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domingo, 12 de fevereiro de 2012

GOIÁS VELHO NÃO, CIDADE DE GOIÁS

(Foto: Mosteiro da Anunciação, Cidade de Goiás - GO - arquivo pessoal)

O passeio à Cidade de Goiás ou Goiás Velho como é conhecida, quase foi adiado duas vezes. A primeira por descaso humano e a segunda pela força da natureza. Explico. Entre Itaguari e Itaberaí, cerca de dez quilômetros da estrada asfaltada retornou ao estado original de terra e buracos. Após a inauguração do asfalto, foi abandonada a própria sorte. Sem reparos, se tornou o paraíso dos mecânicos e borracheiros, verdadeiro rally para turistas. Em um segundo momento, já no trecho Itaberaí/Goiás, chuvas torrenciais testaram a coragem e a visão da estrada em meio ao aguaceiro que anulava o limpador de pára-brisa. Persistente e acreditando que ao final dá tudo certo, a chegada sem incidentes aconteceu às quatro da tarde de uma sexta-feira de janeiro passado. A baixa visibilidade prejudicava. Mal pude observar a placa indicativa de perímetro urbano e perceber as primeiras casas. À entrada da cidade, segui a lâmina d’água que descia pela rua lateral da Praça do Coreto a procura do rio Vermelho, com o carro equilibrando cuidadosamente entre as pedras irregulares do calçamento.

Dias antes a cidade passara por maus bocados. A enxurrada elevara o nível do rio Vermelho e fez estragos na lateral do Hotel da Ponte, impossibilitando o acesso ao prédio. Ruíra parte do muro de contenção e fitas amarelas isolavam o local. No monumento da cabeceira da ponte que dá acesso a casa de Cora Coralina, a ambulância dos Bombeiros estacionada espreitava o rio ameaçador e dava a dimensão do risco. O cenário remetia a enchente de janeiro de 2001, quando a cidade apareceu no noticiário afogada pelas águas do rio Vermelho que teimava em pular do leito.

Estacionei num comércio de doces para provar cocada e usar o banheiro. A comerciante rememorou a história do transbordo do rio e a ameaça a casa de Cora Coralina. “Houve um grande prejuízo material mas, graças à Deus, tudo foi recuperado. Na época a ponte ruiu seu moço”. A cidade, que vive a beira da memória da escritora, temeu pelo futuro. Faz cerca de dez anos que aconteceu e tudo está recuperado. Quase. O trauma não. Quando as chuvas de janeiro caem pesadas ou algum temporal desaba, os moradores recordam o fantasma da tragédia.

Arcelina Helena foi colega de pós graduação em Jornalismo Literário em Goiânia. Jornalista, professora aposentada da Universidade de Brasília é oblata beneditina do Mosteiro da Anunciação. Foi fácil encontrar a morada dos monges. Infelizmente, até porque minha visita foi inesperada, Arcelina viajara a casa de parentes em São Paulo. Lamentei desperdiçar a oportunidade de abraçá-la A informação foi dada pelo jovem monge José Maria que apresentou as instalações e convidou para hospedagem.

Localizado após o mercado Público, na rua Padre Felipe Leddet, o Mosteiro é um lugar bucólico, com jardins bem cuidados de pedras incrustadas e grama bem aparada compondo o cenário do verde macio e da rudeza da pedra natural. Não há luxo. A mobília e as instalações são simples, mas há conforto inegável nesta simplicidade e aura de harmonia e paz em tudo que se faz, que se ouve e se pensa. No hall de entrada do alojamento permaneci por muitas horas a ler o romance turco de Orhan Pamuk, O Museu da Inocência do qual destaquei para este momento de minha viagem a frase de início do livro que peço licença ao autor para transcrever aqui “Era o momento mais feliz de minha vida, mas eu não sabia. Se soubesse, se tivesse dado o devido valor a essa dádiva, tudo teria acontecido diferente?”

A suíte oferecida era a única do mosteiro, os demais são quartos, a cada dois dividem um banheiro. O carro ficou em segurança, numa garagem privativa. Apesar da rigidez dos horários aos religiosos, tinha liberdade de chegada e saída. Bastava entrar, fechar o portão, calçar o carro para não escorregar na rampa íngreme do estacionamento e apagar as luzes que facilitavam o acesso noturno ao alojamento. Os monges recolhem cedo, levantam com o sol e seguem a rotina de orações e preces, numa vida dedicada ao trabalho com Deus, com as obras sociais e no cuidar do Mosteiro com esmero.

Pela manhã, éramos acordados pelo sino a indicar o início das atividades monásticas. Hóspedes estavam desobrigados a participar. Seguia dormindo. Sempre atento, o irmão José Maria indicava locais turísticos a visitar e onde fazer refeições e assim na primeira noite conduziu ao quiosque onde provei um delicioso caldo de feijão com espetinho de churrasco ao som do telão com dupla sertaneja. Terminei a noite com novo amigo. Um gatinho que adestrei alimentando com pedaços de carne espetadas na ponta de palito, mas apenas quando sentava e unia as patas dianteiras para merecer o petisco. Imagino que agora está fazendo esta firula esperando recompensa dos frequentadores.

