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segunda-feira, 16 de abril de 2012

MULHER DE UM HOMEM SÓ

(Foto: Google Imagens)


A primeira vez que Lívia entrou na casa de um homem após o divórcio, comemorou como vitória. Representava a tentativa de reciclagem, a marca da nova postura frente a vida e o enfrentamento do mundo com desenvoltura. Sentia-se instigada pelo desconhecido e pelo inusitado da situação. Eduardo, de mesma idade, divorciado e colega de trabalho, há algum tempo a chamava para sair. Demorou a aceitar, pois acreditava na importância da aproximação gradativa. Até então, a vida emocional foi de dificuldades. Limitações físicas importantes contribuíam com a baixa auto-estima.

Fortes problemas de visão desde os oito anos impediam uma vida normal. Mas deu a volta por cima e, estimulada pelo pai, cresceu e conquistou um lugar no mundo, obteve bom emprego, casamento com o homem que amava e duas filhas. A única coisa que avalia como erro foi o rompimento com Nestor após dezoito anos de casados. O casamento desde o início foi uma sucessão de desencantos.

Amigo do irmão, Nestor foi o primeiro namorado e Lívia, que crescera nas barbas da família, aceitou a proposta do noivo de fazê-la mulher. Envolvida pela perda da virgindade, a moça seguiu apaixonada até o casamento. Anos depois, concluiu que Nestor casou pelo estigma desta obrigação.

Até os problemas com a visão, que o marido no início citava como motivo de orgulho, passaram a ser tratados com humilhação em rodas de amigos.

A separação desmoronou o sonho de família feliz e unida com força destrutiva de bomba. Nem a guarda das filhas minimizou a perda da convivência com o “chefe da casa”. Os pais a prepararam para fazer do casamento, felicidade e da dedicação ao lar, objetivo de vida. Lívia sentiu-se fracassar como mulher.

Esperava do marido uma semelhança ao pai, preocupado com a mãe e brincalhão com os filhos. De temperamento frio, pouca atenção dispensava a mulher. Ao chegarem a Brasília, costumavam beber vinho com amigos. Durou pouco. Nestor passou a chegar tarde e Lívia, sozinha em casa, experimentou uma profunda tristeza e passou a consumir medicamentos tarja preta.

Dedicado ao trabalho, Nestor logo galgou altos cargos que culminaram com o assédio de mulheres e a adulação de subordinados. De família humilde do interior, esta combinação serviu para inflar o ego e a personalidade. A consequência foi a transformação de valores e a convicção dele de que vivia num casamento falido. Lívia, solitária na incumbência de salvar a relação, experimentou algumas mudanças de comportamento, boicotadas uma a uma pelo marido desinteressado. Manter a família tornou-se fardo difícil.

Lívia analisa que Nestor tinha conceito de família bem diferente dela. Ainda pequeno foi abandonado pelo pai e, já adulto, avisado do estado terminal, se mostrou desinteressado em conhecê-lo.

Considera-se a parte frágil da relação, única sacrificada. “Sempre fui cuidadora de marido e filhas. Cresci numa família de mulheres com esta característica. Na terapia aprendi a recorrência em abrir mão de mim em favor dos outros.”

Desde o início, Nestor deixou claro que frequentar reuniões familiares era um sacrifício. Lívia ignorava os sinais e dava ouvidos a recomendação materna de que “com o tempo, se acostuma”. O afastamento aumentava e passou a ir só com as filhas. Em qualquer data, mesmo Natais, Nestor preferia passar só ou com a família no interior de São Paulo. Ele desenvolvia o que Lívia classificou como “mania de perseguição”. Acreditava que a família da mulher o colocava fora das conversas e seria alvo de cochichos nas rodas familiares.

Lívia fez várias tentativas para manter a relação. Aumentar a prole, uma delas, se mostrou um fracasso. Nestor não aprovava e perdeu dois filhos, o segundo no sexto mês de gravidez. Segurou a gravidez na terceira tentativa e tiveram a segunda menina. O nascimento da filha trouxe fôlego ao casamento, mas logo a relação novamente foi por água abaixo.

Em outra fase, a filha mais velha assumiu para si a incumbência de manter os pais unidos e declarou que gostaria de um irmão. O desejo da filha acelerou o desenlace e Lívia mesmo reticente aceitou, apesar de preferir continuar casada.

Já se passaram três anos e Lívia ainda ama o ex-marido e admite que se quisesse reatar, o aceitaria de volta. “Fui educada para o casamento único e terei dificuldade em nova relação.” Nas noites solitárias, quando as filhas saem, sente falta da vida a dois.

Em mais de duas décadas juntos, afirma nunca se sentir amada e isto alimenta a baixa auto-estima e o sentimento de abandono, controlados com terapias semanais.

Nem tudo na relação foi perdido e reconhece ganhos positivos importantes. O maior deles, as filhas, perseverantes como o pai naquilo que se propõem. Com ele Lívia aprendeu a ter garra e crescer mesmo nas horas difíceis. “Hoje posso afirmar que conheço a solidariedade e isto devo a Nestor”.

“É ótimo pai, trata as meninas muito bem e é presente quando se trata de resolver os problemas”. O que incomoda Lívia é o afastamento que experimentou quando o ex-marido apareceu com namorada. Na terapia trabalha isto e a inserção social para afastar a sensação da solidão. O auxílio profissional a fez planejar as perspectivas de curto, médio e longo prazos e ensinou a ver beleza e graça na vida.

Isto deu frutos. Angariou novas amizades e conheceu Eduardo com o qual divide bons momentos em barzinhos, cinemas, teatros ou conversas a dois, quando trocam confidências e ampliam a amizade. Quem sabe até chegam a intimidades bem resolvidas.

Lívia entrou no apartamento de Eduardo, rodeou a mesa de centro da sala e fixou-se no porta-retrato dourado que a enfeitava. “Meus pais”, explicou o anfitrião. Sorriu e aceitou a taça de champanhe oferecida.

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