LEIA TAMBÉM:"ARQUIVO" e "PÁGINAS"

Dificuldades para comentar? Envie para o email : marcotlin@gmail.com
****************************************************

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A CIDADE DA SERESTA

(O Túnel que Chora - arquivo pessoal)

Eram sete horas da manhã de sábado quando avistei o senhor a montar as barraquinhas de venda de bijuterias e outras quinquilharias na praça, defronte a Igreja Matriz. A cidade jazia adormecida enquanto ele trabalhava. Outro homem o observa de perto. Parece olhar através do montador e das ferragens. Inerte em sua frente, vez por outra faz um comentário que o senhor nem se digna responder. Um leve chuvisqueiro cai insistente. Levantei a gola do casaco e me escondi sob a árvore, enquanto observava o senhor colocar um varão de ferro de cada vez  e encaixar em argolas para dar sustentação. O trabalho paciente indicava que mais tarde haveria feirinha. Passei devagar. Estava absorto na montagem e em seus pensamentos.  O que observava me olhou com olhos vazios.
No meio da rua, mais abaixo, aparece uma senhora e grita sem preocupar com a cidade que dorme:
– Ei! Pode parar de montar. Com esta chuva, não haverá feira.
O homem deixa cair um dos varões com estrondo, torce a boca e fala para si mesmo, determinado:
– Vou terminar de montar esta e paro.
Armou a quarta barraca e iniciava a colocação da lona amarela comum a todas, quando resolvi chegar perto.
– Hoje terá feira? – perguntei.
– Claro. Quando chove é sempre assim. Ela cancela e depois a feira acontece e tenho que correr a montar o resto das barraquinhas para os feirantes. – responde sério, avaliando que me referia ao comentário da mulher.
– O senhor é da cidade? – insisto.
– Nasci aqui e monto as barraquinhas há mais de trinta anos.
Saio devagar, e faço uma foto da igreja Matriz.
Estava em Conservatória, cidade distante do Rio de Janeiro cerca de 150 quilômetros. Participava de um Encontro Nacional e aproveitei para conhecer a “Cidade da Seresta”, paraíso dos seresteiros. Acredito que a última representante de um tempo que não volta mais. Havia chegado na sexta a noite e ficaria até domingo. Foram três dias na cidade de seis mil habitantes, onde o tempo, contrariando o resto do mundo, é docemente lento. Voltei para o hotel, pois teria o dia pleno de atividades.
(Roupa do filme O É brio de Vicente Celestino-arquivo pessoal)
À noite, após dia intenso, voltei à cidade. Entrei no Museu de Vicente Celestino e Gilda Abreu e mergulhei num passado bem perto de minha infância, quando ouvia as músicas tocadas em discos de vinil por meus pais. Wolney Porto, curador do espaço, colocou um disco de Celestino e me atendeu com cortesia. “A noite haverá seresta na rua” indicou o evento que aconteceria mais tarde na praça principal onde um grupo se reuniria para tocar e cantar. Quando digo que sou de Brasília, me pergunta se posso ajudá-lo a ter alguma ajuda federal para a manutenção dos museus dos quais é curador. Respondo que minha missão na cidade é outra e que colocarei o pleito no meu blog.
Voltei ao hotel para a janta e animei um pequeno grupo para comparecer ao evento. Mais tarde atravessamos a pé o “túnel que chora”, eu pela segunda vez. A obra construída pelos escravos, separa a cidade do resto do mundo. Pode ter sido pela época, mas o túnel, charmosamente, comporta apenas a passagem de um carro. Quando outro aponta da posição contrária, deve  esperar que passe para ir em frente.
(Caminhada em Seresta - arquivo pessoal)
Logo ao término da travessia, ouvimos o som dos violeiros. E quanto mais nos aproximávamos, mais éramos envolvidos pela voz dos cantadores e a harmonia dos violões. A seresta acontecia com seis integrantes, coordenada pelo seresteiro Edgar, morador da cidade. Mescla integrantes não apenas de Conservatória, como também de fora, como é o caso de Roberto, vindo da Cidade Maravilhosa toda sexta feira a fim de soltar a voz melodiosa e firme. E pouca chuva não impede a cantoria. Interrupção só acontece por fortes relâmpagos e trovoadas. A garoa mistura-se a emoção e embaça os olhos dos turistas em lento caminhar:
Felicidade, foi se embora e a saudade no meu peito, ainda mora e é porisso que eu gosto lá de fora, porque sei que a falsidade não vigora...”.  
Vez por outra, Edgar pára e declama poesia, demonstrando a excelente memória. Não me contive e, resguardado pelo canto dos demais turistas, soltei a voz me sentindo o rei da serenata.
Cerca de duas da manhã, a cantoria acabou e Edgar recebe para conversa sem tempo marcado, pois seresteiro não tem pressa para boa prosa. E fez a declaração bombástica da noite: “nosso trabalho é por amor a seresta, não ganhamos um tostão pelo que fazemos”. Despedimos e saímos cantando de bar em bar. Todos com as características dos botecos cariocas, com samba ao vivo, exibindo o gingado da mulher carioca.
(Aproveitei farol de carro as três da manhã - arquivo pessoal)
Atravessar túnel, a pé, as três da manhã, em qualquer cidade, seria temerário, mas não em Conservatória, que inspira inocência e tranquilidade. No meio do túnel, alguém cantava uma seresta, que ecoava pelo espaço fechado.
“Dorme e fecha este olhar entardecente
Não me escute nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz ou infelizmente
Não me é dado beijando te acordar”.
Domingo era dia de retorno e, após as atividades matutinas e as despedidas entre os 380 participantes do Encontro, o ônibus partiu em direção aos aeroportos do Rio de Janeiro, descendo os 520 quilômetros de serra. Ao encontro, compareceram representantes de todo canto do país, do Oiapoque ao Chuí. No retorno ao Rio, a beleza da vegetação e a conversa animada. Conservatória ficou para trás, mas permanece nos planos de conhecê-la melhor em outras visitas com mais tempo.
Serenata é algo esquecido e hoje habita apenas a memória. É mais ou menos assim. Eu tinha cinco anos e morava em Uruguaiana. Nas noites de sexta feira chegava um grupo musical com um rapaz chamado Helvécio que cantava para a vizinha, chamada Arlete. Depois das canções, eram convidados a entrar pelo dono da casa, pai da moça, que lhes oferecia bebida e a partir daí a vizinhança participava até tarde da noite. Um dia tudo parou, o cantor e a jovem casaram-se. As serenatas acontecem até o casamento.
Olho a rosa na janela,
sonho um sonho pequenino...
Se eu pudesse ser menino
eu roubava essa rosa
e ofertava, todo prosa,
à primeira namorada,
e nesse pouco ou quase nada
eu dizia o meu amor, o meu amor

Um comentário:

  1. Que texto maravilhoso. Enquanto lia parecia estar caminhando por Conservatória. Terra adorada por minha avó que curtia seresta nas noites desta cidade.

    ResponderExcluir

Seu comentário é importante