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domingo, 20 de maio de 2012

SOU MORTAL – A CONSTATAÇÃO – PARTE I

(Foto Google Imagens)

Anualmente faço exames para verificar como está a saúde. Desta vez relaxei e  passaram três anos. Tudo está bem. Andava receoso, afinal há quem afirme que “frequentar médicos é procurar doença, quem procura acha”. Comentário mais danoso, impossível. É importante que monitore, tive câncer de intestino. A partir daí, mudei radicalmente o pensar, o agir e a forma de relacionar com o mundo e as pessoas. Pouca gente entendeu a mudança. Vou descrever os acontecimentos de forma agradável, pois me considero sobrevivente.
Na vida as coisas me aconteceram por muito tempo de forma previsível, às vezes como coadjuvante e outras, protagonista. Quando coadjuvante dava prioridade exagerada aos que me cercavam e, protagonista, priorizava a felicidade alheia. Em resumo acreditava que todos ao redor mereciam mais que eu. Deveriam acontecer várias coisas para dedicar-me a projetos pessoais. Para sair deste pêndulo, foi preciso o destino armar das suas.
Assim, numa tarde de sexta feira do mês de abril, dois mil e três tomei consciência da minha mortalidade e iniciou-se o novo caminho, completamente inesperado. Até então consumia energia no trabalho e churrascos de finais de semana regados a cerveja. Adiava prioridades e entregava as rédeas da vida para os outros. Admito que não vivia, existia. 
Naquele dia entendi que os sinais que apresentava deveriam ser levados a sério. Há meses apresentava cólicas intestinais constantes com idas dolorosas ao banheiro. Trabalhava numa rotina alucinante, entre a empresa de consultoria e vendas no Liberty Mall e o emprego público de meio expediente. Eram doze horas diárias entre vendas de mercadorias, acompanhamento de instalações e execução de obras.
Escolhi o médico no catálogo do plano de saúde e consegui  consulta no mesmo dia, final de tarde, num consultório esvaziado pelo inicio do fim de semana. O proctologista, impaciente, olhava o relógio, certamente imaginando que atrasaria seu descanso. Cheguei encharcado de suor e, preocupado, iniciei a narração do histórico de cólicas, sangramentos e dores abdominais. Atentamente, ele ouvia o relato dos sintomas, acompanhado de meu autodiagnóstico prematuro. Quando parei de falar, perdera a pressa, “certamente não é só isto”. Apontou a maca e apalpou demoradamente o abdômen que, dependendo do lugar, doía como se perfurado por punhal. Nada comentou. Marcou exame completo para segunda-feira, após jejum de doze horas e lavagem intestinal. Foi um fim de semana tenso e apreensivo. Pensava em desembaraçar daquilo rapidamente para iniciar a semana com as atividades normais, afinal, tarefas inadiáveis esperavam e a rotina de manutenção do prédio público deveria ser cumprida. Queria solução imediata, um comprimido ou mesmo injeção para ficar livre.
Meu humor despencara e desdenhava das piadas que pipocavam ao redor. Estava bloqueado. Erguera uma blindagem na qual permaneci protegido durante final de semana. Isolar-me era o que minha situação pedia.
Na segunda feira cheguei ao consultório atordoado pela brusca perda da tranquilidade. Olhava a todo instante o relógio, preocupado em chegar atrasado ao escritório. Urgia voltar à rotina, pois garantia o retorno à normalidade.
Deitei na maca em frente a um monitor de vídeo e mangueira com microcâmera na ponta. “Como passou o final de semana?” Perguntou a enfermeira. “Cheio de gás”, respondi sem convicção. Pela seriedade da reação, desconfiei. Diferentemente da sexta anterior, havia na sala, além do procto, um anestesista e a enfermeira que aproximou, pegou meu braço esquerdo e perfurou a veia do antebraço, onde colocou a mangueira de soro. O anestesista aproveitou e espetou a seringa e, enquanto acionava o êmbolo, perguntou-me sobre o time de futebol predileto. Respondi que era o Grêmio de Porto Alegre e a frase que se completaria com o comentário do jogo da quarta-feira seguinte pela Copa Brasil ficou pela metade. Apaguei sob efeito de poderoso sonífero.
Acordei grogue e percebi que o exame terminara. Estava em outra sala, num sofá reclinável e ouvi o médico conversando com alguém. Por mais que esforçasse para entender, a anestesia bloqueava e desisti. Dormi aquela noite ignorando o resultado.
No outro dia, compareci ao consultório cedo e folheei displicente a revista Caras de quatro meses atrás. Com cerca de trinta minutos de espera, o médico me recebe na ante-sala com uma pasta branca na mão. Mandou-me entrar e sentei na cadeira com braços de ferro tão frios como o diagnóstico que receberia a seguir. Respirou fundo. “O senhor deve imaginar o que tem”. Não respondi, mas pelo ar solene, conclui. “Câncer de intestino e a única solução é cirurgia. Enviei o material para biópsia, mas é só para certificar, não há dúvida.” Enquanto escrevia a relação de exames para o pré-operatório, repassei minha vida pela primeira vez, algo que se tornaria rotina. Vendo-me de cabeça baixa, explicou os procedimentos cirúrgicos e por fim, fechou a conversa com um comentário que me martelou por muito tempo. “Toda pessoa que passa por um processo destes sofre profunda mudança,” e acrescentou,“prepare-se.”
Peguei os papéis que me alcançava, levantei da cadeira e olhei o relógio. Eram dez horas da manhã. Reclamei que tinha rotina dura a enfrentar, que os trabalhos parariam sem mim. Ele ouvia atento. Quando terminei as lamúrias, falou compassadamente, “penso que não entendeu, o senhor está sob cuidados médicos. Estou lhe dando atestado de um mês para iniciar exames pré cirúrgicos. Fará cirurgia,  sessões de quimioterapia, talvez radioterapia. É hora de cuidar de suas coisas e do bem maior, a saúde.” O final da frase ouvi de costas. Um zumbido apitou no ouvido, o chão faltou sob os pés e sentei novamente.
Ficar doente soa como um sinal de fraqueza, o estigma da vergonha que se identifica com o sentimento de dó de quem vive a volta do adoecido.
            Se falou mais alguma coisa, desconsiderei. O tempo parou, a pressa acabou, a vida desabou. O que aconteceu comigo? O que fiz de errado? Eu merecia? Porque? A que mudanças o médico se referiu?
            As respostas viriam devagar, a conta gotas. Foi como mergulhar na realidade sombria, num mundo desconhecido.

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