar livre. Quando desci do carro, o grande palco das festividades de aniversário passava pelas últimas preparações. Enquanto aguardávamos, fizemos o turismo padrão visitando a Catedral e o Palácio do Governo e iniciamos a travessia da Jirón (rua) Carabaya, que dá acesso a estação dos Desamparados, onde, no subsolo,  está a biblioteca Mario Vargas Llosa.
Eram treze horas e o almoço se fazia necessário. A procura de um local tranquilo, aconchegante e pitoresco terminou no Bar Cordano que, com um banner de dois metros de altura pendurado em uma das portas, anunciava a data de inauguração: 1905, portanto, comemorava 110 anos. Entramos. O lugar estava lotado. Cadeiras e mesas de madeira e uma arquitetura centenária com inúmeras fotos de celebridades que ali compareceram. Percorri as mesas com olhos a procura de vaga.  Nossa mesa esperava no meio do restaurante, para onde segui rápido. Pedi prato de peixe a vapor, acompanhado com água sem gás e ficamos a observar turistas que conversavam em altos brados. Vários países do mundo estavam ali representados. Éramos os únicos brasileiros.
Da praça, ouvíamos os primeiros acordes a informar o inicio do show. Uma afinada voz de mulher indicou a qualidade do evento e inundou o bar Cordano. Terminamos o almoço e rumamos à praça. A linda cantora, jovem e loira interpretava um repertório nativo e alegre. Por trás, um grupo de seis bailarinas dançava contagiando os assistentes. O número de pessoas que assistiam a cantora ocupava a frente do palco e se espalhava por todos os cantos da praça. A música entrava alegre pelos ouvidos, e comecei a acompanhar o ritmo. Primeiramente, batendo com a palma da mão aberta na perna, mas logo peguei Malu pela mão e saímos a dançar observados pela plateia solidária que abriu espaço para a dança particular. Foram duas horas de dança e suor em sol escaldante, até entender que o solo aquecido queimava a sola do pé, atravessando os tênis. Hora de parar. O descanso foi num café com ar condicionado, afastado da praça.
Após um breve descanso, hora de continuar. O sol baixara e rumamos a Alameda de Cultura Popular de Livreiros. A ACPL, é uma feira formada por infinidade de barracas, semelhante a Feira dos Importados de Brasília, com a diferença que é dedicada exclusivamente a venda de livros usados. Os preços convidativos me fizeram adquirir vários. Terei oportunidade de esmerilhar o espanhol. Da feira saímos a pé para a Praça San Martin, mas desistimos no meio do caminho. O cansaço do dia foi mais forte e parei um taxi para retornar ao hotel. Negociar preço com os taxistas foi orientação seguida a risca. Perguntava na portaria do hotel o custo da corrida e quando chegávamos ao destino, o conhecimento prévio do valor, nos salvou de muitos dissabores.
Após um pequeno descanso, busquei informações sobre janta típica no hotel e recebi a indicação de um restaurante, onde foi possível experimentar delicioso Anticucho, pedaços de coração de rês, assado em carvão, acompanhado de vinho peruano. Em retorno ao hotel, uma saudável caminhada pelas ruas do bairro Miraflores, ajudou a digestão. Era uma hora da manhã e dormir seria bom preparativo para o dia seguinte.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

