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sábado, 7 de julho de 2012

SOU MORTAL – CONSTATAÇÕES EM PEQUENAS DOSES - FINAL

(Google Imagens)

“Nascemos para fazer o bem, e fazê-lo é suficiente para preencher uma vida”.
Vicente Ferrer (missionário jesuíta espanhol autor de projetos sociais na Índia)










A frase acima ouvi pela primeira vez da médica responsável pela quimioterapia e só percebi o significado anos depois, ao procurar viver o presente, abandonando a antiga prática da preocupação com o futuro, sempre incerto. Passei a analisar as relações pessoais e compreendi meu papel perante filhos, família, amigos e parentes e percebi o quanto teria que mudar, pois a felicidade deles, não era necessariamente a minha e questionei se estaria realmente feliz.
O início da jornada passou pelo desapego. Os filhos, já independentes, deveriam seguir seus destinos. Se até então me sentia responsável direto por suas vidas e felicidade, agora entendia suas vidas como de sua responsabilidade. Por trás de tudo está Deus e que o destino do ser humano não pode ser traçado e nem é de responsabilidade dos pais. Aprendi a dizer não as coisas que me desagradavam e isto melhorou sensivelmente minha vida. Sentia-me descomprometido em agradar aos outros. No tocante as relações, fiquei exigente e descobri que nem todas as conversas me satisfaziam. Dito assim parece prepotência, mas a verdade é que a vida passa rápido e precisava dar qualidade a minha vida. Procurar formas de ajudar os outros. Dedicar tempo a quem necessita esclareceu o sentido de que ajudando, se é ajudado. Preparado para esta mudança, encontrei a CEO – Central de Paz e Otimismo. Devo a esta entidade de voluntários o primeiro despertar. A cada plantão ouvindo as pessoas me sentia em um mundo novo, solidário. Meus problemas, que julgava únicos, passaram a ter a leveza da brisa.
As sessões semanais de quimioterapia foram difíceis. Enquanto o líquido curador entrava pelas veias, pensava na minha recuperação e esta forma de pensar facilitou suportar o cheiro que exalava da pele e as náuseas com  golfadas azedas. A cada dia mais lições experimentava e a conscientização da dificuldade de continuar a ser o mesmo. Passei por diversas fases neste período. Da angústia do sofrimento, ao sentimento de desamparo e carência de afeto que sempre julgava ser insuficiente. Aquele materialista, preocupado em ganhar dinheiro se afastava e as prioridades que nortearam minha vida até então, realocaram-se.
Ao final de cada aplicação de quimio, o único desejo era chegar a casa. O mal estar e ânsia de vômito eram meus companheiros nestas horas difíceis. As mãos frias e a sensação de abandono me dominavam. Permanecia quieto no banco do carona, enquanto o carro seguia seu rumo do Setor Hospitalar Sul até a L2 sul. Ali começava meu silêncio. Certa vez, ao percorrer o trajeto uma profunda amargura me dominou ao ouvir uma conversa paralela que, mesmo sem maldade, me atingiu profundamente. Na sequência, caí num choro convulsivo, interrompendo o assunto e tudo mais que acontecia até o radio do carro emudeceu. Ansiava por deitar na escuridão do quarto, fechar os olhos e naquele mundo que se abria somente para mim, entrar e permanecer quieto e solitário.
Em janeiro de 2000, ainda sem nenhuma manifestação da doença, numa das viagens a Porto Alegre trouxe um cachorro ao qual meu filho batizou de  Spyke. Era um labrador que me acompanhava nos passeios. Criou o hábito de esperar para juntos caminharmos quando anoitecia. Foi companheiro no período das aplicações e me ajudava a espairecer nos passeios amenizando o mal estar do acúmulo de remédios no organismo. Quando fiz a última aplicação, Spyke, que me acompanhara descomprometido e dócil, caiu doente e em poucos dias, morreu. Abraçado com minha filha, externei esta morte com muito choro, fragilizado pela longa caminhada da recuperação que enfrentara ao lado do companheiro.
Para me refugiar, montei um quadro muito claro. A imagem, existente apenas na imaginação, era de uma casa a beira da praia, de onde se via o mar com ondas estourando na areia. A leve brisa tornava o clima agradável e levantava a areia fina e branca. Por trás da casa, podia avistar montanhas com altas árvores que abrigavam pássaros cantadores. Neste ambiente mergulhava após cada sessão de quimioterapia e lá amarguei a perda de Spyke. Até hoje, quando preciso recolher para refletir, volto a esta casa. Ela existe. Na minha imaginação.
Criei hábitos pouco compreensíveis a quem me acompanhava por tantos anos. Passava os dias escrevendo e lendo. A partir do momento que pude subir ao mezanino, por lá ficava a maior parte do dia. Descia apenas para almoçar e retornava para dormir por duas horas. Depois lia até nove da noite, quando sentava no quarto, na poltrona para assistir TV até a hora de dormir.
Sentia uma absoluta necessidade de ficar só o que transformou meus  dias em casa em encontros comigo mesmo, onde procurava meditar e compreender tudo que me acontecera. Entendia que havia a expectativa de, numa manhã qualquer, o marido, o pai, o cunhado, acordasse da forma antiga. Doce ilusão, aquele que conheceram, morrera. Na verdade, até então vivera no oba-oba da vida, despreocupado comigo e cheio de responsabilidades com os outros.
O menor acontecimento para mim tomava dimensões inimagináveis e se antes abrira mão de convicções, agora estava disposto a lutar por cada centímetro perdido. Um exemplo foi a poltrona que desloquei do mezanino para o quarto. Certo dia deparei com a ausência do móvel e pressenti que havia perdido a negociação. A poltrona voltara ao local anterior. Pior do que perder o conforto foi a perda da posição dentro de casa. Dependendo da doença a pessoa passa a se sentir fora do meio e qualquer fato soa como desmerecimento. Rompi naquele dia com o resguardo, chamei um ajudante e a desci novamente, retornando ao status anterior. O que para qualquer outro era um fato sem importância, para mim representou algo de suma importância.
Ao adoecer, o homem regride e fica fragilizado. A sociedade não o aceita no mesmo status, relegando-o a segundo plano e ele percebe nas mínimas coisas, que precisa se impor. O custo de abandonar esta luta é representado pela perda das rédeas da vida e ser relegado ao segundo plano.
Seguia por rumos inesperados. Fiquei mais exigente e, longe de cobrar com relação a mim, achava que meus deveres com os outros estavam comprometidos, pois desacreditava tê-los. Entendi a necessidade de me amar, para amar o próximo e expressar aos outros minhas opiniões e desejos.
 Queria nova forma de viver, e isto passou a incomodar muita gente. Pensava que quando mudasse provocaria o mesmo nas pessoas em volta. Doce ilusão. Minha mudança virou incômodo a grande número de pessoas. Algumas tentaram chamar-me atenção e acusaram-me de ausência em casa.
Após a décima quinta sessão de quimioterapia, obtive licença médica para voltar a nadar. Das horas que passava nadando, muitas dediquei a repensar a vida, momentos nos quais acumulava recordações da infância, da adolescência e do início da idade madura, quando tudo eram sonhos e as perdas eram poucas representativas. Mas perdas por doenças graves podem ser comensuradas, e são impossíveis de passarem despercebidas. Nada é como antes. O dano físico causa profunda transformação e poucos são capazes de entender, por mais compreensivos. O corte da cirurgia e a quimioterapia são marcas visíveis impossíveis de disfarçar.
Queria viver minha vida de forma autêntica. E pedi a Deus que ajudasse a achar o caminho menos traumático possível a mim e aos que me cercavam.
"Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda..." (Sigmund Freud).
E mudei.

