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terça-feira, 26 de março de 2013

QUANDO O DIA AMANHECE

(Google Imagens)

Eram duas horas da manhã quando o avião taxiou na pista a caminho da plataforma de desembarque. A moça ergueu da poltrona e deixou-se cair novamente. Estava exausta. Leve dor de cabeça a incomodava desde a partida. Os dedos queimados a denunciavam.
Esperou o último passageiro descer. A comissária perguntou o destino e, sem responder, levantou-se e rumou a porta de saída. Da esteira de bagagens acenou ao irmão que esperava no desembarque. Pegou as malas e apressou-se a abraçá-lo. Por sobre os ombros, reconheceu os pais e impressionou-se com a mudança nas fisionomias e, por um momento, avistou o próprio semblante na porta de vidro. Pálida, olhos fundos e magérrima sentiu fraqueza, segurando-se no carrinho de bagagem.
Separados pelas paredes de vidro, todos se espiavam em silêncio enquanto a moça seguia ao encontro familiar. Abraçou o pai que a acalentou demoradamente, esfregando a mão quente nas costas onde salientavam as costelas. O homem tentava identificar o rosto enterrado em seu ombro, se da filha ou de uma desconhecida.
Com os olhos localizou a mãe. A jovem foi abraçada. Os braços da mãe eram tentáculos que a  entrelaçavam e formavam grossa rede de proteção do mundo que conhecera. Abraçaram-se fortemente e a jovem derramava  lágrimas que não sabia ser de felicidade ou dor reprimida por sentir-se abandonada por si mesma ao seguir a direção de terras estranhas e hábitos doentios mergulhando-a na onda de vícios. Impassível diante do abraço da filha, a mãe demonstrava claramente a distância entre as duas. Anos de ausência quase romperam o elo entre as duas. O abraço apesar de afetuoso, não indicava mudanças. Eram duas estranhas que buscavam nos rostos o resto da familiaridade perdida.
Em silêncio, pai, irmão e a recém chegada tomaram o rumo da clínica de reabilitação e, em pouco mais de uma hora, estavam em frente ao médico plantonista que, avisado previamente, os esperava acolhedor. Foram duas horas de entrevistas, perguntas e preparativos. A manhã fria de outono climatizava a despedida à saída da clínica. Pai e irmão partiram. Sozinha na sala de espera a jovem chorava atormentada pela abstinência. Preparava-se para enfrentar as primeiras setenta e duas horas, parte dolorosa e importante do tratamento. Ouvira do médico sobre as chances de sair saudável da internação, escassas, caso não houvesse comprometimento pessoal com o tratamento. Levantou a gola do casaco para proteger do frio e acendeu um cigarro. Enquanto aspirava a fumaça quente e seca, reviu o filme de sua vida, e ao lembrar a imagem na porta do aeroporto, foi dominada por um frio na barriga. Pensou nas filhas que ainda não vira e mais uma vez as lágrimas rolaram. Precisava dominar a doença das drogas. O choro compulsivo sacudiu o peito magro de seios murchos. O médico mandou preparar medicação e a cama para a nova interna. Invadida por profunda tristeza, cabisbaixa seguiu para o alojamento.

quinta-feira, 7 de março de 2013

AVENTURA 4 X 4 – Final

(Loquinhas- Arquivo pessoal)



Levantei cedo, fechei a conta e dei adeus ao povoado São Jorge. Um dia voltarei em tempo seco e aproveito as cachoeiras. Às nove horas estava em Alto Paraíso e localizei a pousada que ficara há vinte anos. Após projeto paisagístico, passava a sensação de estar incrustrada na mata. No jardim, o totem com ares misteriosos proporcionou momentos de meditação. Ao perceber interesse, o proprietário explicou “veio em contêiner diretamente do Tibete ao porto de Santos, depois seguiu de carreta a Alto Paraíso”.
Liguei para Bia, amiga de Brasília e moradora na cidade. Fez a diferença. Indicou visitas e por conhecer numerologia e astrologia gerou conversas interessantes sobre autoconhecimento. Bia foi incansável e programou passeios atraentes.