CONHECENDO A AMÉRICA LATINA — PERU — PARTE 1

Arquivo pessoal
Após rodar por território uruguaio, em janeiro de 2014, conviver com a população e vivenciar histórias, decidi incursionar pelo Peru. Foi bastante familiar visitar o Uruguai pois o intenso turismo brasileiro, próximo aos uruguaios, ajuda-os a entender o português.  Porém no Peru a situação é outra e servirá como teste ao meu curso de espanhol.
A viagem começou quando Malu, minha companheira de viagem e eu fechamos o pacote turístico que incluía aéreo, hotéis, traslados e passeios por sítios arqueológicos. Incluímos tempos livres para conviver com a população o que surpreendeu em situações bem interessantes.
A partida de Brasília foi no dia dezesseis de janeiro de 2015, com escala em Foz do Iguaçu para depois rumar para Lima, capital peruana.
Chegamos a Foz as 14h40 e, como a conexão a Lima sairia as 20h55, decidimos conhecer as Cataratas. Negociei com um taxista e, em quinze minutos, estávamos no pé de uma das Sete Maravilhas do Mundo, as Cataratas do Iguaçu. Tudo que se possa dizer sobre a magnitude já foi dito. O montante espantoso de águas despejadas segundo a segundo formando a nuvem que banha turistas embasbacados é indescritível. Pessoas de todo o mundo, observavam em silêncio o rumor incessante e ensurdecedor. Ouvi que a visão pelo lado brasileiro era mais atrativa que pelo argentino. Após observar o fenômeno por duas horas, consultei o relógio e falei ao motorista que seguisse para a ponte da Amizade, onde permanecemos por meia hora a observar as filas de pedestres com caixas e mais caixas de produtos. De acordo com o taxista, produtos cujas destinações mudam com o horário. Durante o dia, aparelhos elétricos e eletrônicos, a noite, os ilegais.
Iniciar o passeio com a conexão em Foz abriu com louvor o passeio. Retornamos ao aeroporto dentro do horário previsto, lanchamos e tomamos o voo rumo a Lima. Após uma viagem tranquila, aterrissamos as 01h10 horário de Brasília. Em Lima, 22h10. Ajustei o relógio.
O aeroporto de Lima está localizado em distrito distante e, mesmo cansados, ouvimos com atenção a guia descrever o caminho e características   da capital, tudo falado em espanhol, por opção nossa. A jovem apresentava dados estatísticos enquanto a van rodava devagar em trânsito caótico e barulhento. Estávamos com fome e, no hotel, dado o avançado da hora, nos apresentaram a opção de fast food. Perguntei se seria seguro caminhar pela rua naquele horário. A gerente riu e falou que não existe risco. Fomos desconfiados mas voltamos tranquilos, traçando o roteiro para o primeiro dia em Lima.
Para a capital peruana não havia programação com a companhia de turismo e a ida a Cusco seria daí a dois dias. Tínhamos tempo livre a preencher por conta própria. No dia seguinte, levantamos cedo e fomos para a Plaza Mayor. Era sábado e precisávamos aproveitar o comércio aberto. Havia muito a conhecer.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

OLHO POR OLHO

(Google Imagens)
Anselmo acorda cedo para o trabalho.  Prefere fazer o desjejum em casa na companhia da esposa e do filho de dois anos. Após a refeição, a mulher o leva até a porta e despendem-se. “Procure chegar no horário” comenta maliciosa, “hoje o tempo está bom e não precisará dar carona a colegas.” Anselmo, que a beija sempre na despedida, dá meia volta e sai sem responder.
No mês anterior, antes de ir para casa, dera carona a uma amiga e demorou no comércio a esperar o alívio da enxurrada. O atraso custou dispendiosa cena de ciúme.  Sua esposa tomou a direção do carro e o jogou insistentemente contra a pilastra da garagem até avariar o motor e só sair rebocado. Aos gritos, dizia conhecer os encontros do marido e as traições com as colegas de trabalho. Por conhecer a mulher e haver presenciado cenas iguais anteriores, a aconselhou a procurar ajuda profissional, o que ela rejeitou.
O homem acostumara ser cuidadoso nos trajetos. Cronometrava os trechos e distâncias e os cumpria meticulosamente, pois sabia que a mulher memorizara os percursos. Preocupava-se em chegar sempre no mesmo horário. Desassossego era quando o chefe marcava reunião para o final do expediente. Era quando Anselmo teria de explicar detalhadamente o quanto demorou a pizza que os colegas encomendaram, ou algum outro detalhe que o pudesse atrasar.
Mesmo assim, era insuficiente. Vez por outra aconteciam atrasos, engarrafamentos, enchentes e aí tudo desandava. Anselmo se tornava um homem excessivamente preocupado com as horas. Consultava o relógio a todo instante, no pulso, no painel do carro, no ponto eletrônico.
Certo dia, um novo atraso e mais uma cena dramática. Ao chegar a casa, o filho de dois anos estava refém na varanda do apartamento. A mãe o ameaçava com uma faca no pescoço, exigindo de Anselmo que confessasse a traição. A custo conseguiu dominar, emocionalmente a mulher que se abandonou em seus braços e aceitou finalmente se submeter a tratamento.
Ela permaneceu  internada três meses. Ao sair, parecia outra, dominara a obsessão e a família finalmente experimenta período de calmaria. Diligente,  seguia por conta própria as recomendações  profissionais.
Anselmo, para garantir continuava o cuidado com distâncias e horários e, após alguns meses, em que a situação parecia controlada, um engarrafamento o atrasa por três horas. Ao chegar é recebido com sorriso e beijo na boca. A mulher passa a mão pelos cabelos do marido, ajeita a gola da camisa, tira-lhe o paletó, os sapatos. “Ah! Como é bom estar livre da ciumeira. Sinto-me liberta. Tanto é verdade, que mesmo sabendo de suas traições, estou tranquila”. Anselmo arregala os olhos. Ela continua. “Aproveitei teu atraso e visitei o vizinho, o solteirão do 304.”