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domingo, 22 de abril de 2012

O SILÊNCIO É UMA PRECE - João de Deus

(Google Imagens) - Salão Principal da casa Dom Inácio

Abadiânia é município do estado de Goiás, sem atrativos turísticos ou belezas naturais, mas conhecido mundialmente. Afinal, abriga a Casa Dom Inácio, complexo Centro Espiritual cujo mentor, João de Deus, faz cirurgias e tratamentos espirituais dedicados a cura de doentes dos quatro cantos do mundo. A cidade com cerca de 16 mil habitantes serve de corredor aos municípios de Corumbá e Pirenópolis e está localizada as margens da BR 040, a meio caminho entre Brasília e Goiânia, numa das melhores estradas brasileiras. Pista preferida de motociclistas amadores e profissionais com potentes máquinas sobre duas rodas. Nem tudo são flores, turistas acostumados com o conforto e organização das cidades de origem, caminham nas ruas entre automóveis. Faltam calçadas para pedestres e os carros transitam por ruas apertadas e mal conservadas.
O município vive a reboque da Casa Dom Inácio, provocando até comentários do prefeito tipo “não sei o que seria da cidade sem João de Deus”.
            Mas não é sobre o município que pretendo me estender, muito menos sobre motoqueiros velozes da estrada.
Precisei de cerca de hora e meia para cobrir os 120 quilômetros da distância de casa até a rua de acesso onde o médiun trabalha. Cheguei as dez horas da manhã. Ao sair da estrada principal e entrar no município, deparei-me com forte comércio local. Vendem camisetas, pedras semi-preciosas, imagens de santos em gesso e outras lembranças destinadas a turistas de todo mundo, ávidos por recordações de um momento tão único. A cor predominante das indumentárias é o branco, símbolo da pureza do espírito. Pequenas pousadas e lanchonetes esperam os visitantes com comidas típicas de Goiás. Quando falo turistas do mundo todo, não é exagero. Encontrei americanos, franceses, alemães, enfim, europeus em geral numa mistura de línguas que emprestam a pequena Abadiânia um ar imponente.
Deixei o carro em um estacionamento em frente ao Centro e me dirigi a pé aos pavilhões que compõem o complexo. Administração, grande salão com cobertura para entrada aos trabalhos, biblioteca, farmácia, banheiros sempre muito limpos e espaços a céu aberto com vistas panorâmicas com bancos para meditação, tudo extremamente limpo e ordeiro. Sentei frente a um desfiladeiro com mata muito verde, cercado por morros por todos os lados. No fundo do vale, um gato amarelo se preparava para o bote em pássaros silvestres que comiam displicentes sobre a relva. Ao lado um rapaz de pele alva lia um livro alemão e do outro uma senhora anotava impressões num caderno ao mesmo tempo que comentava algo com alguém em uma língua indefinida. Permaneci absorto por uma hora e me dirigi ao pavilhão de venda de água fluidificada e pedras onde retirei a senha de 1ª VEZ com atendimento indicado para o meio dia.
Mais algumas voltas e resolvi almoçar no Jerivá, restaurante conhecido para quem frequenta a BR 040.
Retornei ao centro em cima da hora marcada, 11h 55. O salão que recebe as pessoas para atendimento estava repleto, mas consegui sentar em uma cadeira almofadada. Vários ventiladores espantavam o forte calor de início de tarde. Uma voluntária prestava instruções em português, inglês, alemão e francês. Reparei que muitos atendentes dominam estas línguas, afinal os estrangeiros precisavam entender o que acontecia. De tempos em tempos ela rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria e pedia silêncio, afinal, como dizia um quadro na parede, “o silêncio é uma prece”. O salão permanecia lotado e uma fila enorme de pessoas de branco, se alinhava no centro. Mais tarde percebi que eram  médiuns incorporadores de entidades de auxilio a João de Deus.
Após duas horas de expectativa, João entrou por uma porta lateral e ficou defronte a platéia solene e curiosa. A comoção imediatamente tomou conta de todos e iniciaram-se cirurgias espirituais com corte. Muitos levantaram para testemunhar de perto e outros ligaram máquinas fotográficas e filmadoras e iniciaram, sem constrangimento, a filmar os procedimentos. As pessoas destinadas a cirurgias formaram um semi-círculo a volta do médiun, o qual fez o reconhecimento da doença de cada e iniciou os trabalhos. Pegou uma tesoura pontiaguda e enfiou pelo nariz adentro em uma moça que parecia estar em transe pois não esboçou nenhum medo ou dor. Após pegou uma faca de cozinha e iniciou o processo de raspar os olhos de outra. A seguir futucou na barriga da terceira, retirou algo e depositou na bandeja,  que foi retirada. Cada paciente que passava pela cirurgia, perdia os sentidos e era colocado em maca e transferido a outra sala, onde ficava recuperando, semelhante ao pós-operatório na medicina tradicional.
Após os procedimentos o médiun  retirou-se e a moça que falava várias línguas conclamou aos outros que esperavam cirurgia, que fizessem fila no local indicado. Formou-se nova fila enorme que, após breve tempo, todos adentraram de forma ordeira por outra porta. A jovem que organizava os passos dos visitantes continuava sua pregação destinada a evitar as conversas paralelas e manter a concentração das filas. Um vídeo mostrava cirurgias com cortes sem sangue, o pessoal olhava e comentava. O calor apertava, mas ventiladores amenizavam o efeito e o ambiente permanecia confortável. Reinava descontração com respeito no ambiente manifestado pelo bom humor de atendentes e pacientes.
As pessoas com fichas de 1ª VEZ, como a minha, foram chamadas e  formaram fila e, fomos encaminhados a porta por onde seguimos através da sala de médiuns, vestidos de branco, que permaneciam concentrados em torno dos pacientes. João de Deus atendia ao fundo de outra sala e logo o percebi sereno sentado e dando atenção a romaria que um a um se aproximava de mãos baixas. Ele ouvia as queixas, anotava em um papel e entregava a cada um. Quando chegou minha vez, reparei que a anotação era inteligível e compreendi que era simbólica e representava um pote de remédio a ser adquirido na farmácia local. Perguntou-me o que sentia, respondi e João falou com toda simplicidade acostumado a ouvir queixas o dia inteiro, todos os dias da semana, “cirurgia”.  Peguei o papel, saí pela porta indicada e comprei a medicação prescrita.
Enquanto espero a cirurgia, que, por decisão pessoal será sem cortes, fico a pensar na procura ilimitada do ser humano quando o assunto é saúde. Gente do mundo todo deixa para trás os afazeres, suas casas, confortos e se dirigem a inexpressiva Abadiânia a procura de alternativa para o que a medicina, por mais avançada que seja, responde de forma inadequada ou oferece tratamento doloroso, caro e por vezes inócuo. Nas tantas mensagens proferidas pela orientadora, uma dizia que grande parte da eficácia da cura estava na forma de encarar o tratamento espiritual e na força do Deus pessoal. Entender que a cura está dentro de cada um, certamente ajudará o tratamento mediúnico a um efeito eficaz. E, por diversas vezes instrui ao paciente a continuar seguindo a orientação médica. “Obedecer ao tratamento que faz com a medicina alopática é garantir a participação e o acompanhamento pessoal no caminho da cura.”

