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domingo, 14 de outubro de 2012

COINCIDÊNCIA OU DESTINO?

(Google Imagens)

Rodrigo chegou à frente do túmulo do pai, abaixou-se e naquele areão de pedras e barro que se transformou o cemitério de Luziânia após as chuvas de fevereiro, estilizou com o dedo a figura de um homem. De longe, Canindé percebeu a solidão que massacrava o rapaz. O vento frio e as nuvens escuras anunciavam a chegada do outono.
Na época dos acontecimentos, Canindé realizava trabalho com jovens infratores em um centro de reabilitação de Brasília dedicado a recuperação de delinquentes. Um trabalho difícil e perigoso, que o psicanalista executava com esmero e dedicação, voluntariamente. Rodrigo, o desenhista da tumba do pai, era especialmente o mais violento da instituição, sendo tratado como monstro.
– Sem recuperação, matou o próprio pai – comentou a assistente social ao apresentar a ficha do infrator.
Mesmo após os comentários desanimadores e o exame da extensa ficha criminal, o analista acreditava contribuir para a recuperação do jovem. E foi com este raciocínio que aceitou, entre tantos menores menos devastados psicologicamente, ajudar o que matou o pai.
Eram quatro horas da tarde de uma terça-feira, quando foi apresentado a ele no refeitório. Menino mirrado parecendo contar dez anos, na verdade tinha dezesseis. Olhar parado e triste, sobrancelhas arqueadas e um sorriso de canto de boca, como que fazendo coro com o ar melancólico e tímido. Nem de longe a aparência fazia jus à fama. Esticou a mão para apertar a dele e teve a sensação de amassar seus ossos caso forçasse. Com a mão presa pelo terapeuta, encarou-o esperando que evitasse o olhar firme, mas como recebeu o sorriso experiente do profissional, desviou-se para mirar a rua. O terapeuta sentiu empatia pelo adolescente e, naquele rosto infantil com rugas precoces no canto da boca, percebeu semelhanças com o próprio filho.
– Minha ficha é longa – falou o rapaz, fazendo referência a passagem pelo crime desde tenra idade. A reação de Canindé foi calcada nos anos de experiência lidando com delinquentes juvenis.
– Ah é? – respondeu sem dar relevância.
Você não tem medo, cara? – Apelou tentando nova forma de se apresentar, firme e ameaçador.
– Meu nome é Canindé e sou psicanalista. Fui designado para atendê-lo – falou sem desviar o olhar.
– Só aceito conversar lá fora – chegou a janela e apontou – Lá. – Canindé se aproximou e avistou no outro lado do pátio da instituição, uma frondosa árvore a espalhar sombra acolhedora. O jovem demonstrava aceitar o atendimento, desde que em ambiente escolhido por ele. Fazia de tudo para desestabilizar o terapeuta.
– Amanhã e toda quarta-feira às dez horas conversaremos embaixo da mangueira – encerrou a conversa, apertou a mão da assistente social, despediu-se do rapaz e saiu apressado pela porta do refeitório.
Antes dele, outros dois especialistas em comportamento iniciaram um tratamento com o rapaz e, rechaçados nas primeiras sessões, desistiram.
Os encontros entre Canindé e Rodrigo aconteciam sempre às dez da manhã, embaixo da mangueira como exigiu. Aos poucos, o rapaz se abria e falava abertamente. Sua fala era pesada, quase gutural. Às vezes trazia chicletes e os mastigava nervosamente de queixo erguido, demonstrando arrogância que mascarava a própria fragilidade. Foram quatro meses de trabalho em conjunto, em um aprendizado muitas vezes orientado pelo próprio analisando. Para ajudar Canindé deveria também aprender.Pelo olhar, gestos, falas e emoções.
O pai do menor era alcoólatra e diariamente chegava a casa esbravejando e, sem motivo, batia duramente na mãe. Após as constantes sessões de tortura, a mulher abraçava a Rodrigo, que era o filho mais velho e chorava copiosamente. Muitas vezes ele percebia o sangue que brotava dos ferimentos e assim, misturando as lágrimas e o sangue da mãe aos seus, alimentava profundo ódio ao pai. No decorrer das sessões, Canindé observou a origem do instinto criminoso do rapaz. O assassino estava sendo forjado ao assistir as surras sofridas pela mãe, seguidas pelos abraços ensanguentados e choros convulsivos.
