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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

GENTE URUGUAIA

(Arquivo Pessoal - Malu)
Em passeio por Montevideo, percebo a senhora solitária de biquíni. São duas da tarde no calçadão da Rambla Presidente Wilson, no elegante bairro de Punta Carretas. À vontade, a turista cadencia passinhos curtos. O sol forte não ajuda e a água do Rio de la Plata permanece fria, inibindo a banhista. Sem celular, bolsa, nada que atrapalhe a caminhada. Nem companhia. Está tranquila, cabeça alta, queixo empinado e discreto remexer de quadris com movimentos suaves.
Ligo o carro e sigo adiante, até o homem com roupa de mergulho. Roupa preta e meias de borracha, pés de pato nas mãos, óculos, máscara de nadador. Imagino que esteja preparado para enfrentar as gélidas águas do Rio de la Plata, frias mesmo em dias quentes. Vez por outra, o homem para e olha a imensidão das águas do rio. O olhar parece perdido ao longo das ondas do que pode ser chamado de Mar de la Plata.
Na verdade também estou desencorajado. Na Rambla República Helenica, molho os pés na praia e desanimo. Observo o mergulhador solitário e a seguir a dama de biquíni preto, que agora nos alcança. Cruzam-se indiferentes. Eu, o único elo. A mulher segue o caminho com passinhos curtos e displicentes, elegante e ingênua. Despercebidos um do outro, são protagonistas da minha história. Um olhar entre eles, mesmo rápido, poderia marcar encontro de intenções comuns. Ambos olham o mar, perdidos em mundos diferentes. O homem, mergulhado em observações marinhas. A mulher, saboreando a brisa fresca, aproveita o sol forte, esquenta o coração e bronzeia o corpo maduro. Ambos esperam o rio esquentar as águas e recebê-los. O sol se põe devagar.
À noite, na Plaza de Cagancha, encontro Nelis. Moradora de rua da capital uruguaia, espera condução que a levará ao abrigo do governo. Fala abertamente da vida, das perdas, dos ganhos, sem arrependimentos, sem dificuldades. Interessado em treinar o espanhol, sento ao lado. Nelis coleciona vários sacos guardados impecavelmente e organizados em um carrinho de supermercado. Roupas e objetos de uso pessoal. Teve dois filhos. O mais novo morreu aos 19 anos, de acidente de moto. Do outro, desconhece o paradeiro. Perderam-se quando ele separou da mulher no Uruguai e mudou para a Argentina. Tentou ir atrás, mas “Buenos Aires é muito grande”, explica chorosa.
Gosta de morar nas ruas de Montevideo e reclama do problema dermatológico que exige cuidados especiais, obrigando-a a visitas médicas frequentes. Avalio que prefere assim, pois ganha atenção durante as consultas. Nas ruas, ninguém manda. Usufrui de assistência médica e remédios doados pelo governo enquanto necessitar. Manifesta-se contrária à liberação da marijuana, mas não julga quem usa. “Nas ruas tudo está tranquilo, mas pode se complicar para quem vive nelas”. Teme acabar a segurança com a liberação.
Chega o ônibus. Ela despede-se com abraço apertado. Quando o ônibus sai, grita preocupada: “não coloca meu nome!”. Obedeci.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

FIM DE SEMANA EM MONTEVIDEO

(Arquivo pessoal - Malu)

Chego a Montevideo ao entardecer de um sábado com a temperatura a quase quarenta graus. À noite, o calor arrefece e passeio pela Avenida 18 de Julho em busca de livrarias. Procuro versões novas de autores consagrados, entre eles Isabel Allende e Garcia Marques. Edições modernas são confeccionadas com papel e capas menos dispendiosas, consequentemente, boas de preço.
No domingo, a temperatura está confortável. Pego o mapa e saio à procura de pontos turísticos importantes, como o imponente teatro Solis. Depois, o Cais do Porto, onde faço as primeiras compras. À tardinha, surpreendo-me com o movimento de pedestres na cidade. Os uruguaios saem às ruas e passeiam pelas praças. O comércio da Avenida 18 de Julho, uma das principais da cidade, é tomado por clientes ávidos. Livros, alimentos, roupas e cassinos são os locais escolhidos. Quem não compra, anda a passos lentos pelas calçadas. Senhoras com bengalas, jovens enamorados e amigos desfilam preguiçosos.
Em direção à Plaza Independencia aproximo da Plaza de Cagancha. Do outro lado da rua, a revistaria cujo letreiro luminoso exibe o assunto do momento: a marijuana, manchete no jornal El Pais. No banco da praça, três moradores de rua desconfiados aguardam a condução ao albergue.
Continuo pela avenida e ouço música e burburinho de vozes. Sigo a passos lentos, mesmo ritmo da noite preguiçosa da capital uruguaia. Observo o comércio, as vitrines, as pessoas. Chego à origem do som, a Plaza Fabiel, onde duas grandes caixas acústicas tocam um tango bem marcado, dançado por uma dezena de elegantes casais de idosos, admiradores do estiloso ritmo. Quem está sem par curte Carlos Gardel, ídolo eterno e disputado entre argentinos e uruguaios, cada qual afirmando que é filho de suas terras. Divertida, a vida na praça segue indiferente à disputa nacionalista.

(Arquivo pessoal-Malu)
Em outro lado da praça, uma banda toca sucessos regionais dos anos 60 e 70. O cantor animado dança acompanhado das palmas da plateia. Chama a atenção o guitarrista que dedilha solos impecáveis. Um uruguaio grisalho, alto, risonho, com grande bigode e elegância discreta. Pares se formam e dançam separados ou juntos, dependendo do ritmo oferecido, enfeitiçados pelo ambiente enluarado.
Minha resistência é pouca quando há espaço para dança. Chamo Malu, a companheira de viagem pela vida. Entramos na pista e só saímos à meia-noite, quando a banda encerra as atividades. Cessa a música, mas o vai e vem pela praça continua e a conversa corre solta. Percebo turistas brasileiros isolados com seus celulares.
Às duas da manhã volto ao hotel. Há tempo não ando despreocupado pelas ruas. Desde os anos 70 em Porto Alegre, quando adolescente, voltava para casa com o sol nascendo. Se no Uruguai é possível transitar livremente, o que acontece com as cidades brasileiras, infestadas de perigo?
Após este, vieram outros dez dias de passeios, diversões pitorescas, conversas com a população e impressões pessoais. Viagens por Punta del Este, Colonia de Sacramento, Piriápolis e Atlântida. Dias despreocupados, pelo país que passa sensação de segurança e tranquilidade.