segunda-feira, 16 de abril de 2012

MULHER DE UM HOMEM SÓ

(Foto: Google Imagens)


A primeira vez que Lívia entrou na casa de um homem após o divórcio, comemorou como vitória. Representava a tentativa de reciclagem, a marca da nova postura frente a vida e o enfrentamento do mundo com desenvoltura. Sentia-se instigada pelo desconhecido e pelo inusitado da situação. Eduardo, de mesma idade, divorciado e colega de trabalho, há algum tempo a chamava para sair. Demorou a aceitar, pois acreditava na importância da aproximação gradativa. Até então, a vida emocional foi de dificuldades. Limitações físicas importantes contribuíam com a baixa auto-estima.

Fortes problemas de visão desde os oito anos impediam uma vida normal. Mas deu a volta por cima e, estimulada pelo pai, cresceu e conquistou um lugar no mundo, obteve bom emprego, casamento com o homem que amava e duas filhas. A única coisa que avalia como erro foi o rompimento com Nestor após dezoito anos de casados. O casamento desde o início foi uma sucessão de desencantos.

Amigo do irmão, Nestor foi o primeiro namorado e Lívia, que crescera nas barbas da família, aceitou a proposta do noivo de fazê-la mulher. Envolvida pela perda da virgindade, a moça seguiu apaixonada até o casamento. Anos depois, concluiu que Nestor casou pelo estigma desta obrigação.

Até os problemas com a visão, que o marido no início citava como motivo de orgulho, passaram a ser tratados com humilhação em rodas de amigos.

