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segunda-feira, 20 de maio de 2013

JOSÉ, O CONSUMIDOR

(Google Imagens)

José entrega documentos o dia inteiro no Setor Comercial Sul de Brasília. Mora no condomínio Sol Nascente para quem não conhece, “pra lá da Ceilândia”. Chega ao Plano Piloto de carona no ônibus do “seu” Miguel, porque pode pular a roleta e economizar passagem. Toma o café da manhã no escritório de contabilidade onde trabalha como contínuo. O almoço compra do vendedor de marmita do bloco comercial, com vale-refeição por R$ 2,50. Feijão, arroz, batata frita e carne assada.
Sai do escritório as sete da noite, após cumprir jornada de oito horas, com quinze minutos para almoço. Influenciado  por amigos, consome drogas e há um mês, no consumo do crack. Parte do ganho com gorjetas das entregas fuma da pedra comprada no próprio Setor e o restante, ao descer do ônibus a noite, na guarita do condomínio.
Em frente ao conjunto de escritórios um Shopping recebe consumidores que trocam salários por roupas caras, satisfazendo filhos exigentes com grifes fabricadas em países asiáticos. José tem muito em comum com a mão de obra barata. O parco ganho que expulsa das compras e empurra à marginalidade.
O pagamento fixo do final do mês, respeita, passa a mulher com quem vive e tem dois filhos e na qual descarrega a ira desenfreada pelo abuso da pedra que o consome. Socorro compra leite, alimentação dos filhos e sacrifica por vezes a si própria. Nos finais de semana, assistem televisão na “casa da frente” saboreando pipoca com refrigerante, patrocinados pelo sogro. O sofrimento da mulher é traduzido por sangramento ginecológico que o médico do posto de saúde desconhece a causa.
Enquanto escrevia, soube que José fora expulso de casa por Socorro cansada dos maus tratos. Ainda tentei apaziguar os ânimos da moça sugerindo, em nome do amor, que esquecesse tudo e perdoasse José, ao que ensinou-me que no amor mais importante era perdoar do que esquecer e cansara de perdoar.
A partir deste dia, as sete da noite, o rapaz de vinte e dois anos pode ser visto entre dois blocos de escritórios no setor Comercial, misturado a dezenas de outros, a ratos e dejetos. Ali, onde o olhar do pedestre se perde, José e amigos se drogam num vai e vem nervoso e arrastado. O acesso é o mesmo usado pelos compradores do shopping e é onde se misturam consumidores para gastar seus salários, uns em quinquilharias de marcas famosas, outros para consumir o crack.
Em diferentes situações correm para amenizar fissuras. Uns nas vitrines e compras, José e amigos no crack.  Todos obcecados por seus produtos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

LEMBRANÇAS ENGANAM

(Google Imagens)

Carrego alguns fantasmas até certo ponto inofensivos, pois convivo bem com os entraves que causam. Exemplifico com a cena da avó sacrificando galinhas para o almoço. Éramos cerca de dez crianças entre primos e amigos que gostavam de assistir as atividades do dia a dia dos adultos. Uma delas acontecia no quintal de casa, onde vovó tinha um galinheiro com a finalidade de criação e abate para consumo. A morte das galinhas é trauma enfrentado pelas crianças da família que recordam com certo sofrimento,
Apesar de parecer brutal, era algo esperado e se arrastava há gerações. A vó fazia o que aprendera com os pais, meus bisavós. Após a morte de meu avô, assumiu para si o sacrifício e assisti muitas vezes derramar lágrimas escondida no galpão dos fundos.  Meu pai certa vez até tentou substituí-la, mas foi só fiasco. Não suportava agarrar a penosa pelo pescoço e dar seis voltas no ar, sentido horário para desnucar. Certo dia, a penosa se soltou de sua mão e saiu a cacarejar pelo quintal, num morre - vive sem fim. O último suspiro aconteceu com vovó e o facão de mato que usou para decepar a cabeça que voou separando-a do corpo.
Assistíamos ao ritual até o dia que alguém classificou o show de macabro e desnecessário. Fomos proibidos de assistir a matança. Quando chegava a hora, éramos conduzidos ao quarto dos fundos do quintal, de onde ouvíamos apenas os gritos esganiçados da penosa da vez.
Certo dia entrou a arte do tio Arnoldo. Armou a cena nos separando no quartinho dizendo que haveria matança, pegou as galinhas, amarrou-as pelas patas e as jogou pelo chão de barro. A gritaria foi grande e os ouvidos acostumados a ligar o som a matança, nos enganaram e a adrenalina cresceu sem motivo. Quando recordo aqueles  momentos, tenho viva a cena das galinhas pulando no quintal, debatendo-se sem cabeças, apesar do fato desmentido incansavelmente.
Assim funcionam as lembranças. Vez por outra nos traem. O que ouvimos nem sempre correspondem a imagens verdadeiras. E isto acontece também entre pessoas. Cada um monta o outro da forma que mais agrada raras vezes como é realmente. O pai e o namorado com relação ao amor pela moça é exemplo. O pai resgata a filha que viu nascer, criou e vê com a pureza da infância e o frescor da adolescência, plena de virtudes. O namorado vê a moça como a princesa afável e pudica que cuidará da casa e da prole, com desenvoltura. Poço de meiguice, projetando a imagem da própria mãe.
Assim iniciam a vida comum e as primeiras rusgas e o rapaz conclui que o queridíssimo amor não corresponde a idealizada. A moça, da mesma forma, se depara com o príncipe real, bem diferente da imaginação e do pai protetor.
Estes conflitos são usualmente os primeiros que surgem na vida do casal, pois a idealização nunca será aquilo que um espera do outro.
Melhor mesmo é esquecer este passado, aceitar o parceiro como é, sem expectativas. Pleno de defeitos e virtudes, ciente que todos somos de carne e osso. Mais tarde, se decidir matar galinhas no quintal, que tenham o bom senso de levar as crianças a um lugar seguro para deixá-las livre de gritos esganiçados.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