A uma das sessões escolheu a imagem de quando contava apenas cinco anos. Nela, a lembrança do pai aplicar a maior de todas as surras neles e recordou, em meio à lágrimas e ódio, o agressor sair porta afora e desaparecer por dez anos.
Começou então uma fase de aparente calmaria naquela casa e, dos cinco aos quinze anos de idade, a raiva ao pai, transformou-se em profunda sede de vingar a mãe, só amortecida pela ausência do algoz. Um dia o inferno voltou a rondar e o pai retornou barbudo e maltrapilho. Na primeira noite, comemorando o retorno, bebeu todas e aplicou nova surra nos dois.
Recém introduzido na adolescência, ainda com penugens no rosto, o adolescente colocou as mãos na cabeça e exclamou desanimado “meu Deus, vai começar tudo de novo.”
Após o massacre, abraçou-se a mãe e da mistura dos rostos ensanguentados, ressurgiu o ódio que o cegou. Correu ao quarto e voltou munido do revólver calibre 32 do irmão e o apontou para o pai que ria com a  idiotice dos embriagados. Anestesiado pela cachaça, sem um gemido, o homem tombou varado por cinco tiros desferidos pelo filho, que naquele momento inaugurou a desastrada vida adulta. Mal teve tempo de correr a esquina e foi pego pela polícia e recolhido a instituição de menores infratores.
Contou tudo de supetão após Canindé oferecer a segurança da ajuda.
– Não te preocupe. Ninguém conhecerá o conteúdo do que falarmos. Você está sob sigilo profissional.
– Posso pedir algo? – sussurrou o menor olhando para os lados.
– Claro, porque não? – o analista se dispunha a atender o que ajudasse o tratamento.
– Quero visitar o túmulo de meu pai – Canindé num primeiro momento ficou desconcertado, mas logo entendeu o que se passava. O analisando precisava enterrar o passado e seus fantasmas. Mas era preciso cuidado.
– Faça o seguinte, pense nisto uns dois dias e falaremos novamente – Sair dali com aquele menor poderia ser uma operação de alto risco, pois o rapaz estava jurado de morte pelos irmãos. Além do mais, nada garantia que uma vez na rua, não empreendesse movimento de fuga.
O terapeuta queria tempo para pensar.
            Naquele mesmo dia procurou o diretor da instituição e obteve a primeira negativa. Começou uma peregrinação pelo sistema prisional e, após muitas alegações, conseguiu um mandado judicial assinado pelo juiz da Infância e Adolescência, dando direito e responsabilidade a conduzir o infrator. Em conjunto com a direção do Centro, marcou a data de saída.
            No dia combinado, ao chegarem ao cemitério, rumaram diretamente a tumba, localizada no dia anterior por Canindé que, previdente, queria evitar perambular pelas alamedas arriscando o reconhecimento do menor infrator por qualquer pessoa.
            Rodrigo continuava fazendo desenhos no barro e, pressentindo a chegada do terapeuta, pos-se de pé. Emocionado, ombros e braços caídos, o rapaz estava desolado.            
Canindé o abraçou ternamente e percebeu a fragilidade física e emocional. Rodrigo, então arrogante e imaturo, desmanchou a carapuça e chorou sacudindo os ombros em longo desabafo. Naquele momento, Canindé percebeu que o luto se completou. Após atirar no pai, Rodrigo foi preso e impedido de participar das cerimônias fúnebres. Permaneceu apenas o vazio e era preciso resgatar. A falta de acompanhar o velório e os demais procedimentos formaram um imenso vazio que agora se preenchia.
– Canindé, – perguntou o menor virando o rosto – queria fazer outra pergunta muito importante, agora do lado profissional – e assumiu um ar sério, maduro.
–Claro, Campeão – havia intimidade entre o psicanalista e o jovem.
– Meu pai matou meu avô, será que isto acontecerá comigo?
– Como assim? Não entendi. – Canindé se fez de desentendido.
– Meu pai matou meu avô e eu matei meu pai. Será que meu filho me matará?
Rodrigo hoje cumpre pena sob regime semi-aberto, frequenta o sétimo semestre de Direito e estagia no Ministério Público.

Um comentário:

  1. REFLETI SOBRE A PERGUNTA DE RODRIGO AO PSICANALISTA. NÃO HÁ RESPOSTA IMEDIATA, DEPENDERÁ DA VIDA QUE RODRIGO ESCOLHER PARA SI.

    MUITO BOA SUA NARRATIVA. BEM ESTRUTURA E COMPREENSÍVEL.

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