A separação desmoronou o sonho de família feliz e unida com força destrutiva de bomba. Nem a guarda das filhas minimizou a perda da convivência com o “chefe da casa”. Os pais a prepararam para fazer do casamento, felicidade e da dedicação ao lar, objetivo de vida. Lívia sentiu-se fracassar como mulher.

Esperava do marido uma semelhança ao pai, preocupado com a mãe e brincalhão com os filhos. De temperamento frio, pouca atenção dispensava a mulher. Ao chegarem a Brasília, costumavam beber vinho com amigos. Durou pouco. Nestor passou a chegar tarde e Lívia, sozinha em casa, experimentou uma profunda tristeza e passou a consumir medicamentos tarja preta.

Dedicado ao trabalho, Nestor logo galgou altos cargos que culminaram com o assédio de mulheres e a adulação de subordinados. De família humilde do interior, esta combinação serviu para inflar o ego e a personalidade. A consequência foi a transformação de valores e a convicção dele de que vivia num casamento falido. Lívia, solitária na incumbência de salvar a relação, experimentou algumas mudanças de comportamento, boicotadas uma a uma pelo marido desinteressado. Manter a família tornou-se fardo difícil.

Lívia analisa que Nestor tinha conceito de família bem diferente dela. Ainda pequeno foi abandonado pelo pai e, já adulto, avisado do estado terminal, se mostrou desinteressado em conhecê-lo.

Considera-se a parte frágil da relação, única sacrificada. “Sempre fui cuidadora de marido e filhas. Cresci numa família de mulheres com esta característica. Na terapia aprendi a recorrência em abrir mão de mim em favor dos outros.”

Desde o início, Nestor deixou claro que frequentar reuniões familiares era um sacrifício. Lívia ignorava os sinais e dava ouvidos a recomendação materna de que “com o tempo, se acostuma”. O afastamento aumentava e passou a ir só com as filhas. Em qualquer data, mesmo Natais, Nestor preferia passar só ou com a família no interior de São Paulo. Ele desenvolvia o que Lívia classificou como “mania de perseguição”. Acreditava que a família da mulher o colocava fora das conversas e seria alvo de cochichos nas rodas familiares.

Lívia fez várias tentativas para manter a relação. Aumentar a prole, uma delas, se mostrou um fracasso. Nestor não aprovava e perdeu dois filhos, o segundo no sexto mês de gravidez. Segurou a gravidez na terceira tentativa e tiveram a segunda menina. O nascimento da filha trouxe fôlego ao casamento, mas logo a relação novamente foi por água abaixo.

Em outra fase, a filha mais velha assumiu para si a incumbência de manter os pais unidos e declarou que gostaria de um irmão. O desejo da filha acelerou o desenlace e Lívia mesmo reticente aceitou, apesar de preferir continuar casada.

Já se passaram três anos e Lívia ainda ama o ex-marido e admite que se quisesse reatar, o aceitaria de volta. “Fui educada para o casamento único e terei dificuldade em nova relação.” Nas noites solitárias, quando as filhas saem, sente falta da vida a dois.

Em mais de duas décadas juntos, afirma nunca se sentir amada e isto alimenta a baixa auto-estima e o sentimento de abandono, controlados com terapias semanais.

Nem tudo na relação foi perdido e reconhece ganhos positivos importantes. O maior deles, as filhas, perseverantes como o pai naquilo que se propõem. Com ele Lívia aprendeu a ter garra e crescer mesmo nas horas difíceis. “Hoje posso afirmar que conheço a solidariedade e isto devo a Nestor”.

“É ótimo pai, trata as meninas muito bem e é presente quando se trata de resolver os problemas”. O que incomoda Lívia é o afastamento que experimentou quando o ex-marido apareceu com namorada. Na terapia trabalha isto e a inserção social para afastar a sensação da solidão. O auxílio profissional a fez planejar as perspectivas de curto, médio e longo prazos e ensinou a ver beleza e graça na vida.

Isto deu frutos. Angariou novas amizades e conheceu Eduardo com o qual divide bons momentos em barzinhos, cinemas, teatros ou conversas a dois, quando trocam confidências e ampliam a amizade. Quem sabe até chegam a intimidades bem resolvidas.

Lívia entrou no apartamento de Eduardo, rodeou a mesa de centro da sala e fixou-se no porta-retrato dourado que a enfeitava. “Meus pais”, explicou o anfitrião. Sorriu e aceitou a taça de champanhe oferecida.