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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

TUDO PODE ACONTECER

(Google imagens)

Pedrinho andava chateado. O casamento com Valentina completava oito anos e a fase poderia ser classificada de melancólica. Ainda por cima, há dois meses a sogra ficou viúva e precisou morar com o casal. A falta de filhos agravava o quadro, “minha mulher fala que dá trabalho” comentava aos amigos. E como está provado que desencanto esmorece o amor, o jovem locutor da radio Marambaia conheceu Isaura. Foi numa tarde quente do verão carioca. Pedrinho havia deixado o casaco no trabalho, coisa rara e se aventurou em um relaxamento rápido nas águas de Copacabana. Naquele dia, a vida e o mar estavam mornos e pediu a moça solitária da praia para guardar as roupas. Perguntou o nome. “Isaura”, disse a jovem sorrindo maliciosamente. “É só meia hora, Isaura”, falou e correu ao mar. Exatos trinta minutos e retornou molhado, aceitando a toalha oferecida pela moça. Secou-se, e sentou ao lado dela. Conversaram alegremente e explicou sobre o programa que realizaria logo mais a noite na rádio. Ao levantar para vestir encabulou com a forma que ela olhava. Isaura passou o número do telefone e prometeu ouvi-lo. Tinha cor amorenada pelo sol, pernas torneadas e um pequeno biquíni que deixava boa parte dos seios a mostra. A rosa tatuada no pescoço chamou a atenção do homem.
Chegou pensativo em casa e Valentina, há tempos esquecida do marido, nem percebeu. Pedrinho perguntou se ouvira o programa. “Mamãe e eu ligamos o rádio para rezar com o pastor Lucas. Você precisa ouvir também. Anda muito afastado da igreja”.
No outro dia, levantou cedo e foi trabalhar assoviando, enquanto Valentina assistia ao programa matutino de culinária. Mas a sogra andava atenta e, ao ouvir o silvo do genro que distanciava, comentou séria “filha querida, aí tem”.
Mal sentou na cadeira da rádio e telefonou a Isaura para combinar o almoço. Moça solteira e desempregada podia dedicar todo tempo ao amante. E Pedrinho passou a curtir folga do almoço e sesta na casa de Isaura. A partir daí, encontravam-se todos os dias. Valentina ignorava a mudança de hábitos do marido e a mãe zelosa tentava alertá-la. Falou que quando o marido ficou diferente,  cortou o mal pela raiz, deu-lhe uma surra de tamanco. Mas Valentina ignorou os conselhos da mãe e pressentiu algo errado, somente após um ano. E, ao tentar conversar com o marido, este desconfiou da mulher com as mãos na cintura, bateu nos bolsos do paletó e deu meia volta dizendo que iria comprar cigarros. Desapareceu sem deixar pistas.
Naquela noite e nas seguintes Valentina chorou até secar as lágrimas mas, como a tudo a gente se acostuma, um dia aceitou a situação e seguiu a vida, sem o marido e com a mãe.
Pedrinho combinou com Isaura que separaria e cumpriu a promessa, executando o plano arquitetado bem antes, que só agora teve coragem de realizar. Desembarcou com as mãos abanando na casa da moça, dizendo que aceitara o convite da radio Atenas de São Paulo. Em uma hora, a mulher preparou tudo e partiram.
Foram dez anos de convivência e amor eterno, enquanto durou. Com apenas um detalhe, Isaura queria filhos e Pedrinho era estéril, provado por exame feito após oito anos de convivência. A falta de crianças esfriou a relação e o casamento desencantou. Da mesma forma que um dia desapareceu da vida de Valentina, dia chegou que Isaura desapareceu da sua. Levou todas as roupas mas deixou um bilhete na mesa da cozinha, “fui muito feliz enquanto vivemos juntos, mas quero ter filhos, adeus.” E nem assinou.
Desolado e solitário, pediu demissão, rescindiu o contrato de aluguel e retornou ao Rio voltando a trabalhar na rádio Marambaia. Dez anos mais velho e sem a disposição de outrora, ligou para Valentina. Após o final de expediente, pegou o carro e rumou a ex-residência. No meio do caminho ficou preso em um engarrafamento e atrasou por cerca de três horas. Eram onze horas quando abriu o portão da casa. Pela janela aberta, ouviu o radio transmitindo o pastor que se esgoelava. Esperou um pouco e a casa ficou em silêncio e as luzes  apagaram. Separou a chave que usara há dez anos, enfiou na fechadura e, com cuidado, abriu a porta e dirigiu-se ao quarto do casal. Os móveis, com poucas exceções, eram os mesmos.  Ao entrar no quarto em penumbra, percebeu a penteadeira, o chapeleiro, o guarda-roupa de seis portas, a cama do casal, tudo familiar. Valentina dormia profundamente. Sentiu-se cansado, deitou ao lado e aquietou-se. Bocejou. Adormeceu.

Um comentário:

  1. Uma história de vida muito interessante. Na saída de casa Pedrinho tinha autoestima positiva. O retorno demonstra baixa autoestima. Final macabro.

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