(Cachoeira de Loquinhas - Arquivo pessoal)

Na manhã de sábado, conheci detalhadamente a região das Loquinhas, com seus poços e cachoeiras. O tempo ensolarado ajudou. A excelente estrutura turística proporcionou passeios  seguros em trilhas de madeira com corrimãos. São várias quedas d’água, sendo a última, espetáculo de beleza ímpar. Um teatro armado pela natureza, cuja atriz principal é a cachoeira que contracena com árvores, borboletas coloridas e água corrente entre rochas. Permaneci plenamente harmonizado com a natureza.
No meio da tarde, Bia passou na pousada e rumamos ao paralelo 14. Pleno de misticismo, é o mesmo quadrante geográfico da lendária cidade de Machu Pichu no Peru originando histórias de ligações  subterrâneas entre as cidades. A formação de enormes pedras construiu o Jardim Zen, ornamentado por flores naturais, conjunto avistado de longe. Em uma das pedras que sentaríamos para descansar, tomava banho de sol a pequena cobra Limpa Campo. Acompanhou e guardou o monumento com olho atento e língua nervosa.
Assuntos de discos voadores e seres extraterrestres são temas  corriqueiros entre  moradores. Várias “tribos”, formadas por místicos, filósofos e religiosos, buscam formas de vida alternativa e transformam Alto Paraíso em cidade única e especial.
Há representantes de todo mundo residentes na cidade. São húngaros, franceses, indianos, espanhóis, originários da América Latina e do Norte e brasileiros do Oiapoque ao Chuí. São pessoas que afirmam ter recebido chamado inexplicável. No período conhecido por “fim do mundo” em final de 2012, acreditava-se, segundo as profecias, ser a única cidade sobrevivente o que trouxe várias personalidades. Uma delas Xuxa, convidada pela amiga Maria Paula, dona de fazenda na região. Acredito que a ex-rainha dos baixinhos esperava sobreviver para alegrar as crianças remanescentes.
Após o almoço, encontrei Tila, a cabelereira que chegou em dezembro vinda do interior de São Paulo e trouxe quatro dos seis filhos. Deixou para trás o marido alcoólatra após suportar desatinos por quase trinta anos. Há muito namorava Alto Paraíso pela internet. Os filhos a apoiaram e estão satisfeitos. Pretende crescer na carreira e montar o próprio salão. Há inúmeros estrangeiros que se radicaram na cidade. Trazem heranças, compram terras
Bia conta que a população cresce na mesma proporção da evasão. Muitos chegam, montam negócios prósperos e, após certo tempo desaparecem assim como apareceram, sem pistas. Comércios fortes de um ano para outro, fecham as portas e os donos somem.
Espalhados pela região existem cerca de quarenta grupos místicos, são daimistas, oshoístas, espíritas, evangélicos, budistas e outros. Alguns se fecham a visitação. Há seitas disponíveis apenas aos membros e  localizam onde menos se espera. Como ao pé dos inúmeros morros.
Assim é Alto Paraíso de Goiás. Talvez as pessoas sintam atração pela incrível beleza natural e depois caem na realidade de que o belo não gera sustento, pois o turismo é sazonal. Contemplar paisagens enche os olhos e não os bolsos. A cidade respira espiritualidade e, queira ou não, o visitante entra na onda cedo ou tarde.
A Chapada passa a certeza da simplicidade da vida. E assim cheguei a Brasília, pensando simples, desapegado, liberto de alguns valores que já passavam por transformação.
À saída da pousada tive dificuldade de desviar do cachorro que dormia preguiçosamente  estirado no meio da rua. Em Alto Paraíso, a vida, como a deste cão, parece fluir lerda. Cidade Zen para quem está convencido que tempo escasso é ficção dos grandes centros.