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quinta-feira, 25 de julho de 2013

EU TENHO MEDO

(Google Imagens)
Após o divórcio, aposentado que estava há dez anos, Flávio passa a queixar de tristeza e desamparo. Apresenta como motivo principal os escassos proventos e as chances minguadas de fazer algo para engrossá-los. É morador da Asa Sul de Brasília e acumula conhecimentos profissionais. É economista com Doutorado, participou de inúmeras empresas multinacionais, viajou o mundo e trabalhou em várias embaixadas. Acostumado a lidar com autoridades, fez importantes contatos e realizou seus sonhos em termos de sucesso e ganhos profissionais. Atualmente, nada disso conta. Desenvolveu o que classifica de importante “fobia social”.
Examina o passado e verifica que certa apatia sempre o acompanhou pela vida afora. Acredita que começou quando criança, vítima de pai forte e autoritário, que o classificava de franzino e desamparado.  A família era grande. Flávio tinha oito irmãos homens e, caçula, conhecido por permanecer a maior parte do tempo calado, esperando alguém o defender. Quando alvo de chacota, o pai saía em defesa. Salientava a fragilidade e colocava o autor da gozação de castigo. Nesta fase, os irmãos o chamavam por Imperador, apelido que seguiu por boa parte de sua vida.  Atendia o pai, orgulhoso da imponência do codinome e aos irmãos e amigos, conhecedores do verdadeiro significado. Inicialmente o único ofendido, Flávio desenvolveu leve piscar do olho esquerdo toda vez que o chamavam “Fala Imperador”! Depois, acostumado, gostava, sem abandonar o tique nervoso.
Na vida adulta, Flávio teve importantes problemas ao deixar de ser Imperador. Em casa reinava absoluto, respeitado e tratado como monarca por todos, mesmo que soasse falso. Na escola e mais tarde também no trabalho, sentia-se humilhado pela falta de respeito dos colegas que desprezavam suas opiniões. Flávio escondia-se na timidez para eximir-se de opinar.
Fez um curso de Direito, mas na primeira vez que subiu a tribuna para defender o réu, suou frio e foi incapaz de pronunciar as primeiras palavras do ritual e assim, viu encerrada a carreira jurídica.
Vive praticamente só. Fechou contrato formal com a faxineira, dona Carmelita, a qual tem direito de usufruir da cama de casal. Quando os filhos perguntam sobre a relação com a mulher, jura ajudá-la por precisar de teto para morar e desfia discurso sobre como as pessoas hoje em dia se omitem de abrigar convenientemente seus serviçais.
Um dia estava no Centro Cultural Banco do Brasil assistindo “um corpo que cai”, filme de Hitchcook que tem no enredo o medo, seus efeitos e a forma de desenvolvimento, esclarecendo que pode paralisar e causar estragos terríveis. “É o melhor filme deste autor”, explica Flávio.
Flávio é frequentador assíduo de salas de cinemas, restaurantes e praças de alimentação. Sempre só, espera por um ouvido amigo disposto a  ouvir suas histórias de medo e paralização, pois descrê de terapias.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O REVOLUCIONÁRIO

(Manifestação Brasília - Google Imagens)
Carlos bem que tenta chegar a Rodoviária na hora combinada, mas atrasa uma hora. Procura por Deise no segundo banco de pedra, a esquerda da pastelaria, vazio. Olha em volta. Cansada de esperar, a moça acompanhou a multidão rumo ao Congresso. Deixar celular em casa foi péssima ideia. Estavam incomunicáveis. A manifestação engrossa e os ônibus despejam jovens falantes e energizados. Logo hoje que convidaria a moça para jantar, se perdem.
O homem compra uma lata de cerveja, dois pastéis e desce a Esplanada dos Ministérios, acompanhando a corrente barulhenta.
Nos anos sessenta, participou de passeatas pelo fim da Ditadura Militar e revigora com a oportunidade de repetir a dose. Na mochila, latinha de refrigerante, bolo de fubá preparado por Rose, e garrafa de vinagre substituíam o kit anti-ditadura de coquetel molotov, bolinhas de gude, cantil de água e foto de Che Guevara, orgulho da juventude. Mas o importante seria a companhia de Deise, se a encontrasse.
Conhecera a moça na primeira manifestação há dez dias. Estudante, morena, vinte e cinco anos, remeteu Paulo a juventude, ao lhe cair nos braços chorando, com dificuldades respiratórias, invadida por gás lacrimogênio. Derramou vinagre na manga da camisa e a fez aspirar. Depois disso, permaneceram juntos gritando palavras de ordem. Foi o bastante. A partir daí, encontravam-se todos os dias para as manifestações. Rose estranhou o arroubo repentino do marido aposentado pela queda da passagem do Metrô.
- O preço do Metrô está pela hora da morte, explicava o sessentão.
¬¬¬ - Mas você só usa carro - gritava a mulher ao homem que saía apressado.
Sem Deise, descia a avenida lado a lado com o grupo de estudantes, imerso no orgulho da posição revolucionária. Ao passar a catedral recorda o tempo de estudante secundarista e a imagem do cartaz “Abaixo a Ditadura”, lado a lado com Rose, hoje mãe de seus seis filhos.
Sente cansaço e percebe os encapuzados apertando o passo. Tenta correr, mas fica pelo caminho, arfando. À frente, a coluna de policiais espera, quieta, cassetetes em mãos. Alguém lhe entrega um saco com bolas de gude. Pesado, deixa cair. Onde estaria Deise?
Ao chegar ao espelho d’água do Congresso, encontra a multidão nervosa. “O povo unido, jamais será vencido”, grita, a voz se perde. A nuvem de gás pimenta obriga a fechar os olhos, tateia a mochila atrás de vinagre. O policial arranca o frasco das mãos.
Em meio a forte neblina, Paulo percebe o casal sair da água. Era Deise de mãos dadas com um jovem. Molhados e sorridentes o casal se olha com ternura. Os olhos do revolucionário lacrimejam e culpa o gás. A manifestação chega ao auge. Para ele, é o fim. É hora de retornar e, com dificuldade, esforça para locomover de volta a Rodoviária. A multidão agita. A correria começa com policiais agredindo. A energia de Paulo esgota e se vê cercado. De um lado, jovens com cartazes e gritos. De outro, policiais. O barulho distancia. Lembra os netos e a mulher que assiste novela em casa. A mochila nas costas de tão pesada, está impossível de carregar. Desaba no gramado.
- Tá tudo bem, vovô? – Pergunta a jovem de rosto colado ao seu.
Seria Deise?
- Este é o velhinho que te falei, foi ativista nas passeatas da Ditadura. Pensei que havia desistido – fala a moça ao rapaz.
Afastam a moça. Sirene, luz vermelha piscando. Escurece. Acorda. É levado por vultos de branco. Ruído de rodas e correria de luzes por sua cabeça. Atravessa um corredor branco. Quer falar, mas o tubo na boca impede.