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domingo, 19 de agosto de 2012

RAINHA DA BATERIA

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A maquiagem de Rosilene  estava borrada quando chegou em casa. Eram dez horas da manhã e o marido havia saído para o trabalho. No pequeno e único quarto do barraco dormiam os dois filhos de sete e quatro anos. Cansada jogou-se na cama e adormeceu rapidamente e ainda ao som da bateria da escola de samba nos ouvidos e dos aplausos dos assistentes, sonhou com a avenida, as roupas e a alegria que a dominava uma vez por ano.
A semana dura de trabalho e os preparativos para o desfile envolveram-na completamente às vésperas do evento. “Carnaval é apenas uma vez por ano”, dizia ao marido quando reclamava que a perdia durante esta fase. Rosilene amava desfilar. Há dez anos, durante os meses de fevereiro era envolvida no turbilhão dos preparativos. Corte da fantasia, costura, ensaios atrasavam a chegada a casa até altas horas da noite. Por várias ocasiões amanhecera na rua. Em algumas noites, nem dormia, era chegar e iniciar os preparativos para sair. Tomar o ônibus para a Zona sul e enfrentar a dura faxina do apartamento dos patrões em Ipanema.
Nunca reclamava da rotina. É verdade que, passados os dias de folia, a culpa a abatia e se penitenciava em negligenciar o marido, os filhos, mas a sensação de desfilar na avenida compensava. Teria o que contar aos netos. Mas prometeu ao marido e filhos que este era o último ano a desfilar.
Todos os anos, durante a hora e meia do desfile, Rosilene brilhava e, ovacionada pelo público, a rainha da bateria requebrava com ancas espertas e plenas de sensualidade. Sentia-se verdadeira deusa aplaudida pela multidão que naqueles momentos a via de forma especial. Joca, o marido ficava em casa. “Prefiro ver pela televisão”. Na verdade, a preferência do marido era ficar em casa, assistindo juntos a evolução das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, “muito mais confortável e tranquilo”, falava com convicção de quem fora assaltado durante os carnavais da juventude.
Após a semana dedicada ao rei Momo, escrevia a família no Piauí.  Rosilene então colocava no envelope a foto atualizada com a fantasia daquele ano. Explicava não ter tempo de viajar e prometia, sem a preocupação de cumprir, que logo viajaria para os visitar e levar os filhos para que conhecessem. Mas, encantada pelo próximo desfile, após o carnaval, iniciava a economia, não para a viagem prometida, mas rumo ao evento do ano seguinte.
Desta vez prometera e cumpriria, “é o último ano que desfilo”. Atenderia aos pedidos dos filhos e do marido para gastar as energias e seu dinheiro em outras coisas, talvez quem sabe até na viagem ao nordeste, que o marido sozinho não dava conta de bancar. Parar com os desfiles era um esforço supremo e o marido reconhecia que conseguir isto da mulher era importante.
Acordou às três da tarde e correu ao banheiro para um banho. Precisava  aprontar e ficar bonita para fechar com chave de ouro a última noite de desfiles. Sua escola entraria na avenida as onze horas. A rede de televisão avisara que sua despedida seria destaque no principal programa da emissora no domingo seguinte.  Telefonou para o organizador e soube do repórter que a esperava. Deveria chegar, no máximo, oito da noite. Sem atrasos. De pé, tomou o caldo do feijão que o marido deixara e saiu porta afora, sem esperá-lo.
Ao ganhar à calçada, caminhava apressada até a parada de ônibus quando percebeu correria de pessoas a fugir do banco da esquina. Rosilene ficou na ponta dos pés e esticou o pescoço. No momento seguinte, percebeu um jovem com mochila nas costas que corria em sua direção. Passou por ela rapidamente perseguido por três policiais. Ouviu disparos e a vida da sambista, até então festiva, extinguiu-se. 

domingo, 12 de agosto de 2012

NEM DEPOIS DA MORTE

(Google Imagens)