À noite, cansados, recolhemos cedo, para um merecido descanso, embalados pela serenata de grilos, coaxar de sapos e o ruído do rio Vermelho, cuja água desliza em leito de pedras caindo com força de cachoeira.

Amanheci renovado e visitei as instalações do Mosteiro. Percorri a horta com todo tipo de verduras em amplas plantações cobertas, sem agrotóxicos, protegida dos predadores por rede. Senti-me frustrado em hospedar na época de férias das cozinheiras do Mosteiro e assim perder a oportunidade de lá fazer as refeições. Irmão Zé Maria indicou o mercado público para o desjejum. E foi mais uma sugestão acatada e aprovada vinda do religioso. Lambuzei com o delicioso pastel recheado de queijo feito na hora, acompanhado de suco de laranja, seguido de café com leite e bolinho de arroz que se tornou o petisco das manhãs.

O segundo dia reservei a casa de Cora Coralina. Algo dizia ser um local mágico. Quando entrei, a emoção que senti até agora não consegui definir. Existe uma vibração muito grande naquela casa. Nos utensílios, na cozinha, nas panelas, nas fotos. O quarto com a cama que dormia, os objetos de uso da mulher que considero um ícone de sabedoria de vida. Ler seus textos e saborear a simplicidade das palavras e reflexões de vida dentro da casa, observar os objetos que manuseou por anos, a cadeira enviesada pelo recostar da cabeça, a bengala de madeira que a apoiou até o fim, nunca mais esquecerei. A fama tardia após os 75 anos, a amizade com Maria dos Grampos, a moradora de rua acolhida no porão da casa, somam a história emocionante desta mulher. Ainda existe vida dela em tudo. Tive a impressão que sua figura nos faria surpresa. Cora Coralina é prova de poder o que se quer. Que nunca é tarde para construir um legado para a humanidade, basta esperar o momento certo, deixando agir dentro de cada um a vontade e a magia da vida. Evoluímos exercitando. A acomodação em situações fúteis e preguiçosas só serve para estagnar a passagem pela existência.

A tarde, passamos pelo Museu dos Arcos. Quando capital de Goiás, era dali que os governadores emitiam os decretos. O guia, um funcionário público falante e gentil se ofereceu para fazer fotos pitorescas sugerindo posições políticas na mobília imponente. Aproveitou para abrir o coração e queixar da insensibilidade do governo com a preservação da história do país. Alegou trabalhar com abnegação e quase sem recursos, inclusive humanos. “Há necessidade de se fazer concurso para garantir a continuidade do cuidado com o acervo goiano”, desabafou.

A tardinha, descansamos num banco da praça do Coreto enquanto jovens chegavam esbanjando vitalidade. Desfilavam em carros cheios de alto-falantes acompanhados de lindas moças. Tudo natural e respeitando o espaço alheio. Quando o segundo carro também com som potente chegou, abafando o que estava na praça, desligaram-se os sons e a partir daí restaram somente o murmúrio das conversas. Casais de namorados passeavam em volta da praça e, a cada sombra, paravam para longos beijos. Esta praça recordou a do bairro Tristeza em Porto Alegre onde passei a adolescência. Também naquela ficávamos sentados nos bancos a paquerar as meninas que não cansavam de dar voltas, olhando apenas quando os garotos estavam distraídos.

Há algumas diferenças entre Pirenópolis e Cidade de Goiás. Enquanto naquela há grande movimentação na rua do álcool, onde pedestres consomem o comércio farto e turistas sentados comem e bebem nas mesas de restaurantes e pubs, em Goiás o movimento noturno se dá em volta da praça do Coreto, onde jovens conversam bebendo preparados em garrafas de refrigerante. O comércio de Goiás não abre a noite. Há dois ou três barzinhos superlotados que disputam clientes e é nítido que se respira literatura e cultura. Parece mais organizada. Pirenópolis é mais desordenada, as pessoas ficam mais soltas, o centrão de laser é maior e o comércio forte. As duas cidades tem seu charme, e acredito também seu público. Morador de Pirenópolis, Isócrates, dono da pousada Pouso, Café e Cultura, garantiu que o formato turístico de Goiás é melhor. Mais ordeiros e preservadores, praticam turismo sustentável.

Os restaurantes de Cidade de Goiás são intimistas e oferecem pratos bem preparados. Para quem gosta de refeições a base de peixe, há várias opções de escolha, todas especiais e com cartas de bom vinho. As cafeterias são bem decoradas, os comerciantes atenciosos e a cidade oferece um bom turismo a curtir.

No domingo, a convite do monge, assisti a missa celebrada pelo bispo de Goiás. Realizada em templo redondo possibilitou ampla visão entre o celebrante e os frequentadores, na maioria membros da população local. Na Homilia, em linguagem simples e num tom natural, discorreu sobre a missão do ser humano, que deve ser simplificada, pois se complexa pode se transformar um entrave para a execução.

À saída, Irmão Zé Maria, conduzia um grupo de visitantes pelas instalações e acenou para mim e Malu desejando o tradicional “vão com Deus”. Enquanto manobrava pela ladeira e pegava a estrada, pensava no quanto é possível crescer convivendo com os habitantes das cidades. Ao aceitar o convite para hospedar no Mosteiro abriu-se a oportunidade de acrescentar a minha vida uma história rica e um aprendizado ecumênico importante.

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