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quinta-feira, 1 de maio de 2014

A SURPRESA

(Google-Imagens)
Esta é uma das tantas histórias entre passageiros. Voo de Porto Alegre a Brasília e a mulher, aparentando cinquenta anos, lê a Bíblia enquanto a aeronave taxia na pista do aeroporto Salgado Filho. Em Brasília, tomará conexão rumo ao Nordeste. O avião decola e rapidamente alcança as nuvens e a leitura é interrompida por intensa turbulência. A mulher fecha o livro sagrado e o guarda no compartimento do banco à frente. Torce as mãos e, na tentativa de conter a ansiedade, puxa conversa com o passageiro ao lado.
— Adoro viajar, mas a turbulência me inquieta.
— Ainda é o meio mais seguro. — fala o passageiro, convincente.
Sorriem e trocam experiências de viagens. Tensa, mas agora confiante, a mulher fala muito. Apresentam-se. Ela é turismóloga ele é escritor.
— Escrevo narrativas, coloco no papel histórias que ouço, mas só as melhores — acham graça.
— Se contar a minha, o senhor publica sem identificar?
— Sim, claro. Para ser conhecida, uma história, deve ser divulgada. Omitida, desaparece — Comenta o homem pronto para ouvir.
A mulher fecha os olhos para concatenar as ideias e inicia a narrativa. As mãos juntas.
— Fui casada por quinze anos com um argentino. Homem de temperamento forte, mas alto, bonito e galanteador. Fazia frequentes viagens de Córdoba, na Argentina, ao Rio Grande do Sul para visitar amigos em Caxias. Quando nos conhecemos, eu era jovem, recém-entrada na idade adulta, inexperiente, apesar de um filho de relação anterior. Apresentados por amigos comuns, desde o início houve empatia, mesmo com a grande diferença de idade, o que nunca levei em conta. Com nove anos de namoro, casamos e fomos para a terra dele, onde exercia importante cargo público. Para ocupar o tempo cursei Belas Artes na Universidade local. — aquieta por instantes, procurando dados na memória.
— Falar com estranho, pode ser melhor que com amigo — instiga o escritor que logo silencia. Sabe a importância de ser ouvido.
— Vivíamos em festas de representação, jantares sociais na alta sociedade, onde ele era influente. Nossa vida era intensa. Mesmo assim, queríamos ter filhos e, como não engravidava, após cinco anos, resolvi fazer tratamento. Não compreendia a dificuldade para engravidar, pois já tinha um filho. Foram muitas tentativas de inseminação e, finalmente, desistimos. Para compensar, meu filho morava conosco e se dava muito bem com o padrasto. Costumavam sair para pescarias e a boa convivência entre eles era meu orgulho e tranquilidade. Isso compensava o tratamento machista que recebia no dia a dia. Sim, meu marido tinha temperamento ríspido, típico do homem portenho.
Vez por outra, o companheiro de viagem massageia o pescoço que dói forçado a olhar para a mulher da poltrona ao lado. O aviso de apertar cintos apaga e as comissárias iniciam o serviço de bordo.
— A posição firme do machista na vida social escondia um homem simples e emotivo, alterado de uma hora para outra quando confrontado com situações de estresse. Procurava entender a criação rígida recebida do pai autoritário e relevava as grosserias, que longe de mudar, só pioravam. Passou a viajar e ausentar-se de casa por longos períodos. Ao longo da convivência, a relação tornava-se burocrática. A vida conjugal cedeu lugar à frieza e praticamente desistimos do contato físico.
 — Quer cappuccino? — pergunta o escritor. A mulher aceita e ele pede dois à comissária. Ao receber os copos, passa um para a mulher, que segue o relato.
— Para preencher o tempo, resolvi aperfeiçoar-me em pintura. Contratei um  conhecido artista plástico, para ministrar aulas semanais em casa, o que se mostrou um hobby ideal. Com dois meses, o artista perguntou-me sobre meu marido o qual nunca havia visto e nem sabia o nome. Conduzi-o até a biblioteca e apontei o enorme pôster do casal, alguns anos mais jovens, presente dele, nas comemorações de dez anos de casados. O artista empalideceu. Perguntei o que acontecera. Pensativo, pediu licença e voltamos ao ateliê. Serviu-se de um copo d’agua. Sem dúvida, o transtorno do mestre aconteceu ao ver a foto. Ao término do horário, despediu-se e saiu. À noite, já de Buenos Aires, o artista liga e informa o cancelamento do contrato de ensino. Fala vagamente sobre compromissos impeditivos.
— As pessoas são agentes das ações do destino — fala o escritor recolhendo os copos vazios dos cappuccinos e colocando-os na mesa da poltrona do corredor.
— Percebi a mudança no artista, sentei na sala de estar e adormeci. Era noite quando meu marido chegou e, como hábito, cobra a janta. Passo o cartão de meu professor e pergunto de onde conhece o mestre da pintura de Buenos Aires. Pense num homem desconcertado. Após explicações inteligíveis, convidou-me para jantar fora. Nos aprontamos rapidamente em silêncio. Rodamos por uma hora, até o pequeno restaurante La Coruña, na estrada para Buenos Aires. Um lugar deserto, de comida cara, mas excelente, bem frequentado pela alta sociedade.
— Permanecemos em silêncio por longo tempo, rompido por ele. Começou a falar sobre a sexualidade reprimida, o assédio na infância pelo padrasto e, para meu espanto, do caso com o mestre Juan Carlos, convívio que arrastou por anos, mesmo após nosso casamento. Meu marido chorou muito, pediu perdão e implorou para permanecermos juntos. Falei sobre a dificuldade em aceitar a vida dele. Afinal, tinha vida dupla entre nossa cama e de outros “amigos”. Argumentou que juntos, eu poderia levar a vida que quisesse. Levantei, nos despedimos e tomei um táxi até um hotel. Nosso divórcio saiu em tempo recorde na Argentina. A homologação no Brasil se arrasta há anos. Somos grandes amigos agora, mas convivência marital é impossível.
O comandante acende avisos de apertar cintos. Descreve o tempo na capital, instrui passageiros em conexão e o avião aderna emparelhando com a pista de pouso.
Foram duas horas e quinze de voo que pareceram dez minutos. A mulher abre a Bíblia e pede licença para ler o Salmo de ajuda ao piloto para aterrissagem tranquila.
No saguão se despedem. Ela segue para a conexão. O escritor pega a bagagem e procura o ponto de táxi.