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segunda-feira, 23 de julho de 2012

RESGATE IMPOSSÍVEL

(Google Imagens)

Élida visita a mãe semanalmente às segundas-feiras, dias de plantão do marido e acaba ficando até o cair da tarde. Os filhos adolescentes sabem se virar, permitindo que espere o marido que a pega ao final do trabalho. Certo dia, ao descer do ônibus, percebeu que um carro a seguia de longe e, a partir daí observou que toda semana estava lá novamente. Sentia-se vigiada e, como era de temperamento decidido, resolveu encarar o problema de frente. Aproximou-se e teve um choque ao perceber que era Francisco, ex-namorado da adolescência. Percebendo-se reconhecido, o rapaz saltou do carro sorrindo.
            – Você continua bonita – Francisco apresentava os cabelos grisalhos e as rugas em volta dos olhos adornavam a aparência madura e viril. Élida tremeu ao reconhecer a voz de tantas juras de amor ditas nos cinemas e bailes da juventude.
            Namoraram quando ambos tinham dezoito anos e sempre às escondidas, pois seu pai cultivava  profunda antipatia por Francisco. O namoro foi de calorosos beijos que plantaram a semente do desejo e manteve acesa a chama por tantos anos. Os corpos lembravam-se um do outro e Élida imaginou-se novamente adolescente e curiosa quanto aquele sentimento, há muito adormecido.  E dominou a vontade de se jogar nos braços do homem.
            – Os cabelos brancos lhe fazem bem. – aproximou-se o bastante para perceber o perfume e lembrar o quanto este odor a atraía. O cuidado de usar a mesma fragrância fora meticulosamente estudada por Francisco.
            – O rabo de cavalo que está usando me transporta para nossa adolescência – Francisco falou timidamente, referindo-se ao modo displicente que Élida prendera os cabelos com uma liga. A mesma timidez velha conhecida da moça e que a frustrou nos planos de tornar-se mulher com este grande amor de sua vida – Fazem três meses que rondo o endereço de sua mãe e resolvi esperar o momento certo para falar contigo. Sei até onde mora.
            – Mamãe nunca quis mudar daqui. Agora que papai morreu, quem sabe – Comenta a moça querendo apenas disfarçar a pretensão de aproveitar ao máximo a oportunidade de terem uma relação que recupere o perdido na adolescência.
            – Casei e fui morar no Espírito Santo – Francisco falou se desculpando – Olha – abriu a carteira e retirou a foto dela jovem. No verso, uma dedicatória apaixonada. A lágrima rolou pelo rosto da moça, emocionada ao descobrir o amor que o homem lhe dedicava há tantos anos. – entendeu que o casamento foi o motivo que o fez desaparecer de sua vida.
– E você a guardou por todo deste tempo? – A sinceridade do rapaz a sensibilizou e chegou-se ainda mais perto.
– Tenho todos os bilhetes que me enviou.
Trocaram endereços de e-mails e iniciaram intensa correspondência. Falavam por telefone frequentemente, por vezes até três ligações diárias. Nos dias que visitava a mãe, tomavam café numa cafeteria perto da casa. E Élida precisou de um mês para convencer o rapaz, até que certo dia, combinaram um encontro mais íntimo. Falou à mãe que chegaria depois do almoço e rumou para um motel com Francisco, onde realizaram o sonho iniciado na adolescência.
Élida sentia-se feliz em encontrar o homem da juventude. Observou que sentimentos e corpo ainda respondiam aos anseios da paixão. Durante todos estes anos, sempre lembrava Francisco e lamentava que nada acontecera entre eles, numa época de tanta repressão com as mulheres. Pretendia agora permanecer assim mesmo, sem compromissos para encontrarem-se e transformar a vida que definia sem graça em algo colorido.
Ao contrário da moça, logo após o primeiro encontro, Francisco caiu em depressão profunda e, mesmo com toda participação amorosa, sentia-se muito mal. Nunca fora infiel a mulher e, mesmo que a paixão entre eles fosse fria, uma amante o deixava abalado e receoso. Temia por sentir tanto amor, coisa que há anos amortecera confinado a ritos religiosos. Como evangélico, preparava-se para ser pastor e a continuidade da relação poderia lhe custar muito. Ao notar que Élida queria apenas curtir momentos, Francisco desiludiu-se e esfriou a relação, afastando-se sem explicações.
Élida notara a frieza do. Haviam saído apenas uma vez e percebeu a insegurança do rapaz. Na hora da relação, teve que acalmá-lo com palavras de conforto e amizade. Após duas semanas se esquivando dela, combinaram um café num shopping e soube da voz de Francisco o quanto a relação mudara a vida.
Encontrar um amor do passado pode ser algo muito bom, mas se as intenções forem a de resgatar algo, pode se tornar num grande problema e Élida, que pretendia apenas ter alguém para momentos de amor, entendeu que o rapaz pensava bem diferente. Francisco alimentava pela moça a grande paixão que o reencontro aflorou.
– Após casar, Élida, nunca beijei outra mulher, o que dizer ter amante. Não dou conta disso. Até gostaria de te encontrar, mas não posso. Muito me arrependi de te seguir e entrar em contato.  – Francisco estava visivelmente transtornado.
            Mas a mulher ainda tinha esperança de continuar a viver esta paixão, sentia-se adolescente e renovar estes sentimentos lhe fazia bem. Naquela noite, a última que viu Francisco, Élida notou que um carro passou várias vezes na madrugada em frente sua casa.
            Quando o dia amanheceu, ligou para Francisco e ouviu a mensagem da operadora:
ESTE NÚMERO NÃO EXISTE, POR FAVOR TENTE NOVAMENTE.