Às dezessete horas chega Nicanor ao enterro do amigo. Ainda fora da capela, pede licença e abre caminho entre alguns conhecidos. Entra na sala mortuária e procura o corpo como se conhecer o dito cujo garantisse salvo conduto de permanência. Rodeavam o falecido coberto com flores, os filhos e alguns amigos comuns que o cumprimentaram com sorrisos breves e acenos de cabeça. Os de pé olhavam para o esquife. Os sentados conversavam animadamente sobre o julgamento das ações do mensalão pelo STF. Ao fundo, com cara de quem chorou a noite toda a viúva que, reconhecendo o recém-chegado, se aproxima cordial e afetuosa.
– Olá, há quanto tempo – falou a mulher estendendo a mão. – Já chorei muito, mas não de pena, de raiva mesmo – ciente do rosto inchado e sem maquiagem.
– Olá. – respondeu o recém-chegado perplexo pelo comentário – Cerca de trinta anos que não nos vemos. – E referindo-se ao morto – Agora descansará em paz, a doença o pegou em cheio. Fiquei sabendo.
– É mesmo, ficou com braços e pernas muito finos, só pele e osso. Soube que voltou para casa há uns seis meses? – Fez uma pausa para ver a reação. – Foi para morrer e tratei-o da melhor forma. Na verdade nem merecia este cachorro. – e olhou firme para o defunto, como querendo que ouvisse o comentário raivoso. – A gente tem que relevar, mortos são indefesos – Resignou-se.
            Nicanor espantou com a sinceridade da mulher e preferiu não alimentar a discussão. A amizade de quarenta anos andava meio apartada ultimamente e percebeu que pouco sabia da vida do amigo. Tentou aproximar quando soube da doença, mas recebeu de Mateus um esfriamento cheio de desculpas esfarrapadas. O amigo vivia recluso e sem amigos.
Certa vez foi visitá-lo no sítio na região rural onde vivia há seis anos, localizado a cerca de 50 kilômetros da cidade. Encontrou-o depressivo, cabisbaixo e embriagado. Percebeu o livro aberto de Platão, o cd Nova Era e a garrafa de uísque vazia sobre a pequena mesa com o tampo rachado. Passou a mão e sentiu-a grossa de poeira.  Naquele dia entendeu que algo andava errado, pois Mateus desconsiderou a presença. Nicanor, que foi visitar o amigo, saiu da casa da mesma forma que entrou, sem ser percebido. Um ano depois, cá estava, testemunha do sepultamento.
            Os filhos se aproximaram com pálpebras inchadas.
            – Quem é mãe? – pergunta o rapaz.
            – O Nicanor, amigo de longa data de seu pai.
            Cumprimentam Nicanor com aperto de mão e voltam para junto ao defunto. A menina rearranja as flores que cobrem o pai.
            – Você que foi grande amigo, pode responder algo íntimo sobre Mateus? – A mulher olha firme para o rosto do amigo e espreita a qualidade da resposta. Nicanor percebe o forte interesse e fala com a maior sinceridade que pode demonstrar.
            – Claro, nada tenho a esconder, pelo menos de quando éramos chegados. Quantos churrascos fizemos juntos, lembra? – Referia-se Nicanor há mais de quarenta anos, quando recém-formados, faziam piqueniques em cachoeiras nos arredores da cidade.