10 comentários:

  1. AS MUDANÇAS SÃO DOLOROSAS PORQUE É MAIS CÔMODO FICAR NA MESMICE. PORÉM, O ENFRENTAMENTO DO NOVO, COM OLHAR PRÓSPERO, ABRE CAMINHOS SAUDÁVEIS NA VIDA.

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    1. Vivemos num movimento único de irmos sempre em frente, sem direito a reviver algum caminho. AS bifurcações que nos aparecem são sempre para fortalecer nossas decisões. Por isto acredito que errar é humano e persistir no erro é ..... humano também.

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  2. Meu amigo de adolescência, as lágrimas vieram ao ler e reler seu texto, carregado de sinceridade. Sofri junto com voce, e orei a cada parágrafo, para que nunca mais sofras assim, jubilei-me com seu vigor e sua inteligência, seu sofrimento não foi em vão, se é que isto é consolo, voce mesmo determinou sua cura, e surgiu um Marco, melhor, conforme voce mesmo descreve, melhor para si mesmo, para poder viver esta vida e deixar este exemplo de fé e coragem guerreira. Parabéns pelo novo homem, que se antes já era bom, agora deve ser ainda melhor. Deus te abençoe.

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    1. Uma existência só vale a pena quando é vivida intensamente e dela retiramos o sumo para o crescimento. Saudades das reuniões dançantes da década de 6o no bairro Menino Deus em Porto Alegre. Abraço.

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  3. Seu texto me lembrou que, quando choramos ao ver um filme, é porque ele nos tocou em alguma parte de nossas emoções. Não choramos pelo mocinho ou mocinha, choramos por nós.
    Vc me fez refletir sobre algumas coisas, sobre anulação e submissão. Tenho estado quieta e reflexiva. Obrigada.

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  4. Marco
    Sua sensibilidade é fruto do seu amadurecimento
    Ambos me encantam

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  5. Caro companheiro,

    Também me encontro na mesma luta que você. Acredito que Deus tenha nos escolhido e está nos lapidando para uma missão que ainda desconhecemos. A dor realmente nos faz querer mudar. Penso em quantos séculos de erros e desenganos seriam necessários para me ensinar o que o câncer tem me ensinado em meses...
    Também me emocionei com o seu relato e tenho experimentado as mesma emoções.
    Desejo-lhe uma ótima recuperação.
    Caso queira conhecer o meu blog segue o link: cancerovario-nanci.blogspot.com

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    1. A doença nos faz mais humanos, solidários e compreensivos com o próximo. Abraços.

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  6. Caro companheiro.

    Também me encontro na mesma luta que você. Acredito que Deus tenha nos escolhido e está nos lapidando para uma missão que ainda desconhecemos.
    Penso em quantos séculos de erros e desenganos seriam necessários para aprendermos o que a doença tem nos ensinado em meses. A dor nos faz querer mudar para melhor.
    Também me emocionei com o seu relato, embora esteja experimentando as mesmas emoções e sentimentos.
    Desejo-lhe, de coração, uma ótima recuperação.
    Caso queira conhecer o meu blog, segue o link: cancerovario-nanci.blogspot.com

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