domingo, 15 de julho de 2012

SARU

Saru costurando ( arquivo pessoal )

Saru Yamagushi tem 97 anos, nasceu em 08 de novembro de mil novecentos e quatorze. Mora em Caldas Novas desde 1988, mas já morou em São Paulo e Paraná, onde tem a maioria dos parentes. Aos dezessete anos,  ainda adolescente, chegou ao Brasil, procedente de Hokkaido, segunda maior ilha do arquipélago japonês, na esperança de testemunhar o que ouvira ainda na terra natal : “um país ótimo para viver”.
Casou-se com um paulistano dez anos mais velho com quem aprendeu que a vida não era tão simples como lhe ensinaram. O marido alcoólatra obrigou Saru, educada a aguentar tudo do companheiro, a conviver com a doença resignadamente até sua morte, por problemas no fígado. Teve nove filhos dos quais oito estão vivos e residentes em diversos lugares do país. Com a morte do marido, manteve a mercearia da família na cidade do Gama em Brasília, de onde sozinha, tirava o sustento da família.
Criou os filhos repassando a rígida educação aprendida dos pais que ficaram no Japão. Apesar disso, Saru sempre tratou os filhos com carinho, os quais “encaminhou com princípios de ética e honestidade”.
Ao chegar a casa de Saru encontrei-a pedalando em uma bicicleta adaptada por seu filho caçula Mutian, que proporciona que ela pedale praticamente deitada. Um exercício que o filho caçula a submete diariamente por pelo menos uma hora. “Assim mantenho a mãe muito bem exercitada e com a mente boa”, diz com convicção. Mutian é o filho dedicado e de quem procede toda ajuda e com quem mora numa espaçosa casa da cidade termal goiana. Quando fala sobre a mãe, se emociona e demonstra orgulho em ser o único a dedicar amor, tempo pessoal e conforto na velhice de quem classifica ser a responsável pelo seu sucesso como ser humano.
Pedalar vem de família. Mutian, coleciona entre medalhas e troféus, mais de 240 itens relativos a participações e boas colocações no ciclismo. Ao mesmo tempo que exercita a mãe, a prepara para melhor competir com o avanço da idade.
“Há treze anos atrás mamãe vivia no Gama com minha irmã, mas quando lá cheguei percebi que estava em condições muito difíceis, prostrada em uma cama e com um furúnculo nas costas, pronta para morrer. Minha irmã não dava conta de cuidar dela. Trouxe-a para Caldas Novas definitivamente e aqui criei uma estrutura confortável. Aos poucos, constatei a veracidade do ditado que os pais criam oito filhos, mas oito filhos não cuidam dos pais”.  Mutian fala da mãe com orgulho, “...ela cozinha e costura diariamente, a mão ou na máquina.” Vira-se para o pequeno relógio de parede do quarto onde costura e pede a mãe que fale as horas e ela responde com firmeza “são cinco e meia.”
Mutian, que é aposentado, ainda prepara surpresas para a mãe. No natal de 2011, arrumou a veraneio e, dizendo que iriam a um passeio pelo interior goiano, alojou-a no banco traseiro e a levou para visitar parentes em Paranavaí no Paraná. Foram mais de mil e quinhentos quilômetros de estrada. Saru, que ignorava aonde iam, quando lá chegou teve uma das maiores emoções, pois encontrou pessoas das quais estava afastada a mais de cinquenta anos. Mas sempre falava ao filho querer realizar este sonho.
Esta japonesa que escreveu sua história no Brasil, onde teve negócios e concebeu família, esbanja ótima saúde. Prova disto é que há dez anos atrás, já aos 87 anos, quebrou o fêmur e se submeteu a delicada cirurgia para colocação de vários pinos. Seu filho cuidador não mediu esforços com a mãe impossibilitada de engessar e, graças a esta dedicação, o osso colou naturalmente e Saru caminha com a mesma facilidade anterior, sem seqüela.
Pelo visto conseguirá realizar o sonho de comemorar os cem anos na cidade natal, desejo que Mutian quer proporcionar a mãe, para rever parentes que nem sabe se ainda vivem. Saúde física e mental tem de sobra, com 40 quilos e pedalando diariamente, se condiciona para a realização do sonho da viagem. Saru quando fala do Japão se emociona, contagiando a todos e principalmente ao filho que é parte indispensável no projeto. Mutian disfarça a emoção e recomenda “para a senhora ter forças para esta viagem, terá de pedalar muito nesta bicicleta”. Saru pede licença, levanta, despede e, disciplinada, se dirige a varanda onde está o aparelho.