            – Então, – começa a mulher, baixando mais ainda o tom de voz, para garantir não ser ouvida – você acha que Mateus pode ter sido homossexual? Já li sobre isto e é mais comum do que se imagina.
            Nicanor se apruma, pigarreia e percebe de soslaio a mulher muito séria, demonstrando claramente a curiosidade feminina. Certifica-se que ninguém escuta e fica desconfortável ao rever o rosto indiferente no caixão.
Ao perceber o desconforto, a viúva insiste com revelações íntimas.
            – Pergunto isto, pois sempre falou que detestava sexo e além disso nunca deixou pistas sobre amantes.       
Amigo de Mateus de outra época, nunca percebeu Mateus em situação que pudesse afirmar tal coisa. Achou foi estranha a pergunta. Até que se fosse outro dia, quem sabe pudesse soar diferente, no entanto na hora do enterro foi pego de surpresa. Lembrava que em algumas ocasiões viajaram juntos, mas não recordava atitudes que definissem a preferência. É bem verdade que nunca o vira em farra com mulheres, como o próprio Nicanor costumava fazer, mas daí a defini-lo como gostando disto ou daquilo a distância era grande.
A viúva continuava martelando sem folga.
            – Eu sou de carne e osso e tive minhas necessidades na juventude sempre fui  chegada nas coisas sexuais e ele detestava, definia como coisa suja – continuava – Certa vez propôs que arranjasse amante, desde que de bom nível, para mim. Olha que coisa nojenta. Não sou destas bandalheiras.
            Alguém de preto se aproxima e salva o embaraço.
            – Senhora, posso fechar o caixão para levar o falecido? Temos horário a cumprir.
            A mulher faz que sim com a cabeça e é envolvida pela tensão. Os presentes se perfilam numa oração de encomenda guiados por sacerdote devidamente paramentado.
            Nicanor aproveita o momento de distração e se afasta em princípio devagar e depois apressado sai da sala e ganha a rua. Entra no carro e fica satisfeito de ter colocado película escura nos vidros, escondendo-se convenientemente da situação.
            – Foi bom ter permanecido aqui, a mulher desconfia há muito tempo. Chega a pensar que Mateus era homossexual. – Comenta com a pessoa que o esperou dentro do carro.
            – Nossa relação morreu com sua morte. – oferece bala de café a Nicanor.
Os dois esperam em silêncio dentro do carro com os vidros fechados. Um rapaz se aproxima, abre a porta e senta no banco de trás.
– Papai descansou mãe. Estava com aspecto sereno. – fala com carinho – Me acharam parecido com ele. – Sorri.
– Meu filho, ninguém deve saber que era seu pai. Ao se referir a Mateus trate de mencionar como amigo. – E virando-se – Nicanor vamos para casa. Quero preparar a janta e, para acompanhar, aquele vinho que ganhamos no Natal.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A ETERNA BUSCA

