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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

AS DORES DO ABANDONO

(Google-Imagens)
Antes de entrar, observa demoradamente a varanda protegida com lona preta. Cuidadosa, empurra a porta encostada e entra. Lentas passadas, ajudadas por uma bengala levam a mulher que deixa agradável perfume na sala da casa de madeira. Usa bolsa e sapatos de couro marrom, calças de brim e blusa amarrada na cintura.
A residência é simples, os móveis surrados. A dona da casa, sua irmã, a recebe com breve sorriso. Marcaram o encontro no dia anterior. A recém-chegada sente o coração acelerar e torce as mãos de ansiedade ao perceber o rapaz com uniforme militar e boné entre as mãos. Apesar dos anos de separação, o reconhece imediatamente. Lentamente vai ao seu encontro e, quando está perto, deixa a bengala cair e o abraça forte. É recebida com braços arriados ao longo do corpo. O homem está frio, como estão gelados seus sentimentos.
- Pedro, meu filho, senti muito sua falta – soluça abraçada ao rapaz. O rosto afundado em seu peito.
A anfitriã observa o distanciamento, conhece os motivos. Há aproximadamente 25 anos, a mulher abandonou o rapaz na rodoviária de Brasília. A criança contava cerca de cinco anos de idade e foi deixada numa fila de ônibus, após passeio pelo Conjunto Nacional. Disse que compraria pastel e desapareceu. Depois, informou a Administração que avistara um menino perdido no piso inferior, descreveu-o e saiu rapidamente. Pedro foi levado pela assistente social à creche do governo.
Quando a tia o chamou para reencontrar a mãe, Pedro relutou muito.
- Não tinha condições de te sustentar, querido. Nem você nem sua irmã – fala baixo ao filho impassível. Continua abraçada ao rapaz. - Quando conheci Alfredo, ele exigiu que eu desse um de vocês. Escolhi você, mais velho e menino, tinha melhores chances de sobrevivência que sua irmã de colo.
As explicações em nada mudam o comportamento do rapaz e a mãe procura amparo nos olhos da irmã, que desvia o olhar para o chão.
A tia também é responsável por parte da história difícil do rapaz. Quando soube que seria desligado do abrigo, ao completar treze anos, ficou penalizada e o levou para casa. Mas a sina estava longe do fim. Chegando lá, o adolescente foi muito mal recebido e, francamente hostilizado pelo tio e primos. Como exigiram que dormisse fora de casa, a tia alojou-o na varanda, protegido apenas por lona plástica preta. Nas madrugadas frias, enroscava-se com o cachorro e o gato para se aquecer. Dormindo nesse estado a mãe o viu em visita a irmã e novamente desapareceu.
Durante a adolescência, carente de relacionamentos, compensava com as melhores médias da escola e assim foi o primeiro colocado no Colégio Militar.
- Filho, quero pedir perdão. Sei que tens dificuldade para perdoar, mas entenda, fiz por amor – tenta encarar o rapaz, que desvia para o lado.
- Tenho grande decepção contigo, nem sei chamá-la de mãe. Jamais me procura, diz que ama e pede perdão. Teve posição subalterna com relação ao teu companheiro e abandona uma criança na rodoviária. Nem imagina o que passei e pede perdão? Não é tão simples. Estou despreparado para perdoar – dirige-se à porta, abre e sai batendo-a forte. Na pressa, deixa cair um envelope e não percebe.
A mãe chora baixinho enquanto a tia corre atrás do rapaz com o papel na mão, mas o carro está longe. Abre o envelope. É um laudo médico. Lê e passa para a mãe.
“Paciente com surtos psicóticos, provável esquizofrenia. Indicação de acompanhamento por psicoterapeuta e psiquiatra. Focar tratamento na infância”.

sábado, 16 de novembro de 2013

PRISIONEIRO

(Google Imagens)
A fechadura abre com barulho ensurdecedor, a porta escancara e entra intensa luminosidade que fere os olhos do prisioneiro, acostumados a escuridão. Aparece a silhueta do homem que diariamente faz tremer o rapaz algemado ao banco de madeira aplicando métodos de tortura para obriga-lo a entregar amigos. Sempre a mesma gravata surrada, calças e sapatos pretos. Encara o rapaz com desdém. O prisioneiro entende que a sessão de tortura iniciará. Se igual às anteriores, o fim está próximo. O sangue gela, como acontece sempre que antecede as sessões. O recém-chegado acende a potente lamparina da mesa e foca no prisioneiro.
Atrás do homem de preto, entra outro, de avental branco e longo bigode grisalho. Fecha a porta e aproxima-se do prisioneiro. Levanta a pálpebra esquerda e pergunta o nome:
- José P. – responde após longo silêncio, rouco, voz baixa, quase imperceptível. O desânimo toma conta do rapaz.
- Dificilmente resistirá a mais uma sessão. – o homem de avental branco fala pausado, com experiência de médico de pronto socorro. Detesta o torturador, classifica-o como frio e sanguinário. Já atendera prisioneiros  passados pelas mãos do homem.
- Se quiser viver, que assine a confissão. – o carrasco fala alto, esbraveja que não é problema dele e reafirma que fará o trabalho. Atira uma folha de papel na frente do prisioneiro. A assinatura, bem sabia o médico, não afiançava a vida do torturado.
- A saúde está comprometida pelos maus tratos no pau de arara, os eletrochoques e dias sem comida e água. – reafirma.
José P. fora retirado de casa acusado de terrorismo, levado de pijama para um porão e submetido a toda sorte de sevícias. Taxado de terrorismo contra o Estado, o estado do rapaz era lastimável, com olhos vermelhos  emoldurados por profundas marcas negras. Na boca, um hematoma que pululava gosma branca a escorria peito abaixo.
- Que diga o que tem a dizer, por bem ou por mal. Basta assinar o documento sobre a mesa. – o torturador exultava os momentos que antecediam o início do interrogatório.
- Não posso atestar pela saúde do prisioneiro. Deve ser internado em um hospital imediatamente. Posso ter o diploma cassado. – o médico se preocupa com a reputação e isto enraivece o torturador.
- Pouco me interessa. Iniciarei a sessão -. Vira e liga o equipamento de som. A sala inunda o ambiente com música clássica. Abre o volume ao máximo, e enfia um par de luvas cirúrgicas.
O médico percebe o prisioneiro fixado no revólver em cima da mesa. Por instantes, se entreolham, costurando tenra cumplicidade.
Alheio aos acontecimentos, cego de raiva, o torturador coloca as luvas, o capuz, a soqueira, toma água. Ouve dois estampidos. A dor lancinante e instantânea o impede de respirar. Volta-se, leva a mão à cintura a procura da arma. Percebe-a na mão do prisioneiro. Mais dois estampidos e cai em agonia.
Enquanto o médico atende o carrasco, ouve outro tiro. Apressado larga o moribundo e atende ao rapaz que, sem coragem de tirar a própria vida, acertara o teto da cela.