sábado, 7 de julho de 2012

SOU MORTAL – CONSTATAÇÕES EM PEQUENAS DOSES - FINAL

(Google Imagens)

“Nascemos para fazer o bem, e fazê-lo é suficiente para preencher uma vida”.
Vicente Ferrer (missionário jesuíta espanhol autor de projetos sociais na Índia)










A frase acima ouvi pela primeira vez da médica responsável pela quimioterapia e só percebi o significado anos depois, ao procurar viver o presente, abandonando a antiga prática da preocupação com o futuro, sempre incerto. Passei a analisar as relações pessoais e compreendi meu papel perante filhos, família, amigos e parentes e percebi o quanto teria que mudar, pois a felicidade deles, não era necessariamente a minha e questionei se estaria realmente feliz.
O início da jornada passou pelo desapego. Os filhos, já independentes, deveriam seguir seus destinos. Se até então me sentia responsável direto por suas vidas e felicidade, agora entendia suas vidas como de sua responsabilidade. Por trás de tudo está Deus e que o destino do ser humano não pode ser traçado e nem é de responsabilidade dos pais. Aprendi a dizer não as coisas que me desagradavam e isto melhorou sensivelmente minha vida. Sentia-me descomprometido em agradar aos outros. No tocante as relações, fiquei exigente e descobri que nem todas as conversas me satisfaziam. Dito assim parece prepotência, mas a verdade é que a vida passa rápido e precisava dar qualidade a minha vida. Procurar formas de ajudar os outros. Dedicar tempo a quem necessita esclareceu o sentido de que ajudando, se é ajudado. Preparado para esta mudança, encontrei a CEO – Central de Paz e Otimismo. Devo a esta entidade de voluntários o primeiro despertar. A cada plantão ouvindo as pessoas me sentia em um mundo novo, solidário. Meus problemas, que julgava únicos, passaram a ter a leveza da brisa.
As sessões semanais de quimioterapia foram difíceis. Enquanto o líquido curador entrava pelas veias, pensava na minha recuperação e esta forma de pensar facilitou suportar o cheiro que exalava da pele e as náuseas com  golfadas azedas. A cada dia mais lições experimentava e a conscientização da dificuldade de continuar a ser o mesmo. Passei por diversas fases neste período. Da angústia do sofrimento, ao sentimento de desamparo e carência de afeto que sempre julgava ser insuficiente. Aquele materialista, preocupado em ganhar dinheiro se afastava e as prioridades que nortearam minha vida até então, realocaram-se.
Ao final de cada aplicação de quimio, o único desejo era chegar a casa. O mal estar e ânsia de vômito eram meus companheiros nestas horas difíceis. As mãos frias e a sensação de abandono me dominavam. Permanecia quieto no banco do carona, enquanto o carro seguia seu rumo do Setor Hospitalar Sul até a L2 sul. Ali começava meu silêncio. Certa vez, ao percorrer o trajeto uma profunda amargura me dominou ao ouvir uma conversa paralela que, mesmo sem maldade, me atingiu profundamente. Na sequência, caí num choro convulsivo, interrompendo o assunto e tudo mais que acontecia até o radio do carro emudeceu. Ansiava por deitar na escuridão do quarto, fechar os olhos e naquele mundo que se abria somente para mim, entrar e permanecer quieto e solitário.
Em janeiro de 2000, ainda sem nenhuma manifestação da doença, numa das viagens a Porto Alegre trouxe um cachorro ao qual meu filho batizou de  Spyke. Era um labrador que me acompanhava nos passeios. Criou o hábito de esperar para juntos caminharmos quando anoitecia. Foi companheiro no período das aplicações e me ajudava a espairecer nos passeios amenizando o mal estar do acúmulo de remédios no organismo. Quando fiz a última aplicação, Spyke, que me acompanhara descomprometido e dócil, caiu doente e em poucos dias, morreu. Abraçado com minha filha, externei esta morte com muito choro, fragilizado pela longa caminhada da recuperação que enfrentara ao lado do companheiro.