(Google Imagens)

Apesar das inúmeras cobranças de parentes, de ser considerada final da fila pelos amigos e dos sete anos de namoro, Bete permanecia convicta de que casamento é coisa séria, decisão a ser tomada de cabeça fria e amor no coração. Antonio ao contrário, desejava o matrimônio desde os dois primeiros anos. Achava que conhecia Bete suficientemente e isto garantiria relação prazerosa. Nem imaginava que, apesar de gostar muito, a moça desacreditava que a relação fosse dar certo.
O casamento aconteceu e, ao final da primeira semana, apareceram os estranhamentos. Calcinhas e toucas penduradas no box do banheiro e, em cima da pia aparelhos e cremes de barbear e toalha molhada amontoada sobre o vaso sanitário. Objetos fora de lugar que no inicio nada representavam,  passaram a ser os motivos de rusgas.
Dos seis anos de casamento, cinco foram de calmaria e entendimento. Inclusive nos gastos, até porque viviam do salário de Antonio. Precisavam economizar e as despesas eram milimetricamente calculadas. Preferiam assistir filmes em casa a sair com amigos. As sessões de cinema precediam intensos momentos de amor, única diversão intensa do casal que, apesar disto, nem pensava em filhos.
Bete classificou o casamento como troca de dependência : de cuidada pelos pais, passou a ser pelo marido. Fez psicoterapia e mudou a forma de encarar e assim entendeu as atitudes de Antonio que a tratava como “companheira do lar”.
No último ano, as diferenças apareceram gritantes. Ela passou a se queixar de que o marido tinha um gênio difícil e problemático e algumas atitudes a deixaram chateada ao ponto de iniciarem o rompimento, permanecendo dias sem trocarem palavras.
Cada um com seus motivos, quando estavam em casa, passaram a se  comunicar com “amigos” da internet. Permaneciam muito tempo em frente a telinha a teclar com desconhecidos em confidências acaloradas que certamente, ambos entendem hoje, só serviram para distanciá-los.
Ao final, fizeram uma trégua e desfraldaram a bandeira branca e a relação tumultuada deu lugar a convivência amigável, quase de irmãos. Como não era isto que pensavam para a relação a dois, Antonio resolveu sair com  alguém que conhecera num site de relacionamento. Bete, estranhando o pouco interesse, chamou-o para conversar e concluiu após vasculhar o celular do marido ao esquecer para tomar banho, “homem é covarde, faz de tudo para a mulher pedir separação”.
Os procedimentos de desenlace demoraram nove longos meses, período que Antonio classificou de “muito sofrimento”, principalmente porque o pai, que adorava a nora, segundo ele, morreu em decorrência do “desgosto”.
Bete durante o processo de separação se consolava chorando pelos cantos do apartamento vazio e o hábito de assistir filmes, uma das poucas diversões, finalizou melancolicamente ao assistir “Quando a Amor Acaba”, onde gastou as últimas lágrimas. Sozinha, perdeu o interesse em alugar novos títulos.
Filha de pais rígidos, durante o período que permaneceu casada, Bete seguiu a risca a educação paterna, imitando a disciplina herdada. Desde o inicio queixava-se da visão financeira do marido da qual divergiam seriamente. Conheceram-se e casaram em São Paulo e mudaram para Brasília, onde Antonio passara em concurso público.
Na capital, tiveram a primeira oportunidade de convivência sem interferências da família. E foi quando as rusgas aconteceram. Por ficar longo período sem trabalho, Bete pediu cartão adicional da conta salário do marido e nunca o perdoou pelas negativas ríspidas, batidas de porta e silêncio com relação ao assunto. Mais do que para proveito próprio, entendia como uma espécie de segurança para o dia a dia caso ocorresse algo, um acidente ou coisa semelhante deixando-o impossibilitado de passar senhas confidenciais.
Antonio também apresentou queixas financeiras. Quando a mulher passou a trabalhar, solicitou que dividissem as despesas e ela negou, alegando que ganhava pouco, portanto, ele deveria arcar com tudo sozinho.
Bete sempre detestou demonstrar fragilidade e, nos momentos de solidão no apartamento, procurava pensar com otimismo. Aprendeu com ensinamentos de avós japoneses que “na vida os sábios devem ouvir mais e falar menos”. Tem receio de se mostrar e se considera autocrítica e perfeccionista.
Olha pela janela e pensa na juventude. Lembra ser a responsável pela conquista de Antonio e, apesar dos pesares ainda o ama. Mas se ele quiser voltar, não pensa duas vezes “não o quero mais, ficou a experiência negativa de um sonho desfeito a dois”. A mágoa da relação é acreditar que perdeu treze anos de vida. “No final, tanto investimento emocional para nada”, desabafa.
Nem tudo se perdeu para Bete, muitas coisas significantes aconteceram e reconhece “... a relação me trouxe a Brasília, onde conheci muitos amigos e iniciei o processo de independência financeira de minha família”.
Ambos, separadamente, procuram caminhos. Bete dentro de si mesma, abrindo-se a novas relações, conquistando amigos, saindo e dançando. Entre os dois, as conversas escasseiam, não há pontos em comum, pois Antonio está em nova relação e a mulher espera um filho. Por duas vezes encontraram na rua e preferiram passar um pelo outro sem conversar.
Na verdade, procuram relações que espelhem aos pais, que consideram modelos de parcerias. Nada mais errado. São gerações diferentes e o que serve ao homem e a mulher de hoje, certamente se diferencia dos pais.
Os jovens casais buscam nova forma de ambientação para a vida a dois, pois com tantas possibilidades de relacionamentos e tecnologias de redes sociais a disposição, é impossível permanecer isolados. Manter-se conectado o tempo todo conduz jovens casais a pseudo plenitude de relacionamentos virtuais que, mal administrados, passam falsa sensação de completude emocional e de estarem rodeados de pessoas, quando na verdade estão sós.  
As redes sociais, que deveriam cumprir um papel secundário nas relações apenas para comunicação, se tornam um fim em si mesmo, facilitando, apresentando e descartando estranhos.