AMIZADE TEM LIMITES

(Google Imagens)

- Eram três da tarde quando cheguei ao apartamento de Zoraia.- conta Roberto enquanto senta na poltrona em frente ao amigo..
- Como a conheceu? – Pergunta Marinho. 
- Você não prestou atenção, mas tudo bem repito. Ainda casado e morando em São Paulo, diariamente Zoraia e eu corríamos no Ibirapuera pela manhã. Pura amizade. Um dia foi transferida para o Rio e montou apartamento no Leblon. Recebi o endereço por um torpedo e o convite para quando fosse ao Rio, visita-la. A chance apareceu quando separei da Maria. Precisava espairecer e aceitei a oferta. Agora entendeu? – perguntou Roberto.
- Claro, prossiga.
Se conheciam há mais de vinte anos e nada acontecia com um que o outro ignorasse.
- Pois bem, Zoraia abriu a porta vestida apenas com camisola vermelha e convidou a entrar. O apartamento era de quarto e sala, decorado com imitação de cabine de navio com janelas tipo escotilha de gesso branco.  A um canto, um timão de barco e luminária dourada completavam a decoração. Parecia incomodada ao me perceber medindo o apartamento e  ressaltou que avisara sobre o tamanho. Tive de dormir no sofá na sala. 
- Pensei que dormiriam na mesma cama, afinal, divorciados, nada os impediria. – Marinho sabia que o amigo não desperdiçaria a chance, principalmente se tratando de Zoraia, morena linda e disponível no mesmo teto.
- Já te falei que nunca tivemos nada, apenas aceitei o convite para hospedar. Precisava espairecer durante o período crítico da separação. Fazer o luto da convivência com Maria. Enquanto Zoraia trabalhava, eu caminhava na praia. 
- Ora, eu mereço, conta outra. Durante o dia, Zoraia trabalhava e você curtia praia. Ela chegava, deitava e dormia. Faça-me o favor – Marinho abriu uma ceveja e dividiu em dois copos.
Roberto prosseguiu.
- No sábado ao acordar, observei um pacote de baseados na mesa. Algo mais seria servido no apartamento naquele dia, além da cerveja na geladeira.  Arrumei minhas coisas e saí sem despedir. No caminho, encontrei um policial com cão farejador que me cheirou dos pés a cabeça e só me liberaram após o bicho interessar pelo cheiro do apartamento de Zoraia. De mansinho, ganhei a rua. Tomei o metrô e cá estou. Amanhã quero praia e até lá, abrigar na tua casa. 
Marinho percebeu a intensão do amigo de terminar as férias em sua casa e o encaminhou para o quarto vago. Ao passar pela cozinha, percebeu o olho comprido do amigo para a irmã e avisou:
- Se der em cima de Alice, te boto porta afora.