Para me refugiar, montei um quadro muito claro. A imagem, existente apenas na imaginação, era de uma casa a beira da praia, de onde se via o mar com ondas estourando na areia. A leve brisa tornava o clima agradável e levantava a areia fina e branca. Por trás da casa, podia avistar montanhas com altas árvores que abrigavam pássaros cantadores. Neste ambiente mergulhava após cada sessão de quimioterapia e lá amarguei a perda de Spyke. Até hoje, quando preciso recolher para refletir, volto a esta casa. Ela existe. Na minha imaginação.
Criei hábitos pouco compreensíveis a quem me acompanhava por tantos anos. Passava os dias escrevendo e lendo. A partir do momento que pude subir ao mezanino, por lá ficava a maior parte do dia. Descia apenas para almoçar e retornava para dormir por duas horas. Depois lia até nove da noite, quando sentava no quarto, na poltrona para assistir TV até a hora de dormir.
Sentia uma absoluta necessidade de ficar só o que transformou meus  dias em casa em encontros comigo mesmo, onde procurava meditar e compreender tudo que me acontecera. Entendia que havia a expectativa de, numa manhã qualquer, o marido, o pai, o cunhado, acordasse da forma antiga. Doce ilusão, aquele que conheceram, morrera. Na verdade, até então vivera no oba-oba da vida, despreocupado comigo e cheio de responsabilidades com os outros.
O menor acontecimento para mim tomava dimensões inimagináveis e se antes abrira mão de convicções, agora estava disposto a lutar por cada centímetro perdido. Um exemplo foi a poltrona que desloquei do mezanino para o quarto. Certo dia deparei com a ausência do móvel e pressenti que havia perdido a negociação. A poltrona voltara ao local anterior. Pior do que perder o conforto foi a perda da posição dentro de casa. Dependendo da doença a pessoa passa a se sentir fora do meio e qualquer fato soa como desmerecimento. Rompi naquele dia com o resguardo, chamei um ajudante e a desci novamente, retornando ao status anterior. O que para qualquer outro era um fato sem importância, para mim representou algo de suma importância.
Ao adoecer, o homem regride e fica fragilizado. A sociedade não o aceita no mesmo status, relegando-o a segundo plano e ele percebe nas mínimas coisas, que precisa se impor. O custo de abandonar esta luta é representado pela perda das rédeas da vida e ser relegado ao segundo plano.
Seguia por rumos inesperados. Fiquei mais exigente e, longe de cobrar com relação a mim, achava que meus deveres com os outros estavam comprometidos, pois desacreditava tê-los. Entendi a necessidade de me amar, para amar o próximo e expressar aos outros minhas opiniões e desejos.
 Queria nova forma de viver, e isto passou a incomodar muita gente. Pensava que quando mudasse provocaria o mesmo nas pessoas em volta. Doce ilusão. Minha mudança virou incômodo a grande número de pessoas. Algumas tentaram chamar-me atenção e acusaram-me de ausência em casa.
Após a décima quinta sessão de quimioterapia, obtive licença médica para voltar a nadar. Das horas que passava nadando, muitas dediquei a repensar a vida, momentos nos quais acumulava recordações da infância, da adolescência e do início da idade madura, quando tudo eram sonhos e as perdas eram poucas representativas. Mas perdas por doenças graves podem ser comensuradas, e são impossíveis de passarem despercebidas. Nada é como antes. O dano físico causa profunda transformação e poucos são capazes de entender, por mais compreensivos. O corte da cirurgia e a quimioterapia são marcas visíveis impossíveis de disfarçar.
Queria viver minha vida de forma autêntica. E pedi a Deus que ajudasse a achar o caminho menos traumático possível a mim e aos que me cercavam.
"Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda..." (Sigmund Freud).
E mudei.